Parte das demandas lançadas sobre as costas de militantes e ativistas negros/negras têm a ver com o passado. As questões relacionadas à escravidão, ao colonialismo, às desigualdades e a um passado que nós nem conhecemos e sequer entendemos são parte das várias questões que além do racismo que se projeta claramente no nosso presente, vivem a assombrar e perseguir os membros dos movimentos negros. Como disse Mano Brown em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, “hoje o negro está mais ligado ao futuro do que ao passado”(1).
Os debates sobre afro futurismo, mundos possíveis e a superação do racismo são por demais sedutores. Afinal, quem não adoraria que Wakanda fosse real? O que todo negro/negra quer é justamente não precisar mais falar de racismo, falar de dor e de violência. Essa necessidade é um possível explicador para a quantidade gigantesca de pessoas pretas nas igrejas evangélicas, sobretudo nas denominações que falam sobre salvação com certa ênfase. Para o povo negro, é importante pensar a vida em uma outra perspectiva que não seja a deste mundo em que vivemos.
Estamos vivendo uma crise mundial. Até para o espectador mais ingênuo, é nítido que o mundo está vivendo um período cataclísmico e de crises múltiplas. As crises políticas, econômicas e até de identidades representam todo um processo de adoecimento do que Ailton Krenak chamou de Antropoceno:
Como é que ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muita das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência? (KRENAK, 2019, p. 11).
Mais do que nunca precisamos falar de futuro. O passado deve ser apenas o ponto de partida para nossas críticas; mas no momento, o foco deve ser o futuro. A comunidade negra precisa criar dentro de si a possibilidade de pensar um outro mundo, uma realidade libertária. Quando falamos de decolonialidade, é sobre essa possibilidade de pensarmos mundos possíveis, outras experiências. Se essas experiências serão sem a presença do racismo, eu não sei, o que sei é que o mundo está fumegando e este é o momento para que haja uma real transformação.
Em ideias para adiar o fim do mundo (2019), o líder indígena Ailton Krenak reflete justamente sobre essas questões. Pensar o futuro e o tempo em uma perspectiva decolonial é transcender as fronteiras de um mundo fragmentado. Ou como Frantz Fanon escreveu em Os condenados da terra, “um mundo cindido em dois” (1961). Esse mundo, chamado de Ocidente, foi construído para que os seus dois lados se autoanulem e nunca se encontrem de forma harmônica. Assim, uma guerra que foi declarada por um dos lados impede que o outro lado, o lado dos colonizados, se recuse a guerrear. Por isso, desde a colonização, a violência passou a ser um tipo de linguagem universal que expressa o fim de todo conflito, diálogo, debate ou embate.
A igreja evangélica no Brasil como parte desse mundo em colapso, têm mantido relações estreitas com o poder dos colonizadores, tendo no seu núcleo uma massa de membros formada majoritariamente pelos povos colonizados e que está sendo largamente influenciada pelas estruturas de poder colonial por motivos mais complexos que o binarismo alienados x alienadores comumente utilizado pelos devotos do materialismo histórico.
Nada é tão simples.
E é por não ser tão simples que existem grupos de evangélicos como o Movimento Negro Evangélico.
No início da década o censo do IBGE apontou o avanço gigantesco da população evangélica (2) e o provável é que, havendo um novo censo, esse número tenha em muito aumentado. A problemática é que, como já foi apontado em pesquisas, o Brasil é um dos países com maior número de evangélicos, mas também um dos países que mais mata jovens negros (3) e é nesse ponto que emerge a urgência de movimentos que dialoguem com a fé desse grupo que está em crescimento e as demandas de um país ainda preso às amarras coloniais.
O Movimento Negro Evangélico (MNE) é uma ideia para adiar o fim do mundo. Precisamos, negros e negras, entender as perguntas que estão sendo feitas pelas pessoas nas igrejas, na periferia e nas favelas para que nossas respostas sejam audíveis e efetivas. Precisamos entender o que os movimentos de esquerda não entenderam ou não quiseram entender. Precisamos nos apropriar das narrativas e dos discursos que podem potencializar um novo horizonte para um mundo que vive em constante queda rumo à morte para talvez “não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos” (KRENAK, 2019).
Que o MNE entenda a sua possibilidade de reconstruir um novo céu e uma nova terra. Que o MNE entenda que isso não se trata e nunca se tratará de converter todo o mundo ao cristianismo, mas salvar todo o mundo, inclusive, o próprio cristianismo.
Bem-aventurados, nós, os pacificadores, com fome e sede de justiça.
Por João Marcos Bigon, mestrando em Relações Étnico-Raciais pelo PPRER/CEFET-RJ e Licenciado em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias. Membro da Nossa Igreja Brasileira.
Via: Novos Diálogos
Notas
(1) Mano Brown, um sobrevivente do inferno | Entrevista completa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U_OsF4y4zuY&t=720s. Acesso em: 05 de Jan, 2020.
(2) Censo 2010: número de católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?id=3&idnoticia=2170&view=noticia. Acesso em 8 de Jan, 2020.
(3) 75% das vítimas de homicídio no país são negras, aponta Atlas da violência. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Acesso em: 8 de Jan, 2020.