Fala do pastor Cosme Felippsen durante a lavagem da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.

O discurso do pastor Cosme Felippsen  é um apelo sincero por inclusividade e compaixão, refletindo o espírito do Carnaval como uma celebração da vida e da comunidade. Cosme Felippsen, integrante do Movimento Negro Evangélico, denunciou o racismo religioso e a ganância de líderes evangélicos, defendendo o respeito às religiões de matriz africana e a inclusão de grupos marginalizados. 

Segue o texto com a fala do Pastor Cosme Felippsen, durante a lavagem da Marquês de Sapucaí:

Boa noite a todos e todas, a paz do senhor Jesus e feliz carnaval.

Sou Cosme Felippsen, nascido na primeira Favella do Brasil, o morro da Providência, pastor da assembleia de deus, participante do MNE, movimento negro evangélico, da frente de evangélicos pelo estado de direito e do coletivo Esperancar. Também sou colaborador da vereadora e secretária de meio ambiente, Tainá de paula.

Lamento profundamente por muitos dos meus irmãos em Cristo abandonar a cidade em época de carnaval e fazer retiros, dizendo que a cidade está na mão de satanás. Digo a vocês que a cidade e o carnaval não é do demônio e sim dos cariocas e de todos que amam a vida! Demônio não é sambar. Demônio é a fome que muitas famílias ainda passam em nossa cidade enquanto grandes igrejas continuam enriquecendo seus pastores que também podem ser chamados de falsos profetas e usurpadores da fé.

Vale a pena lembrar que mais da metade dos brasileiros são descendentes da mãe África e originalmente os povos iorubás e bantu não tinham essa imagem do diabo e de pecado! Mas já que muitos querem falar de pecado eu denuncio um pecado aqui e agora. Abandonem seus pecados da ganância e do racismo religioso. Respeitem os terreiros de umbanda, candomblé, quimbanda, encantaria, tambor de mina, Jurema e qualquer crença afro-brasileira. Abandonem seus pecados o raça de víboras! Abandonem suas notícias mentirosas e falta de amor. Abrace seu filho gay. Abrace sua filha travesti. abrace seu filho Trans e viva o amor!

Oremos,
Senhor Deus que é pai e mãe. Pedimos a ti paz, segurança e muita alegria nesses dias vindouros de carnaval. Te peço pela criança na rua pedinte e catadora de latinhas. Te peço pelo artista no barracão que faz as fantasias, as vezes, virando a noite com cheiro de cola e se queimando com a cola quente.

Te peço Deus pai e mãe, segurança nos desfiles das escolas da Sapucaí, mas também da intendente Magalhães na zona norte. Lugar de gente feliz e trabalhadora. Te peço paz nos blocos de carnaval que ocupam as ruas obedecendo a ordem da alegria.”

A fala do pastor Cosme Felippsen e a atuação do MNE são sinais de esperança, indicando que é possível resgatar o evangelho como uma mensagem de libertação e amor. Sua postura corajosa ilustra o potencial transformador de uma fé engajada com a justiça racial e social. Sabemos que a escalada fascista, fundamentalista e conservadora no protestantismo brasileiro é um fenômeno complexo, que reflete as tensões e contradições de uma sociedade marcada por desigualdades e exclusões. Leia o artigo: Cristofascismo nas Igrejas Evangélicas Brasileiras e a luta do Movimento Negro EvangélicoDiante desse cenário, a luta do Movimento Negro Evangélico nos lembra que a fé pode ser um instrumento de transformação e resistência. 

Do Afrokut

 

Cosme Felippsen comentou a repercussão que seu discurso na Marquês de Sapucaí teve nas redes sociais. Em entrevista ao Terra Agora

Cristofascismo nas Igrejas Evangélicas Brasileiras e a luta do Movimento Negro Evangélico

A Escalada Fascista, Fundamentalista e Conservadora no Protestantismo Histórico Brasileiro e nos Evangélicos em Geral e a luta do Movimento Negro Evangélico.

O cenário religioso brasileiro, marcado pela diversidade e pluralidade, tem sido palco de uma transformação preocupante: a ascensão de ideologias fascistas, fundamentalistas e conservadoras no seio do protestantismo histórico e do evangelicalismo em geral. Esse fenômeno, que ganhou força nas últimas décadas, reflete não apenas uma mudança teológica, mas também uma guinada política e social que impacta diretamente a sociedade brasileira. Este artigo busca analisar essa escalada, destacando a relação entre fascismo e religião, o fundamentalismo no protestantismo histórico, o surgimento do cristofascismo, a questão racial nas igrejas protestantes e a luta do Movimento Negro Evangélico.

O Fascismo Acha Morada nas Igrejas Protestantes

O fascismo, enquanto ideologia autoritária e excludente, encontrou terreno fértil nas igrejas protestantes brasileiras. Sob o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, observa-se uma aliança perigosa entre líderes religiosos e projetos políticos que defendem a manutenção de privilégios e a perseguição a grupos marginalizados. O fascismo entra nas igrejas por meio do medo, do discurso de “inimigos comuns” (como o comunismo) e da defesa de uma suposta “ordem moral”.

Essa dinâmica se intensificou nos últimos anos, com a instrumentalização da fé para justificar violências e perseguições. O anticomunismo, por exemplo, tornou-se uma bandeira unificadora, usada para legitimar ataques a movimentos sociais, minorias e até mesmo a outros cristãos que não se alinham a essa visão. A religião, nesse contexto, serve como ferramenta de legitimação moral para práticas fascistas, transformando líderes políticos em “messias” e projetos de poder em “missões divinas”.

Fundamentalismo e Conservadorismo no Protestantismo Histórico Brasileiro

O protestantismo histórico brasileiro, composto por denominações como batistas, presbiterianos, metodistas, congregacionais, luterana, anglicana, entre outras, tem sido influenciado por uma onda neoconservadora. Essa influência, em grande parte, é importada dos Estados Unidos, onde o fundamentalismo religioso e o conservadorismo político andam de mãos dadas.

No Brasil, essa tendência se manifesta na defesa de uma “agenda da família tradicional”, na oposição a direitos LGBTQIA+, na questão do aborto e na promoção de uma teologia que prioriza a manutenção da ordem social vigente. Apesar de suas raízes na Reforma Protestante, muitas igrejas históricas têm se afastado de uma postura crítica e engajada com as questões sociais, optando por um discurso que reforça hierarquias e desigualdades.

O Nascimento do Cristofascismo nas Igrejas Evangélicas Brasileiras

O termo “cristofascismo”, cunhado pela teóloga alemã Dorothee Sölle, descreve a fusão entre o fascismo e o cristianismo. No Brasil, essa fusão se materializa na defesa de líderes políticos autoritários, na perseguição a minorias e na justificativa religiosa para práticas violentas e excludentes.

Exemplos dessa dinâmica não faltam. Camila Mantovani, fundadora da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, foi forçada a deixar o país após receber ameaças de morte. A pastora Odja Barros, que oficializou a união de duas mulheres na Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió, Alagoas, sofreu ameaça de morte por causa da realização do matrimônio. O Pastor Lucinho Barreto, que recentemente viralizou nas redes sociais com uma fala, contando que levou um grupo de adolescentes de sua congregação para atrapalhar uma festa de religião de matriz africana: “Outro dia, em Belo Horizonte, falaram comigo ‘Lucinho, vai ter a festa do preto velho’. Eu falei ‘ninguém me pediu, não aceito. Não vai ter festa de preto velho, nem preto branco, nem preto roxo, não vai ter’. Fui lá no meu grupo de jovens, chamei 20 jovens, falei ‘vamos dar um B.O. na festa do capeta ali?. No Rio de Janeiro, traficantes “evangélicos” têm invadido terreiros de religiões de matriz africana, em um claro ato de intolerância religiosa.

Esses casos ilustram como o fundamentalismo religioso, aliado ao fascismo, busca eliminar a diversidade e impor uma visão única de mundo.

A Igreja Protestante Brasileira e a Questão Racial

A relação das igrejas protestantes com a questão racial no Brasil é marcada por omissões e cumplicidades. Durante o período da escravidão, muitas denominações protestantes se mantiveram neutras ou até mesmo coniventes com a escravidão, priorizando a “regeneração moral” dos escravizados em detrimento de sua libertação. Essa postura deixou um legado de silêncio e indiferença em relação ao racismo estrutural.

Hoje, embora 59% dos evangélicos brasileiros sejam negros, segundo dados do DataFolha (2020), a liderança das principais igrejas evangélicas continua majoritariamente branca. Essa dissonância entre a base e a liderança reflete a dificuldade das igrejas em abordar questões raciais de forma crítica e engajada.

O Movimento Negro Evangélico e a Luta Antirracista

Diante desse cenário, o Movimento Negro Evangélico (MNE) surge como uma voz profética, denunciando o racismo dentro e fora das igrejas. Fundado em 2003, o MNE busca resgatar a história negra no protestantismo e promover uma teologia que dialogue com as realidades da população negra.

Um exemplo emblemático dessa luta é a fala do pastor Cosme Felippsen durante a lavagem da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro. Felippsen, integrante do MNE, denunciou o racismo religioso e a ganância de líderes evangélicos, defendendo o respeito às religiões de matriz africana e a inclusão de grupos marginalizados. Sua postura corajosa ilustra o potencial transformador de uma fé engajada com a justiça social.

Sai Dela, Povo Meu! Um Chamado ao Rompimento

Diante da escalada fascista e fundamentalista no evangelicalismo brasileiro, o chamado de Apocalipse 18:4-5“Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados” — ressoa como um imperativo ético e teológico. Para muitos, chegou o momento de romper com igrejas que legitimam práticas excludentes e violentas, buscando construir comunidades de fé que abracem a diversidade e promovam a justiça.

O Movimento Negro Evangélico, com sua luta antirracista e sua defesa de uma teologia contextualizada, aponta caminhos para essa reconstrução. A fala do pastor Cosme Felippsen e a atuação do MNE são sinais de esperança, indicando que é possível resgatar o evangelho como uma mensagem de libertação e amor.

Em suma, a escalada fascista, fundamentalista e conservadora no protestantismo brasileiro é um fenômeno complexo, que reflete as tensões e contradições de uma sociedade marcada por desigualdades e exclusões. Diante desse cenário, a luta do Movimento Negro Evangélico nos lembra que a fé pode ser um instrumento de transformação e resistência. O chamado “Sai dela, povo meu!” não é apenas um convite ao rompimento com igrejas fascistas, mas também um convite à construção de uma igreja que seja, de fato, Sal e Luz no mundo.

Por Hernani Francisco da Silva – Do Afrokut

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A Pele Escura como Raiz da Humanidade: Uma Reflexão a Partir da Afrohumanitude

Retrato artístico de um caçador-coletor do sudeste europeu da cultura gravetiana, que data de 33.000 a 26.000 anos atrás, foi inspirado em evidências genéticas recentemente analisadas e em achados arqueológicos anteriores. Credito: Tom Bjoerklund

Estudos recentes sobre o DNA antigo de 348 indivíduos que viveram na Europa entre 3.000 e 8.000 anos atrás revelaram uma descoberta fascinante: a pele clara, hoje associada aos europeus modernos, pode ter se tornado predominante há menos de 3.000 anos. O estudo foi liderado por Guido Barbujani, da Universidade de Ferrara, na Itália, e revela informações surpreendentes e revolucionárias sobre as raízes genéticas dos antigos europeus. Analisando o DNA de indivíduos que viveram na Europa entre 45.000 e 1.700 anos atrás, os resultados sugerem que a maioria dos europeus tinha pele escura até cerca de 3.000 anos atrás. Essa descoberta é um chamado importante para repensar e revalorizar a presença africana na construção da história europeia.

Essa descoberta desafia a versão  tradicional que situa a pele clara como uma característica ancestral e imutável dos povos europeus, apontando que, por milênios, a maioria dos habitantes da Europa teve pele escuraOutro aspecto interessante do estudo é que ele desmentiu a ideia de que os humanos modernos herdaram a pele clara dos neandertais, que ocuparam a Europa por milhares de anos antes da chegada dos humanos modernos. Embora haja evidências de que os dois grupos se cruzaram, a pesquisa genética indica que a pele clara se desenvolveu de forma independente nos humanos modernos.

Essa revelação nos convida a refletir sobre a centralidade da África e das populações de pele escura na história da humanidade, sob a luz da Afrohumanitude que nos lembra que a humanidade nasceu na África, berço da diversidade genética, cultural e fenotípica. A pele escura, característica marcante dos primeiros seres humanos, foi uma adaptação evolutiva crucial para a sobrevivência sob o intenso sol africano. Quando os primeiros humanos migraram para outras regiões do planeta, incluindo a Europa, levaram consigo essa herança biológica e cultural. A pesquisa genética recente reforça essa ideia, mostrando que a pele clara não é uma característica “original” dos europeus, mas sim uma adaptação posterior, possivelmente ligada à necessidade de síntese de vitamina D em ambientes com menor incidência solar.

Essa descoberta também nos convida a questionar as versões históricas e científicas que, durante séculos, privilegiaram a pele clara como padrão de beleza, normalidade e até superioridade. A Afrohumanitude nos desafia a desconstruir essas hierarquias, lembrando que a diversidade humana é um reflexo de nossa capacidade de adaptação e resiliência. A pele escura, longe de ser uma “exceção” ou uma “marca de diferença”, é uma das expressões mais antigas e fundamentais da humanidade.

Por Hernani Francisco da Silva – Do Afrokut 

Imagem: Science News

Referências

REICH, David; MATHIESON, Iain et al.   The genetic history of Europeans over the last 10,000 years”* (Estudos genéticos sobre a história da população europeia).  Disponível em: https://www.nature.com

ORIGENS AFRICANAS DA HUMANIDADE  – STRINGER, Chris. “Lone Survivors: How We Came to Be the Only Humans on Earth”. Livro que aborda as origens africanas da humanidade e as migrações que levaram à ocupação do planeta. – DIAMOND, Jared. “Guns, Germs, and Steel”. Discute a evolução humana e a adaptação a diferentes ambientes.

PELE ESCURA E ADAPTAÇÃO EVOLUTIVA  – JABLONSKI, Nina G. “Living Color: The Biological and Social Meaning of Skin Color”.  Explora a evolução da pele humana e a importância da melanina na adaptação ao sol.  Artigo: “The Evolution of Human Skin Color” (publicado na Scientific American).

CRÍTICAS ÀS NARRATIVAS EUROCÊNTRICAS

 – MBEMBE, Achille. “Crítica da Razão Negra”.  Analisa as estruturas de poder que marginalizam as narrativas africanas.  

– FANON, Frantz. “Pele Negra, Máscaras Brancas”.  Explora a construção racial e a descolonização do pensamento.

AFROHUMANITUDE –    Conceito desenvolvido por Hernani Francisco da Silva, que valoriza a centralidade da África na construção da humanidade. África onde a humanidade surgiu e Humanitude o vínculo universal que liga toda a humanidade. Disponível em: https://afrokut.com.br/afro-humanitude/

O Movimento da Parditude: Surgimento e Controvérsias

Nas últimas décadas, o Brasil tem observado uma mudança significativa em seu cenário racial. A população que se identifica como negra, composta por pessoas de cor parda e preta, agora constitui a maioria estatística do país. Leia o artigo: Os pardos são a maioria dos brasileiros, o que isso muda na Parditude e na Negritude? Este fenômeno tem gerado debates intensos, especialmente nas redes sociais, sobre identidade racial e as políticas públicas voltadas para essa população. No centro dessas discussões, emerge o movimento da Parditude. Este movimento visa reconhecer e celebrar a identidade das pessoas pardas como uma categoria distinta dentro da população negra. No entanto, esta iniciativa tem provocado reações mistas, especialmente entre os militantes do Movimento Negro. Alguns membros do Movimento Negro acusam a Parditude de tentar dividir o movimento e de ser uma ferramenta utilizada pela direita para enfraquecer a luta pelos direitos dos negros. Eles argumentam que a fragmentação da identidade negra pode diluir a força política e social conquistada ao longo de décadas de luta.

A discussão sobre a identidade dos mestiços é vista como necessária e há muito aguardada dentro do Movimento Negro. No entanto, o debate tem se mostrado divisivo, com trocas de acusações entre alguns membros da Parditude e militantes do Movimento Negro. Alguns argumentam que “ser negro está na moda” e que os pardos estão se apropriando das políticas voltadas para os negros, com uso de adjetivos pejorativos direcionados às pessoas pardas. Esta visão desconsidera o fato de que muitas dessas políticas foram formuladas com base no quantitativo da soma das populações parda e preta. Recentemente, o Mestre em Antropologia Social Mauro Baracho, da página @afroestima2 no Instagram, ofereceu uma análise crítica ao conceito de “parditude”. Em sua análise, Baracho expressa desconforto com a comparação dos movimentos negros aos eugenistas, uma comparação feita por alguns membros do movimento da Parditude. Ele reafirma a reivindicação do Movimento Negro de incluir os pardos na categoria negro, destacando a importância da união na luta contra o racismo.

Vale lembrar que o Movimento Negro, especialmente nas décadas de 70, 80 e 90, desempenhou um papel crucial na formulação da identidade negra como categoria política. A campanha do Censo de 1990, promovida por várias organizações civis com o slogan “Não deixe sua cor passar em branco – use o bom c/senso“, exemplifica esse esforço. Na época, houve discussões sobre a eliminação da categoria parda em favor da categoria negro, argumentando que se não havia diferentes categorias de cor para a raça branca, o mesmo deveria valer para a raça negra. Uma reportagem no site #Colabora, do jornalista Igor Soares, aborda uma fala do Frei David, diretor da Educafro, onde afirma que é preciso tratar da questão da Parditude com ‘seriedade”.

O Brasil sempre fugiu do debate racial”, afirma o diretor da ONG, que ressalta que o país precisa fazer reparações pelos danos da escravatura. Para ele, o termo usado pelo IBGE é, de fato, questionável, uma vez que é preciso saber que pardos são esses. “Nos anos 1970, a comunidade lutou para abandonar o uso do termo ‘pardo’. Entendemos que há o ‘pardo-preto’, que sofre racismo constantemente, o ‘pardo-pardo’, que pode sofrer racismo, e ‘pardo-branco’, que nunca sofre racismo”, afirma, ressaltando que é uma interpretação do atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, adotada pela EducAfro. (#Colabora 2025)

A fala de Frei Davi, diretor da Educafro, traz à tona questões fundamentais sobre a complexidade da identidade racial no Brasil. Ao identificar diferentes categorias de “pardos” — ‘pardo-preto‘, ‘pardo-pardo‘ e ‘pardo-branco‘ — ele destaca como a experiência do racismo varia significativamente entre essas categorias. Além disso, ele aponta preocupações sobre a possibilidade de fraudes em ações afirmativas, caso pessoas brancas se passem como pardas. A distinção feita por Frei Davi entre ‘pardo-preto’, ‘pardo-pardo’ e ‘pardo-branco’ ilustra a diversidade de experiências dentro da categoria “pardo”. Conforme ele menciona, ‘pardo-preto’ refere-se àqueles que sofrem racismo constantemente, enquanto ‘pardo-pardo’ pode ou não sofrer racismo, e ‘pardo-branco’ não sofre racismo. Essa diferenciação reconhece que a vivência do racismo não é homogênea e que a cor da pele influencia diretamente essas experiências.

O debate sobre a identidade racial no Brasil é complexo e multifacetado. Embora a discussão sobre a identidade parda seja válida e necessária, é crucial que essa conversa não leve à fragmentação do movimento negro. O objetivo deve ser a união e o fortalecimento da luta contra o racismo, reconhecendo a diversidade dentro da população negra e trabalhando juntos por um futuro mais justo e igualitário. A unificação da luta do Movimento Negro e da Parditude é essencial para enfrentar os desafios e injustiças que ainda persistem na sociedade brasileira. Por meio do diálogo respeitoso, reconhecimento da diversidade, educação, fortalecimento de políticas públicas, parcerias estratégicas e celebração das conquistas, é possível construir um movimento mais coeso e forte, capaz de promover mudanças significativas e duradouras. A crescente presença das redes sociais como palco para discussões sobre questões raciais evidencia a importância de abordagens inovadoras para promover a compreensão e a justiça. Nesse contexto, a AfroHumanitude surge como uma abordagem que pode enriquecer o debate e contribuir para a resolução de controvérsias relacionadas à Parditude e ao Movimento Negro. Baseada nos princípios de respeito, empatia e reconhecimento da humanidade compartilhada, a AfroHumanitude propõe um novo paradigma para tratar de questões raciais de maneira mais inclusiva e construtiva.

A AfroHumanitude é uma filosofia que valoriza a dignidade e a humanidade de todas as pessoas. Ao promover uma compreensão mais profunda das realidades vividas pelas pessoas negras, a AfroHumanitude busca construir pontes de empatia e solidariedade entre diferentes grupos raciais. Esse conceito se fundamenta na ideia de que o reconhecimento mútuo e o respeito pelas diferenças são essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Nas redes sociais, onde as discussões sobre questões raciais frequentemente se tornam acaloradas e polarizadas, a AfroHumanitude pode desempenhar um papel crucial. Ao incentivar o respeito e a empatia nas interações online, essa abordagem ajuda a criar um ambiente mais saudável para o diálogo. Em vez de perpetuar divisões e preconceitos, os princípios da AfroHumanitude promovem a compreensão mútua e a cooperação. Conforme destacado por Frei David, diretor da Educafro, a questão racial no Brasil é frequentemente evitada, e é necessário abordar esse tema com seriedade. A Parditude, como conceito discutido atualmente, traz à tona preocupações sobre a identificação racial e as implicações para ações afirmativas. A AfroHumanitude pode contribuir para esse debate ao fornecer uma estrutura que reconheça as nuances e complexidades da identidade racial, evitando generalizações e estereótipos prejudiciais.

Ao integrar a AfroHumanitude em iniciativas educacionais e políticas de justiça social, podemos criar uma base mais sólida para a promoção da equidade racial. Isso inclui o fortalecimento de programas que visem à reparação histórica e a implementação de ações afirmativas de maneira justa e eficaz. A AfroHumanitude oferece uma abordagem promissora para enfrentar as controvérsias raciais observadas nas redes sociais e além. Ao promover o respeito, a empatia e o reconhecimento da humanidade compartilhada, essa filosofia pode ajudar a transformar o debate racial em uma oportunidade para a construção de uma sociedade mais justa e harmoniosa. Adotar os princípios da AfroHumanitude é um passo importante na jornada rumo à verdadeira equidade racial e ao fortalecimento do Movimento Negro no Brasil.

Por Hernani Francisco da Silva – Do Afrokut

A Bíblia e a África

Foto: Arte sobre foto de Vera / Gerado com IA / Adobe Stock

Personagens negros apresentados nas Escrituras oferecem lições inspiradoras à Igreja

Por Marcelo Santos

Palavra inspirada e útil para o ensino, como escreveu o apóstolo Paulo a Timóteo (2 Tm 3.16), o Livro Sagrado descreve eventos, diálogos e lições que se desenrolam em um contexto afro-asiático, em que a diversidade étnica e cultural é evidente. Moisés, que passou parte da infância no Egito, e a rainha de Sabá [cujo reino ficava na região hoje ocupada pelo Iêmen], conhecida pela sabedoria e riqueza, são referências de figuras africanas que desempenharam papéis cruciais na história do povo de Deus. A monarca, por exemplo, é descrita como uma governante poderosa que viajou longas distâncias para encontrar o rei Salomão, desafiando estereótipos e destacando a importância de outras culturas na formação da fé israelita.

O Pr. Marco Davi de Oliveira expõe que teologias pautadas na supremacia branca, que não são recentes, “incluem conceitos que contribuíram para solidificar o racismo e os estereótipos racistas, até mesmo dentro da população negra” Foto: Arquivo pessoal

No entendimento do Pr. Marco Davi de Oliveira, da Nossa Igreja Brasileira, no Centro do Rio de Janeiro (RJ), a interpretação do Texto Santo tem sido dominada por uma perspectiva eurocêntrica, ocultando, muitas vezes, a contribuição e a presença de povos africanos nas Sagradas Escrituras. Escritor, autor da obra A religião mais negra do Brasil, e doutorando em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra (Portugal), uma das mais prestigiadas e antigas do mundo, Oliveira ressalta que as teologias pautadas na supremacia branca solidificaram o racismo, tanto na mente dos brancos quanto na dos negros. “De fato, as histórias bíblicas e suas interpretações têm a liberdade de leitura e iluminação. O problema está na interpretação considerada livre”, avalia ele. “Essas teologias, que não são recentes, incluem conceitos que contribuíram para solidificar o racismo e os estereótipos racistas, até mesmo dentro da população negra”, expõe Oliveira.

O estudioso cita como exemplo a chamada maldição de Cam (um dos filhos de Noé) associada à escravidão e à inferioridade racial dos africanos. Segundo essa teoria, Cam, ao ver a nudez do pai, foi amaldiçoado a viver como escravo, e seus descendentes, identificados como africanos, teriam herdado essa maldição. Esse mito racista deturpou textos bíblicos, perpetuando a ideia de que a subjugação dos africanos era uma condição divina e inevitável, cristalizando o racismo e a discriminação.

Por muito tempo, acentua o pregador, essas interpretações foram aceitas como verdades absolutas, firmadas na supremacia branca, a qual determinava a inferioridade dos negros. Além disso, ele acredita que essas perspectivas erradas serviram para justificar a escravidão, sob a ótica de que os negros precisavam ser colonizados e escravizados para se tornarem pessoas melhores. Tal visão, assegura o pastor, foi reforçada por filósofos, como os alemães Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que descreveram os africanos como inferiores e selvagens. “A Bíblia é um livro que escreve a partir dos oprimidos. Nela, encontramos Moisés, filho de Joquebede, que era africana. Moisés não nasceu no lugar que hoje é chamado de Israel, mas na África, não é verdade? Em 400 anos de escravização, muitos libertadores nasceram nesse continente.” [Do editor: Moisés nasceu na Terra de Gósen, território mencionado na Bíblia situado no Delta oriental do Egito]

O empreendedor social Hernani Francisco da Silva destaca a importância dos personagens negros nas histórias bíblicas  – Foto: Arquivo pessoal

Personagens negros – Assim, desde os primórdios, a África está presente nas narrativas bíblicas. O empreendedor social Hernani Francisco da Silva, fundador da Missão Quilombo e da rede social Afrokut, destaca a importância dos personagens negros nas histórias bíblicas e revela alguns que foram protagonistas. “Sofonias, o profeta negro; Simão Cireneu, um homem de origem africana que vivia em Cirene (uma cidade situada no Norte da África), que foi forçado a carregar a cruz de Jesus, mas acabou se tornando um seguidor de Cristo, conforme o texto de Marcos 15.21 registra.”

Hernani ainda aponta Simeão, o Níger [o termo niger significa ‘negro’ em latim], um líder da Igreja primitiva em Jerusalém que impôs as mãos sobre Paulo para enviá-lo ao campo missionário; a africana Zípora, esposa de Moisés e filha de Jetro (Êx 2.21); a rainha Candace, cujo nome aparece quando o evangelista Filipe encontra um chefe dos tesouros da Etiópia (At 8.27). O fundador da Missão Quilombo também faz questão de citar a rainha de Sabá. “Sua fama era tal que, mil anos depois, Jesus Cristo mencionou os feitos dela. Ele disse que ela viera dos confins da Terra para ouvir a sabedoria de Salomão”, afirma, referindo-se à passagem de Mateus 12.42. Por fim, Hernani lembra que termos como etíopes e egípcios aparecem frequentemente na Palavra de Deus, evidenciando a presença africana. “Ler a Bíblia na perspectiva de um contexto afro-asiático contribuiria imensamente para a diversidade racial”, argumenta.

Vanessa Maria Barboza, coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (RMNE), afirma que é importante reconhecer e resgatar a diversidade étnica e racial do Livro Sagrado – Foto: Arquivo pessoal

Diversidade racial – Para Vanessa Maria Barboza, coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (RMNE), é importante reconhecer e resgatar a diversidade étnica e racial do Livro Sagrado. “Quando falamos sobre representação e diversidade nas Escrituras, reivindicamos a pluralidade étnica, cultural e fenotípica dos grupos retratados na Bíblia”, explica. Ela observa que, muitas vezes, as interpretações bíblicas feitas por lideranças religiosas não consideram as características físicas e culturais dos povos reportados, deixando de lado a fidelidade histórica.

Para Vanessa, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos, existe uma multiplicidade de representantes do Oriente Médio, da África e até mesmo do Mediterrâneo e do Extremo Oriente [região que abrange o Extremo Oriente Russo, a China, a Coreia do Norte, a Coreia do Sul, o Japão e Taiwan]. A pesquisadora pontua que essa ausência de reconhecimento das características dos povos bíblicos “é uma falta de respeito à história e à vivência desses grupos étnicos”. Em sua opinião, essa omissão distorce a realidade bíblica.

A coordenadora da RNME critica a forma como grupos missionários, desde o período colonial, impuseram as próprias imagens como representações das Escrituras, criando uma “falsidade” e uma “apropriação” das narrativas sagradas. Vanessa, que é doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), pensa que essa estratégia pedagógica foi usada para subordinar povos africanos escravizados e culturas indígenas, consolidando um imaginário segundo o qual o “povo escolhido de Deus” é predominantemente branco. A estudiosa lembra que a mensagem central da Bíblia é de “um Deus que acolhe e reconhece a diversidade dos povos, sem distinções”.

O Pr. Vanderlei Duarte Júnior ressalta que as comunidades de fé precisam ser espaços de acolhimento: “As igrejas têm o dever de acolher, e não de afastar, especialmente aqueles que foram historicamente marginalizados” – Foto: Arquivo pessoal

Inclusão – O Pr. Vanderlei Duarte Júnior, líder estadual da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em Sergipe, concorda com Vanessa Maria Barboza e ressalta que as comunidades de fé precisam ser espaços de acolhimento. “As igrejas têm o dever de acolher, e não de afastar, especialmente aqueles que foram historicamente marginalizados”, assevera o ministro, enfatizando o papel das congregações na promoção da inclusão racial. Vanderlei, aliás, cita a sua experiência positiva na Igreja da Graça. “Nunca me senti excluído. Pelo contrário, sempre fui bem acolhido pelos meus pastores e líderes, assim como pelo Missionário R. R. Soares. Ele confiou a mim a liderança de um estado quando eu ainda era bastante jovem, com apenas 23 anos.”

Dados do Atlas da Violência 2024, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostram que, no Brasil, o racismo e a exclusão racial continuam sendo problemas graves. Essa edição do Atlas, que compila dados reunidos em 2022, revela que, naquele ano, foram registrados mais de 63 mil casos de violência racial referentes a agressões e discriminações motivadas pela cor da pele e etnia. No estudo, o IPEA demonstrou que a população negra representava 76,5% das vítimas de homicídios.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os evangélicos representam hoje 31% da população do país, e a maioria dos crentes brasileiros (56%) se identifica como pretos ou pardos. Se, por um lado, as congregações evangélicas ainda precisam vencer alguns desafios para alcançar a equidade racial; por outro, na opinião de Vanderlei Duarte, tem havido avanços na inclusão de líderes negros. Mas ele faz um alerta: existe o risco de ocorrerem divisões dentro das igrejas se não houver atenção a esses grupos étnicos.

Entretanto, o líder observa que a exclusão racial não é apenas um problema das igrejas, mas também da sociedade em geral. “Esse estereótipo reflete a imagem projetada pela colonização e pela escravização”, defende Duarte. Ele ressalta que, se alguma igreja exclui pessoas devido à cor da pele, isso ocorre por falta de conhecimento – tal como ensina o texto de Oséias 4.6. “Se um pastor, líder de uma igreja, possui algum tipo de preconceito racial, ele não é dirigido por Deus, e sim por um espírito maligno”, atesta Vanderlei, salientando que as congregações devem se concentrar em cumprir a ordem de Jesus. “Todos, na igreja, devem estar unidos em torno do nosso maior propósito: salvar pessoas”, conclui.

Marcelo Santos é biógrafo, escritor, jornalista Freelancer e Repórter na empresa SESC SP – Revista Problemas Brasileiros.

Fonte:  Revista Show da Fé

Vanguarda do Movimento Negro Evangélico

Finalmente, John Burdick afirma que, além da música, há outros locais no protestantismo evangélico que promovem a identidade étnico-racial negra e o antirracismo.

Uma sugestão final: como indicado ao longo deste livro, há sites no protestantismo evangélico brasileiro que nutrem um pensamento complexo que apoia a identidade étnico-racial negra, orgulho da ancestralidade africana, entusiasmo por saber mais sobre a história africana e antirracismo. Os sites que examinei aqui são de produção musical, mas há outros também. O MNE está crescendo e é significativo. Negros evangélicos estão na vanguarda dos estudantes que ingressam na faculdade apoiados por ações afirmativas. Os evangélicos estão crescendo em número, não estão prestes a desaparecer e superam em muito os candomblecistas. A posição de algumas igrejas, como a Igreja Universal do Reino de Deus, de que é aceitável agredir fisicamente os templos de candomblé é uma visão minoritária; a maioria dos evangélicos rejeita o candomblé teologicamente, mas não está interessada em atacar os templos, pois consideram que o destino final dos praticantes não cristãos está nas mãos de Deus. (John Burdick, 2013)

Dado tudo isso, faz sentido que os ativistas seculares do movimento negro se esforcem para encontrar um ponto em comum com o MNE e com outros evangélicos que simpatizam com os objetivos do movimento, como músicos do black gospel. Há evidências de que os evangélicos que se encontraram em painéis com mães de santo do candomblé começaram a vê-los sob uma luz diferente e mais tolerante.Encorajar mais painéis como esse, unidos sob as bandeiras da identidade negra e do antirracismo, poderia ajudar muito a aliviar algumas das tensões que existem atualmente. Mas é claro que nós, etnógrafos, devemos ter cuidado ao fazer recomendações a qualquer pessoa. Nossa força é nossa capacidade de iluminar lugares escuros, de levantar sombras, de ajudar o socialmente invisível, não ouvido ou incompreendido a ser visto, ouvido e melhor compreendido. Se este trabalho fez alguma dessas coisas, ele atingiu seu propósito. (John Burdick, 2013)

Concluindo, John Burdick afirma que, além da música, há outros locais no protestantismo evangélico que promovem a identidade étnico-racial negra e o antirracismo. Ele reforça a importância de encontrar um ponto em comum com os evangélicos que simpatizam com os objetivos do movimento negro e incentiva a realização de painéis unidos pela identidade negra e antirracismo para aliviar tensões.

Burdick conclui destacando o papel dos etnógrafos em iluminar lugares escuros e ajudar os socialmente invisíveis a serem vistos e compreendidos. Se seu trabalho atingiu esse objetivo, ele se sente realizado.

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick

Como fonte o livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

Etnografia ativista e o Movimento Negro Evangélico

John Burdick discute as limitações e potencialidades da etnografia ativista, sugerindo que a etnografia pode revelar dimensões ocultas e fragmentadas da consciência que podem atrair novos públicos. Contudo, ele questiona a energia que deve ser investida pelos ativistas do MNE em conectar-se com músicos de black gospel.

O autor argumenta que, embora o MNE tenha enfrentado dificuldades para expandir sua base e enriquecer seu pensamento estratégico, os músicos de gospel negro representam uma reserva rica de líderes evangélicos engajados com a questão racial. Ele sugere que os líderes do MNE deveriam se comunicar mais com os diretores e líderes de corais gospel.

No entanto, eu argumentaria o caso de outra forma. O MNE começou na década de 1980 e agora está meio que preso, tendo adicionado apenas um pequeno punhado de organizações à sua lista desde 2005. O movimento é importante, mas tem enfrentado o mesmo gargalo que o movimento negro secular enfrenta há muito tempo, o de identificar e se conectar com uma base mais ampla de não ativistas. Embora a Internet tenha ajudado nesse sentido (o site principal do movimento, Afrokut, agora tem mais de cinco mil membros), o movimento não conseguiu transformar esses números em reuniões presenciais consistentes nas quais projetos estratégicos de longo prazo e tomada de decisões podem ser realizados.

Quando olhamos para a lista de organizações do MNE, elas são bastante pesadas; ou seja, há mais “alianças” regionais e nacionais do que organizações locais de base. (As organizações locais do MNE que descrevi anteriormente são mais a exceção do que a regra.) Nesse contexto, no nível local, um rico reservatório de líderes evangélicos que parecem estar pensando muito sobre raça, negritude, história e futuros estratégicos alternativos são músicos gospel negros. Essa, pelo menos, é a reivindicação do presente trabalho. Minha etnografia revelou, eu afirmo, não apenas um mundo que é sobre “orgulho”, mas um que gera e sustenta trabalho cognitivo complexo e reflexão. À medida que o MNE entra em sua terceira década, lutando para ampliar sua base e enriquecer seu pensamento estratégico, eu exorto seus líderes a tomarem medidas para visitar, ligar, enviar e-mails e se comunicar com os diretores e líderes dos corais gospel de sua cidade. Nessa articulação, eu afirmo ainda, reside um futuro potencial significativo do movimento.

Continua: Vanguarda do Movimento Negro Evangélico

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick 

Como fonte o livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

O Movimento Negro Evangélico e o movimento Black Gospel

O estudo de Burdick revela que, apesar das barreiras teológicas, o Movimento Negro Evangélico no Brasil conseguiu articular uma identidade negra orgulhosa e antirracista, utilizando a música como uma ferramenta poderosa de mobilização e expressão. A diversidade musical dentro do MNE não apenas reflete a complexidade do movimento, mas também destaca a capacidade dos evangélicos de integrar fé e identidade racial de maneiras significativas e transformadoras. O livro destaca como a música pode influenciar a identidade negra entre os evangélicos e como diferentes tipos de música desempenham um papel crucial na formação dessa identidade. Burdick reconhece a riqueza da arena musical negra evangélica em São Paulo, com diversos artistas cristãos tocando soul, funk, gospel, R&B, blues, rap e samba com temas religiosos. Ele destaca que compreender essa diversidade musical é essencial para entender as variadas expressões da negritude no contexto evangélico

Ao longo da última década, estive em estreita comunicação com líderes do movimento negro evangélico, e conforme descrito na introdução, minhas escolhas de tópico e perguntas foram influenciadas pelo preocupações e a agenda desses líderes. Hernani da Silva, Luiz de Jesus e Rolf da Souza todos me incentivaram a prosseguir neste projeto, investindo como estão na compreensão do potencial político da construção de alianças com músicos da cena gospel negra. Nos relatórios que fiz para eles sobre minhas descobertas, sugeri o valor de uma estratégia de divulgação para artistas que cantam e dirigem música gospel negra, e não para aqueles imersos em os mundos do rap gospel ou do samba gospel. Esta sugestão, depois de ser atendida com algum cepticismo, está a começar a ganhar força entre esses líderes. Hernani da Silva, um dos principais organizadores do MNE, publicou em resposta ao meu trabalho, um artigo de ampla circulação que sugere que o movimento Black Gospel e o MNE atualmente fazem parte do movimento negro mas estão “seguindo caminhos separados” (Silva 2004). Ele também recentemente apareceu na televisão nacional brasileira divulgando a visão de que há potenciais intersecções entre os dois movimentos. Na sua opinião, a música gospel negra funciona principalmente para atrair negros para a igreja, apelando aos seus senso de “atitude” e “orgulho”. A cena musical, no entanto, em sua visão, não gera muito em termos de reflexão ou estratégia. Para isso, deve-se recorrer ao MNE. Eventualmente, diz ele, “os dois movimentos irão convergir, e trilharemos o caminho e lutaremos juntos. (John Burdick, 2013)

A posição de Hernani revela tanto a potencialidade quanto as limitações da atuação da etnografia ativista. Por um lado, sugere que uma etnografia cuidadosa, partilhada com as partes interessadas, defensores e líderes, pode ter um efeito no seu pensamento sobre aliados ocultos e possíveis novos círculos de apoiadores. Por outro lado, sugere algo sobre a discrepância entre as linhas temporais da etnografia e do ativismo social. A etnografia pode revelar aspectos ocultos, fragmentários, dimensões lentas da consciência que podem servir como ganchos para alcançar novos públicos. No entanto, mesmo esses ganchos esbarram nos limites do tempo, recursos e energia. Quanta energia os ativistas do MNE devem gastar em lutando para se conectar e recrutar músicos de black gospel? Quanto mais energia eles deveriam dedicar ao trabalho com rappers gospel para persuadi-los a incorporar o anti-racismo em suas letras? Os ativistas do MNE querem ver resultados, mais cedo ou mais tarde, em fazer com que suas igrejas adotem as iniciativas políticas governamentais sobre ação afirmativa e começar usar os espaços da igreja para educar uma geração de jovens cristãos sobre a importância da África na Bíblia e o combate ao racismo aqui e agora. Deste ponto de vista, uma etnografia de músicos pode parecer um luxo que o movimento não pode permitir-se. (John Burdick, 2013)

Neste trecho, John Burdick relata suas experiências e comunicações com os líderes do Movimento Negro Evangélico (MNE), incluindo Luiz de JesusRolf de Souza, e Hernani Francisco da Silva, desde a década de 1990. Burdick descreve como suas investigações e interações foram influenciadas pelos interesses desses líderes, focando no potencial político de alianças com músicos de gospel negro.

O autor destaca a sugestão de Hernani de que os movimentos Black Gospel e MNE, apesar de seguirem caminhos diferentes, eventualmente convergirão e trabalharão juntos. Hernani acredita que a música gospel negra é eficaz em atrair negros para a igreja e fomentar a negritude, mas ressalta que a reflexão e a estratégia devem vir do MNE.

Continua: Etnografia ativista e o Movimento Negro Evangélico

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick

Como fonte o livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

Diversidade Musical e Identidade Negra e o Movimento Negro Evangélico

Ao investigar mais profundamente, Burdick descobriu a rica diversidade da música negra evangélica em São Paulo. A cidade abrigava uma vasta gama de artistas cristãos que tocavam soul, funk, gospel, R&B, blues, rap e samba com temas religiosos. Ele observou que essas diferentes expressões musicais desempenhavam um papel crucial na formação das identidades negras entre os evangélicos.

Uma noite, tivemos um avanço.  Hernani estava me contando sobre um recente encontro que ele organizou de teólogos e ativistas cristãos negros em São Paulo e mencionou casualmente que, como parte do evento, ele tinha convidado vários grupos musicais para se apresentar. Apenas um apareceu, e era um dos suspeitos de sempre, o Coral da Resistência Negra, composto por fiéis de várias igrejas históricas. Hernani me disse que os grupos baseados em igrejas pentecostais e neopentecostais eram muito difíceis de quebrar. “Eles simplesmente não querem participar de nada assim”, disse ele. (John Burdick, 2013)

Minhas visitas a igrejas brasileiras por quase vinte anos me ensinaram que a música era totalmente central para a vida ritual e emocional dos evangélicos. Eu tinha ouvido por duas décadas histórias de conversão religiosa nas quais o momento-chave da mudança era motivado por um hino. Eu sabia que em qualquer culto de três horas na igreja, todas as três horas eram preenchidas com algum tipo de música. Eu tinha ouvido fiéis cantarolando musicais religiosas na rua, no ônibus, no trabalho, em suas cozinhas.  Eu tinha falado com ministros cheios de orgulho sobre seus músicos, bandas e corais (cf. Corbitt 1998; Harris 1992; Chitando 2002). Ao estudar música, eu sabia que estaria abrindo uma janela importante para a visão de mundo dos evangélicos. (John Burdick, 2013)

Que outros grupos ele havia convidado? Eu perguntei. Todos rappers”, Hernani respondeu. “Rappers gospel. Se algum grupo vai simpatizar com a nossa mensagem, serão eles. Eles são confrontacionais, eles têm essa conexão com a cultura negra. Mas eu continuo convidando, convidando, e eles não vêm. Eu não entendo.” “Rappers gospel? “Há muitos deles?” “Centenas, talvez milhares. Há muitos e muitos rappers gospel. É muito grande entre os jovens da periferia.” “Perfeito!” Hernani riu. “John, você não está ouvindo.  Não é perfeito. Eu os convidei, e eles não querem vir.” “Sim, sim”, eu disse, “eu entendo. Mas deve ser apenas a natureza do alcance. Temos que descobrir como convidá-los para que venham. Uma vez que eles estejam aqui, esse é um público natural.” Hernani não estava convencido. (John Burdick, 2013)

Mas, enquanto eu ponderava a comparação tripla, meu pensamento evoluiu. Por que limitar o projeto apenas a encontrar aliados? Igualmente útil seria entender as resistências ideológicas à negritude também. Eu não deveria tentar retratar da forma mais simpática possível diferentes significados de negritude, mesmo que alguns não fossem sobre orgulho? Não poderia haver uma convergência entre as agendas ativista e acadêmica ao enquadrar o projeto como uma busca para pintar um retrato o mais realista possível do papel que diferentes tipos de música desempenharam na formação de diferentes tipos de negritude? (cf. Jackson 2005). (John Burdick, 2013)

Continua: O Movimento Negro Evangélico e o movimento Black Gospel

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick

Como fonte o livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

A Importância da Música no Movimento Negro Evangélico

A música se mostrou uma peça central na estratégia de atração e mobilização do MNE. Hernani mencionou a dificuldade em atrair grupos musicais pentecostais e neopentecostais para eventos do Movimento Negro Evangélico, mas destacou a relevância dos rappers gospel, que possuem uma forte conexão com a cultura negra. Burdick viu na música uma oportunidade de abrir uma janela para entender a visão de mundo dos evangélicos e suas expressões de negritude.

Eu refleti sobre essas questões em maio de 2002, durante uma série de conversas com Hernani da Silva, um líder do movimento negro evangélico iniciante e membro de longa data da igreja pentecostal Brasil Para Cristo. Hernani havia iniciado um site cristão negro em 1999 e havia acumulado várias dezenas de aliados virtuais e reais, mas ele precisava de mais. Onde encontrá-los? (John Burdick, 2013)

Como transformar essa pequena rede em um movimento mais amplo? Eu estava comprometido a desenvolver um projeto que pudesse ajudá-lo a fazer isso. Eu havia conceituado por algum tempo meu papel como antropólogo como co-designer de  investigações que pudessem ajudar a revelar aliados e eleitores ocultos, grupos de pessoas que compartilhavam as atitudes dos ativistas políticos sem articulá-las claramente, seja entre si ou em público.  Eu me ofereci para vir naquela primavera e começar a conceber um projeto etnográfico com Hernani que eu empreenderia ao longo dos próximos anos para ajudá-lo a expandir seu movimento (Hale 2006; Burdick 1995; Speed ​​2006).” (John Burdick, 2013)

Conversamos até tarde várias noites seguidas, lutando com questões de estratégia: onde estavam as audiências de evangélicos que poderiam simpatizar com a mensagem do movimento? Onde estavam as pessoas que poderiam ter afinidade com a noção de que o amor a Jesus e o amor à identidade negra se reforçavam mutuamente? “Precisamos de algo mais focado também, algo direcionado”, ele  me disse. Mas quem deveriam ser os alvos? (Snow e Benford 1988; Snow et  al. 1986).” (John Burdick, 2013)

Continua: Diversidade Musical e Identidade Negra

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick 

Como fonte o livro The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut