Morre a Bailarina Michaela Mabinty DePrince

Descanse no poder: Bailarina Michaela Mabinty DePrince

Com dor no coração, compartilhamos a perda da bailarina estrela Michaela Mabinty DePrince, cuja arte tocou inúmeros corações e cujo espírito inspirou muitos, deixando uma marca indelével no mundo do ballet, e além.

A vida dela foi definida pela graça, propósito e força. Seu compromisso inabalável com sua arte, seus esforços humanitários e sua coragem em superar desafios inimagináveis irão nos inspirar para sempre. Ela permaneceu como um farol de esperança para muitos, mostrando que não importa os obstáculos, a beleza e a grandeza podem surgir dos lugares mais escuros.

Embora o tempo dela connosco tenha sido demasiado breve, o seu brilho e legado continuarão a brilhar nos corações de todos os que foram tocados pela sua história, nas gerações futuras. Amor e orações vão para a família escolhida, amigos e aqueles que a amavam.

Sinceramente,
Equipe MDP

Michaela Mabinty DePrince fez história como a mais jovem dançarina principal no Teatro de Dança do Harlem, antes de se mudar para a Holanda para dançar com o Ballet Nacional Holandês. Sua carreira progrediu no Boston Ballet após seu retorno aos Estados Unidos, onde ela continuou cativando o público com suas performances.

Através de suas memórias, Taking Flight: From War Orphan to Star Bailarina, DePrince compartilhou sua inspiradora jornada de resiliência e triunfo, que foi traduzida para vários idiomas e publicada em doze países. Seu livro de acompanhamento, Ballet Dreams, solidificou ainda mais seu impacto, estendendo sua influência muito além do palco.

DePrince também era um humanitário dedicado, defendendo as crianças afetadas por conflitos e violência. Ela serviu como Embaixadora da War Child Holland e organizou a sua gala, Dare to Dream, dedicada a promover o bem-estar e a saúde mental das crianças que vivem em zonas de guerra.

Afrokut

Imagem: Wikkie Hermkens

Nego Bispo: o pensador quilombola

Antônio Bispo dos Santos (1959-2023) nasceu no Vale do Rio Berlengas, Piauí. Formou-se pelos ensinamentos de mestras e mestres de ofício do quilombo Saco-Curtume, município de São João do Piauí; completou o ensino fundamental, tornando-se o primeiro de sua família a ter acesso à alfabetização. Nego Bispo, como também é conhecido, é autor de artigos, poemas e dos livros Quilombos, modos e significados (2007) e Colonização, Quilombos: modos e significações (2015). Como liderança quilombola, atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Destaca-se por sua atuação política e militância, que estão fortemente relacionadas à sua formação quilombola, evidenciada por uma cosmovisão a partir da qual os povos constroem, em defesa de seus territórios tradicionais, símbolos, significações e modos de vida.

O pensamento de Bispo constrói-se a partir da experiência e concepções das comunidades quilombolas e dos movimentos sociais de luta pela terra. Dessa perspectiva, desenvolveu algumas proposições epistemológicas a partir dos saberes tradicionais dos povos “afro-pindorâmicos”, segundo a sua expressão para referir-se aos descendentes africanos e indígenas/pindorâmicos em substituição às designações empregadas pelo colonizador. Seu pensamento vem despertando debates dentro e fora da academia, sobretudo a partir do conceito de “contra-colonização”, que postula uma relação entre regimes sociopolíticos e cosmológicos. O autor compreende a colonização como um processo etnocêntrico que busca substituir uma cultura pela outra, por meio de práticas de invasão, expropriação e etnocídio. Como sugere o pensador quilombola, o conceito de “contra-colonização” inscreve no processo colonial a ressignificação da matriz cultural dos povos e de suas práticas tradicionais, de modo a ancorar a enunciação e as formas de resistência à colonização.

Colonização, quilombos: modos e significações (2015) propõe um novo ponto de vista acerca dos estudos decoloniais, ainda que não dialogue diretamente com essa literatura. A obra, que traz ensaios e poemas, elabora uma perspectiva própria sobre as formações “orgânicas” – como Bispo nomeia esse regime de subjetivação – das comunidades tradicionais, retomando a história da resistência de Palmares, Canudos, Caldeirões e Pau de Colher. A crítica epistemológica que o livro apresenta é engendrada pela cosmovisão dos povos contra-colonizadores, indissociável de suas práticas. A contra-colonização localiza-se, portanto, no âmbito de um debate teórico e prático, oferecendo instrumentos para examinar os modos de resistência de povos negros e indígenas que não se permitiram colonizar. A perspectiva crítica do autor repousa na experiência “orgânica” e política do povo quilombola, de forma que o pensamento contra-colonialista mostra-se uma prática que se dá por meio da cosmovisão afro-pindorâmica.

Outro pilar que constitui o conceito de contra-colonização é a relação entre discurso e prática, permitindo o que o autor chama de “confluência”, isto é a convivência entre elementos diferentes entre si e que, ainda assim, se aproximam em suas cosmovisões. Segundo ele, a confluência é o que tem mobilizado o pensamento dos povos tradicionais, oriundo da cosmovisão pluralista dos povos politeístas. A “transfluência”, em contrapartida, rege as “relações de transformação dos elementos da natureza”, estando associada a processos, discursos e práticas derivados da concepção monista, vinculados a um pensamento eurocêntrico e monoteísta. Esses dois pontos são importantes para a compreensão do que o autor denomina “pensamento orgânico” e “pensamento sintético”: o orgânico se refere ao saber constitutivo do desenvolvimento do ser, à organicidade advinda do processo de subjetivação e potência empírica da trajetória dos povos afro-pindorâmicos; o sintético seria o saber canonizado na academia, caracterizado por uma prática colonialista, constituindo-se pela ênfase no “ter.” Enquanto o orgânico é o saber da confluência, o sintético seria o da transfluência.

O pensamento de Nego Bispo busca oferecer contribuições políticas e acadêmicas aos movimentos de luta pela terra, com destaque para as organizações político-sociais dos povos indígenas e quilombolas. Ao reforçar as manifestações coletivas e ao colocar o acento político na oralidade, vem ocupando um lugar na reestruturação conceitual dos estudos decoloniais. Impulsionando o debate acadêmico, Bispo realizou palestras, conferências e cursos, tendo participado como professor e mestre convidado do projeto Encontro de Saberes (UNB/INCT). Ministrou aulas no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Fonte: Universidade de São Paulo – PORFÍRIO, Iago & OLIVEIRA, Lucas Timoteo de. 2021. “Antônio Bispo dos Santos”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <https://ea.fflch.usp.br/autor/antonio-bispo-dos-santos>

Zumbi

Tudo começou com um Brás Rocha que atacou Palmares em 1655 e carregou, entre presas adultas, um recém-nascido. Brás o entregou, honestamente, como era do contrato, ao chefe de uma coluna, e este decidiu fazer um presente ao cura de Porto Calvo. Padre Melo achou que devia chamá-lo de Francisco.

Não podia, naquele momento, está visto, adivinhar que se afeiçoaria ao pretinho.

Se pode imaginar que não foi das piores a infância de Francisco. O padre talvez lhe batesse, como mandava a época, mas não lhe faltou alimento e médico. “Quem dá os beijos, dá os peidos”, dizia o povo. Padre Melo achava Francisco inteligentíssimo: resolveu desasná-lo em português, latim e religião. Talvez olhasse com orgulho o moleque passar com o turíbulo, repetir os salmos.

Francisco apreciava, certamente, histórias da Bíblia. Havia esta, por exemplo: Um sacerdote por nome Eli, velho e piedoso, aceitou na sua casa um menino chamado Samuel. Samuel era obediente e esperto. Certa noite, recolhidos os dois, Samuel ouviu que lhe chamavam: “Samuel! Samuel!” Isso foi antes que a lâmpada de Deus se apagasse no templo do Senhor: ali dormia a Arca de Jeová. Samuel foi até o quarto de Eli: “O senhor me chamou? Estou aqui…” “Não te chamei, filho – respondeu o velho. – Torna a te deitar.” Aconteceu uma segunda vez: alguém, de dentro da noite, chamava o garoto. “Não chamei, meu filho. Torna a te deitar.” Na terceira vez, Eli compreendeu de quem era a voz: “Vai te deitar, e quando te chamarem de novo responde: Fala, porque o teu servo ouve.” Assim fez, e a Voz queria que ele a seguisse; e deixou um recado para o sacerdote: que julgaria a sua casa para sempre, pela iniquidade que ele bem conhecia, porque fazendo-se os seus filhos execráveis, não os repreendeu.

Francisco se chamava agora Zumbi.

Onde encontrou esse nome? No Congo e em Camarões, o deus principal se chamava Nzambi; em Angola, diziam ser zombi o defunto, e zumbis, no Caribe, são mortos-e-vivos, criaturas sem descanso, mesmo no Além. Mais uma vez, dependeremos dos papéis históricos para algum dia decifrar o mistério do rebatismo de Francisco: do passado distante, ele zomba de nós.

É mais fácil responder a esta pergunta: por que escravos fugidos mudavam de nome?

Para os povos ágrafos, como eram a maioria dos africanos trazidos para cá, e os indígenas, naturais daqui, o nome é uma coisa absolutamente vital. Na Senegâmbia, uma criança só era gente depois que seu pai lhe gritava ao ouvido, no meio do mato, o nome que lhe queria dar. […]

Era, pois, uma violência extra o que faziam os traficantes europeus ao comprarem um negro: lhe davam um nome cristão. Não o faziam por maldade: precisavam esvaziar o africano de sua cultura. […]

O tráfico separava, para sempre, as famílias. […] funcionando como liga entre pessoas desenraizadas tão violentamente. As autoridades proibiam ajuntamentos de pretos da mesma terra; fazendeiros não compravam mais de dois pretos da mesma “raça”: pavor de que voltassem a ser gente.

Numa noite de 1670, ao completar quinze anos, Francisco fugiu.

Francisco, retornando a Palmares, com quinze anos, passou a se chamar Zumbi. E constituiu, livremente, sua família – um pai, irmãos, tias e tios. O principal destes se chamava Ganga Zumba.

Ganga Zumba, que chegou a Palmares no tempo da invasão holandesa, era, ao contrário de Zumbi, um africano alto e musculoso. Tinha, provavelmente, temperamento suave e habilidades artísticas – como, em geral, os nativos de Allada, nação fundada pelo povo ewe na Costa dos Escravos.

Em 1670, quando Zumbi voltou, Palmares eram dezenas de povoados, cobrindo mais de seis mil quilômetros quadrados. Trezentos anos depois, nomes sonoros saltam dos papéis históricos: Macaco, na Serra da Barriga (oito mil moradores); Amaro, perto de Serinhaém (cinco mil moradores); Subupira, nas fraldas da Serra da Juçara; Osenga, próximo do Macaco; aquele que mais tarde se chamou Zumbi, nas cercanias de Porto Calvo; Aqualtene, idem; Acotirene, ao norte de Zumbi (parece ter havido dois Acotirenes); Tabocas; Dambrabanga; Andalaquituche, na Serra do Cafuxi; Alto Magano e Curiva, cerca da atual cidade pernambucana de Garanhuns. Gongoro, Cucaú, Pedro Capacaça, Guiloange, Una, Catingas, Engana-Colomim… Quase trinta mil viventes, no total.

Trechos da biografia de Zumbi dos Palmares – por Joel Rufino dos Santos, escritor, historiador e professor de pós-graduação da Faculdade de Letras da UFRJ e diretor de Comunicação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em seus livros para crianças e adolescentes, mais do que contar histórias, coloca questões pertinentes, para uma releitura crítica da nossa cultura popular, especialmente a negra e ameríndia. Em Zumbi, o autor narra de forma comovente e analítica a biografia do líder negro, a criação, a resistência e a destruição do quilombo de Palmares.