Luís Gama (1830-1882), líder abolicionista, advogado e poeta negro é considerado o precursor da ideologia da negritude no Brasil. Sua postura ideológica e produção poética, materializada na coletânea Primeiras Trovas Burlescas (cuja primeira edição é de 1859) inauguraria o discurso de afirmação racial no país. No entanto, as idéias do movimento francês da negritude somente chegaram ao Brasil na década de 1940, por meio, sobretudo do Teatro Experimental do Negro (TEN), entidade fundada em 1944 no Rio de Janeiro, e voltada inicialmente para desenvolver uma dramaturgia negra no país. Na medida em que foi adquirindo projeção, o TEN adquiriu um caráter mais amplo e passou a atuar em diversas áreas, sempre tendo em vista a afirmação dos valores negros.
Quando o grupo surgiu, a negritude passou a ser a ideologia mais geral, que imprimiu um sentido para o pensamento e as ações dos ativistas. Para o TEN, mais do que um sistema de idéias, negritude era uma filosofia de vida, uma bandeira de luta de forte conteúdo emocional e mítico, capaz de mobilizar o negro brasileiro no combate ao racismo, redimi-lo do seu complexo de inferioridade e, por conseguinte, fornecer as bases teóricas e políticas da plena emancipação. Como assevera Abdias do Nascimento, um dos fundadores do TEN:
A Negritude, em sua fase moderna mais conhecida, é liderada por Aimé Cesaire e Leopoldo Sedar Senghor, mas tem seus antecedentes seculares como Chico-Rei, Toussaint L`Ouverture, Luís Gama, José do Patrocínio, Cruz e Souza, Lima Barreto, Yomo Deniata, Lumumba, Sekou Touré, Nkrumah e muitos outros. Trata-se da assunção do negro ao seu protagonismo histórico, uma ótica e uma sensibilidade conforme uma situação existencial, e cujas raízes mergulham no chão histórico-cultural. Raízes emergentes da própria condição de raça espoliada. Os valores da Negritude serão assim eternos, perenes, ou permanentes, na medida em que for eterna, perene ou permanente a raça humana e seus subprodutos histórico-culturais.
Tal como na versão francesa, a negritude foi um ideário que floresceu no Brasil como expressão de protesto da pequena-burguesia intelectual negra (artistas, poetas, escritores, acadêmicos, profissionais liberais) à supremacia branca. Tratou-se de uma resposta dos negros brasileiros em ascensão social ao processo de assimilação da ideologia do branqueamento. Para Guerreiro Ramos, a negritude permitiu libertá-los “do medo e da vergonha de proclamar sua condição racial”. Os postulados da negritude representaram um divisor de águas no movimento negro brasileiro na medida em que consolidaram a luta pela afirmação (ou orgulho) racial.
Entretanto, os intelectuais negros que conclamavam a negritude no Brasil jamais teriam dado uma formulação explícita e sistemática ao conceito, isto é, em nenhum instante transformaram a idéia vaga e difusa de negritude em propostas concretas ou, em última instância, traduziram a negritude em um projeto mais geral para resolver o problema do negro brasileiro. Nas palavras de Clóvis Moura,
[…] o que esse grupo [TEN] apresentava à grande comunidade negra marginalizada nas favelas, nas fazendas de cacau e de algodão, nas usinas de açúcar, nos alagados e nos pardieiros das grandes cidades? Nada. Isto levou a que a negritude dessa fase, apesar dos protestos de grupos negros isolados, como o de Solano Trindade que lutou até a morte para dar uma conotação popular e revolucionária à negritude, o certo é que a sua aristocratização e intelectualização se desenvolveram de modo inequívoco. O grupo do Teatro Experimental do Negro […] procurou imprimir às suas atividades um cunho de elite intelectual negra.
Por isso, Costa Pinto entende que ideário de negritude forjado pelo TEN não passava de um mito: “o processo é o mesmo da formação de todo mito; retira-se dos fatos uma abstração, considera-se essa abstração como um fato, e passa-se a enxergar, a pensar, a sentir, a agir em função dessa concepção invertida e mistificada das coisas”.
De acordo com aquele ideário, o negro possuiria atributos específicos, dentre os quais uma sensibilidade aguçada, que o deixava predestinado ao drama, à música, à poesia, à literatura, à dança, ao canto, enfim, às artes. Cumpre assinalar, todavia, que a contribuição sentimental e a predisposição para as artes não são traços específicos da “raça” negra no Brasil, mas resultado histórico de seu processo de adaptação sócio-cultural ao país. Nessa perspectiva, a emotividade inata do negro e sua propensão para o lúdico não passam de um perigoso mito, pois alimenta o preconceito corrente de considerar todos os indivíduos desse grupo racial como incapazes de desenvolver seu potencial para as atividades que exigem racionalidade, seriedade e habilidade intelectual. Como adverte Costa Pinto:
[…] a mesma falsa interpretação do problema que leva os negros entusiasmados com a idéia da negritude a exalçar um extraordinário pendor musical que enxergam na raça – esse mesmo pendor, igual e falsamente interpretado nos mesmos termos da tese da negritude como traço intrínseco à raça e “paideumático” – é apontada pelos estereótipos da sociedade branca como prova de que o ´negro não dá mesmo para outra coisa`, ´negro só está contente com chicote no lombo, cachaça no buxo e viola na mão`.
De toda sorte, o conceito de negritude popularizou-se no país com o tempo, ampliando seu raio de inserção social e adquirindo novos significados. A partir do final da década de 1970, negritude tornou-se sinônimo do processo mais amplo de tomada de consciência racial do negro brasileiro. No terreno cultural, a negritude se expressava pela valorização dos símbolos culturais de origem negra, destacando-se o samba, a capoeira, os grupos de afoxé. No plano religioso, negritude significava assumir as religiões de matriz africana, sobretudo o candomblé. Na esfera política, negritude se definia pelo engajamento na luta anti-racista, organizada pelas centenas de entidades do movimento negro.
Contemporaneamente, a ideologia da negritude é tão elástica que ainda podemos identificar sua expressão em diversas outras manifestações lúdicas e estéticas de afirmação racial: nos bailes da comunidade negra, nos grupos de dança e música afro, na proposta de alguns escritores e poetas que produzem literatura negra. Ela foi inclusive, apropriada pela indústria cultural e transformada em produto de consumo. Casos típicos dessa tendência é o verdadeiro comércio que se instaurou das roupas que têm o padrão estético africano e os cosméticos dirigidos para o segmento negro. Por isso, Diva Damato salienta que, em função da ambigüidade e imprecisão, a palavra “negritude” passou a ser manipulada conforme a conveniência de cada contexto.
Texto extraído do artigo “Movimento da negritude – uma breve reconstrução histórica” de Petrônio Domingues.
Negritude
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