Vanguarda do Movimento Negro Evangélico

Finalmente, John Burdick afirma que, além da música, há outros locais no protestantismo evangélico que promovem a identidade étnico-racial negra e o antirracismo.

Uma sugestão final: como indicado ao longo deste livro, há sites no protestantismo evangélico brasileiro que nutrem um pensamento complexo que apoia a identidade étnico-racial negra, orgulho da ancestralidade africana, entusiasmo por saber mais sobre a história africana e antirracismo. Os sites que examinei aqui são de produção musical, mas há outros também. O MNE está crescendo e é significativo. Negros evangélicos estão na vanguarda dos estudantes que ingressam na faculdade apoiados por ações afirmativas. Os evangélicos estão crescendo em número, não estão prestes a desaparecer e superam em muito os candomblecistas. A posição de algumas igrejas, como a Igreja Universal do Reino de Deus, de que é aceitável agredir fisicamente os templos de candomblé é uma visão minoritária; a maioria dos evangélicos rejeita o candomblé teologicamente, mas não está interessada em atacar os templos, pois consideram que o destino final dos praticantes não cristãos está nas mãos de Deus. (John Burdick, 2013)

Dado tudo isso, faz sentido que os ativistas seculares do movimento negro se esforcem para encontrar um ponto em comum com o MNE e com outros evangélicos que simpatizam com os objetivos do movimento, como músicos do black gospel. Há evidências de que os evangélicos que se encontraram em painéis com mães de santo do candomblé começaram a vê-los sob uma luz diferente e mais tolerante.Encorajar mais painéis como esse, unidos sob as bandeiras da identidade negra e do antirracismo, poderia ajudar muito a aliviar algumas das tensões que existem atualmente. Mas é claro que nós, etnógrafos, devemos ter cuidado ao fazer recomendações a qualquer pessoa. Nossa força é nossa capacidade de iluminar lugares escuros, de levantar sombras, de ajudar o socialmente invisível, não ouvido ou incompreendido a ser visto, ouvido e melhor compreendido. Se este trabalho fez alguma dessas coisas, ele atingiu seu propósito. (John Burdick, 2013)

Concluindo, John Burdick afirma que, além da música, há outros locais no protestantismo evangélico que promovem a identidade étnico-racial negra e o antirracismo. Ele reforça a importância de encontrar um ponto em comum com os evangélicos que simpatizam com os objetivos do movimento negro e incentiva a realização de painéis unidos pela identidade negra e antirracismo para aliviar tensões.

Burdick conclui destacando o papel dos etnógrafos em iluminar lugares escuros e ajudar os socialmente invisíveis a serem vistos e compreendidos. Se seu trabalho atingiu esse objetivo, ele se sente realizado.

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick

Como fonte o livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

Etnografia ativista e o Movimento Negro Evangélico

John Burdick discute as limitações e potencialidades da etnografia ativista, sugerindo que a etnografia pode revelar dimensões ocultas e fragmentadas da consciência que podem atrair novos públicos. Contudo, ele questiona a energia que deve ser investida pelos ativistas do MNE em conectar-se com músicos de black gospel.

O autor argumenta que, embora o MNE tenha enfrentado dificuldades para expandir sua base e enriquecer seu pensamento estratégico, os músicos de gospel negro representam uma reserva rica de líderes evangélicos engajados com a questão racial. Ele sugere que os líderes do MNE deveriam se comunicar mais com os diretores e líderes de corais gospel.

No entanto, eu argumentaria o caso de outra forma. O MNE começou na década de 1980 e agora está meio que preso, tendo adicionado apenas um pequeno punhado de organizações à sua lista desde 2005. O movimento é importante, mas tem enfrentado o mesmo gargalo que o movimento negro secular enfrenta há muito tempo, o de identificar e se conectar com uma base mais ampla de não ativistas. Embora a Internet tenha ajudado nesse sentido (o site principal do movimento, Afrokut, agora tem mais de cinco mil membros), o movimento não conseguiu transformar esses números em reuniões presenciais consistentes nas quais projetos estratégicos de longo prazo e tomada de decisões podem ser realizados.

Quando olhamos para a lista de organizações do MNE, elas são bastante pesadas; ou seja, há mais “alianças” regionais e nacionais do que organizações locais de base. (As organizações locais do MNE que descrevi anteriormente são mais a exceção do que a regra.) Nesse contexto, no nível local, um rico reservatório de líderes evangélicos que parecem estar pensando muito sobre raça, negritude, história e futuros estratégicos alternativos são músicos gospel negros. Essa, pelo menos, é a reivindicação do presente trabalho. Minha etnografia revelou, eu afirmo, não apenas um mundo que é sobre “orgulho”, mas um que gera e sustenta trabalho cognitivo complexo e reflexão. À medida que o MNE entra em sua terceira década, lutando para ampliar sua base e enriquecer seu pensamento estratégico, eu exorto seus líderes a tomarem medidas para visitar, ligar, enviar e-mails e se comunicar com os diretores e líderes dos corais gospel de sua cidade. Nessa articulação, eu afirmo ainda, reside um futuro potencial significativo do movimento.

Continua: Vanguarda do Movimento Negro Evangélico

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick 

Como fonte o livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

O Movimento Negro Evangélico e o movimento Black Gospel

O estudo de Burdick revela que, apesar das barreiras teológicas, o Movimento Negro Evangélico no Brasil conseguiu articular uma identidade negra orgulhosa e antirracista, utilizando a música como uma ferramenta poderosa de mobilização e expressão. A diversidade musical dentro do MNE não apenas reflete a complexidade do movimento, mas também destaca a capacidade dos evangélicos de integrar fé e identidade racial de maneiras significativas e transformadoras. O livro destaca como a música pode influenciar a identidade negra entre os evangélicos e como diferentes tipos de música desempenham um papel crucial na formação dessa identidade. Burdick reconhece a riqueza da arena musical negra evangélica em São Paulo, com diversos artistas cristãos tocando soul, funk, gospel, R&B, blues, rap e samba com temas religiosos. Ele destaca que compreender essa diversidade musical é essencial para entender as variadas expressões da negritude no contexto evangélico

Ao longo da última década, estive em estreita comunicação com líderes do movimento negro evangélico, e conforme descrito na introdução, minhas escolhas de tópico e perguntas foram influenciadas pelo preocupações e a agenda desses líderes. Hernani da Silva, Luiz de Jesus e Rolf da Souza todos me incentivaram a prosseguir neste projeto, investindo como estão na compreensão do potencial político da construção de alianças com músicos da cena gospel negra. Nos relatórios que fiz para eles sobre minhas descobertas, sugeri o valor de uma estratégia de divulgação para artistas que cantam e dirigem música gospel negra, e não para aqueles imersos em os mundos do rap gospel ou do samba gospel. Esta sugestão, depois de ser atendida com algum cepticismo, está a começar a ganhar força entre esses líderes. Hernani da Silva, um dos principais organizadores do MNE, publicou em resposta ao meu trabalho, um artigo de ampla circulação que sugere que o movimento Black Gospel e o MNE atualmente fazem parte do movimento negro mas estão “seguindo caminhos separados” (Silva 2004). Ele também recentemente apareceu na televisão nacional brasileira divulgando a visão de que há potenciais intersecções entre os dois movimentos. Na sua opinião, a música gospel negra funciona principalmente para atrair negros para a igreja, apelando aos seus senso de “atitude” e “orgulho”. A cena musical, no entanto, em sua visão, não gera muito em termos de reflexão ou estratégia. Para isso, deve-se recorrer ao MNE. Eventualmente, diz ele, “os dois movimentos irão convergir, e trilharemos o caminho e lutaremos juntos. (John Burdick, 2013)

A posição de Hernani revela tanto a potencialidade quanto as limitações da atuação da etnografia ativista. Por um lado, sugere que uma etnografia cuidadosa, partilhada com as partes interessadas, defensores e líderes, pode ter um efeito no seu pensamento sobre aliados ocultos e possíveis novos círculos de apoiadores. Por outro lado, sugere algo sobre a discrepância entre as linhas temporais da etnografia e do ativismo social. A etnografia pode revelar aspectos ocultos, fragmentários, dimensões lentas da consciência que podem servir como ganchos para alcançar novos públicos. No entanto, mesmo esses ganchos esbarram nos limites do tempo, recursos e energia. Quanta energia os ativistas do MNE devem gastar em lutando para se conectar e recrutar músicos de black gospel? Quanto mais energia eles deveriam dedicar ao trabalho com rappers gospel para persuadi-los a incorporar o anti-racismo em suas letras? Os ativistas do MNE querem ver resultados, mais cedo ou mais tarde, em fazer com que suas igrejas adotem as iniciativas políticas governamentais sobre ação afirmativa e começar usar os espaços da igreja para educar uma geração de jovens cristãos sobre a importância da África na Bíblia e o combate ao racismo aqui e agora. Deste ponto de vista, uma etnografia de músicos pode parecer um luxo que o movimento não pode permitir-se. (John Burdick, 2013)

Neste trecho, John Burdick relata suas experiências e comunicações com os líderes do Movimento Negro Evangélico (MNE), incluindo Luiz de JesusRolf de Souza, e Hernani Francisco da Silva, desde a década de 1990. Burdick descreve como suas investigações e interações foram influenciadas pelos interesses desses líderes, focando no potencial político de alianças com músicos de gospel negro.

O autor destaca a sugestão de Hernani de que os movimentos Black Gospel e MNE, apesar de seguirem caminhos diferentes, eventualmente convergirão e trabalharão juntos. Hernani acredita que a música gospel negra é eficaz em atrair negros para a igreja e fomentar a negritude, mas ressalta que a reflexão e a estratégia devem vir do MNE.

Continua: Etnografia ativista e o Movimento Negro Evangélico

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick

Como fonte o livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

Diversidade Musical e Identidade Negra e o Movimento Negro Evangélico

Ao investigar mais profundamente, Burdick descobriu a rica diversidade da música negra evangélica em São Paulo. A cidade abrigava uma vasta gama de artistas cristãos que tocavam soul, funk, gospel, R&B, blues, rap e samba com temas religiosos. Ele observou que essas diferentes expressões musicais desempenhavam um papel crucial na formação das identidades negras entre os evangélicos.

Uma noite, tivemos um avanço.  Hernani estava me contando sobre um recente encontro que ele organizou de teólogos e ativistas cristãos negros em São Paulo e mencionou casualmente que, como parte do evento, ele tinha convidado vários grupos musicais para se apresentar. Apenas um apareceu, e era um dos suspeitos de sempre, o Coral da Resistência Negra, composto por fiéis de várias igrejas históricas. Hernani me disse que os grupos baseados em igrejas pentecostais e neopentecostais eram muito difíceis de quebrar. “Eles simplesmente não querem participar de nada assim”, disse ele. (John Burdick, 2013)

Minhas visitas a igrejas brasileiras por quase vinte anos me ensinaram que a música era totalmente central para a vida ritual e emocional dos evangélicos. Eu tinha ouvido por duas décadas histórias de conversão religiosa nas quais o momento-chave da mudança era motivado por um hino. Eu sabia que em qualquer culto de três horas na igreja, todas as três horas eram preenchidas com algum tipo de música. Eu tinha ouvido fiéis cantarolando musicais religiosas na rua, no ônibus, no trabalho, em suas cozinhas.  Eu tinha falado com ministros cheios de orgulho sobre seus músicos, bandas e corais (cf. Corbitt 1998; Harris 1992; Chitando 2002). Ao estudar música, eu sabia que estaria abrindo uma janela importante para a visão de mundo dos evangélicos. (John Burdick, 2013)

Que outros grupos ele havia convidado? Eu perguntei. Todos rappers”, Hernani respondeu. “Rappers gospel. Se algum grupo vai simpatizar com a nossa mensagem, serão eles. Eles são confrontacionais, eles têm essa conexão com a cultura negra. Mas eu continuo convidando, convidando, e eles não vêm. Eu não entendo.” “Rappers gospel? “Há muitos deles?” “Centenas, talvez milhares. Há muitos e muitos rappers gospel. É muito grande entre os jovens da periferia.” “Perfeito!” Hernani riu. “John, você não está ouvindo.  Não é perfeito. Eu os convidei, e eles não querem vir.” “Sim, sim”, eu disse, “eu entendo. Mas deve ser apenas a natureza do alcance. Temos que descobrir como convidá-los para que venham. Uma vez que eles estejam aqui, esse é um público natural.” Hernani não estava convencido. (John Burdick, 2013)

Mas, enquanto eu ponderava a comparação tripla, meu pensamento evoluiu. Por que limitar o projeto apenas a encontrar aliados? Igualmente útil seria entender as resistências ideológicas à negritude também. Eu não deveria tentar retratar da forma mais simpática possível diferentes significados de negritude, mesmo que alguns não fossem sobre orgulho? Não poderia haver uma convergência entre as agendas ativista e acadêmica ao enquadrar o projeto como uma busca para pintar um retrato o mais realista possível do papel que diferentes tipos de música desempenharam na formação de diferentes tipos de negritude? (cf. Jackson 2005). (John Burdick, 2013)

Continua: O Movimento Negro Evangélico e o movimento Black Gospel

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick

Como fonte o livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

A Importância da Música no Movimento Negro Evangélico

A música se mostrou uma peça central na estratégia de atração e mobilização do MNE. Hernani mencionou a dificuldade em atrair grupos musicais pentecostais e neopentecostais para eventos do Movimento Negro Evangélico, mas destacou a relevância dos rappers gospel, que possuem uma forte conexão com a cultura negra. Burdick viu na música uma oportunidade de abrir uma janela para entender a visão de mundo dos evangélicos e suas expressões de negritude.

Eu refleti sobre essas questões em maio de 2002, durante uma série de conversas com Hernani da Silva, um líder do movimento negro evangélico iniciante e membro de longa data da igreja pentecostal Brasil Para Cristo. Hernani havia iniciado um site cristão negro em 1999 e havia acumulado várias dezenas de aliados virtuais e reais, mas ele precisava de mais. Onde encontrá-los? (John Burdick, 2013)

Como transformar essa pequena rede em um movimento mais amplo? Eu estava comprometido a desenvolver um projeto que pudesse ajudá-lo a fazer isso. Eu havia conceituado por algum tempo meu papel como antropólogo como co-designer de  investigações que pudessem ajudar a revelar aliados e eleitores ocultos, grupos de pessoas que compartilhavam as atitudes dos ativistas políticos sem articulá-las claramente, seja entre si ou em público.  Eu me ofereci para vir naquela primavera e começar a conceber um projeto etnográfico com Hernani que eu empreenderia ao longo dos próximos anos para ajudá-lo a expandir seu movimento (Hale 2006; Burdick 1995; Speed ​​2006).” (John Burdick, 2013)

Conversamos até tarde várias noites seguidas, lutando com questões de estratégia: onde estavam as audiências de evangélicos que poderiam simpatizar com a mensagem do movimento? Onde estavam as pessoas que poderiam ter afinidade com a noção de que o amor a Jesus e o amor à identidade negra se reforçavam mutuamente? “Precisamos de algo mais focado também, algo direcionado”, ele  me disse. Mas quem deveriam ser os alvos? (Snow e Benford 1988; Snow et  al. 1986).” (John Burdick, 2013)

Continua: Diversidade Musical e Identidade Negra

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick 

Como fonte o livro The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

Estratégias para Expandir o Movimento Negro Evangélico

Em 2002, Burdick e Hernani Francisco da Silva, na época líder do MNE, iniciaram um projeto colaborativo para expandir o movimento. Hernani, que havia criado um site cristão negro em 1999, buscava formas de transformar sua rede inicial em um movimento mais amplo. Juntos, eles discutem estratégias para alcançar evangélicos simpáticos à causa. Uma das ideias centrais foi a utilização da música como uma ferramenta estratégica, visto que ela é fundamental para a vida ritual e emocional dos evangélicos brasileiros. Burdick, com sua experiência em igrejas brasileiras, sabia da importância da música na vida ritual e emocional dos evangélicos.

Então, em 2002, decidi embarcar em um esforço para descobrir o que fazia o MNE funcionar ideologicamente, Naturalmente, alguns leitores vão querer saber por que eu, um norte-americano branco, estou interessado na política da negritude, muito menos na política negra no Brasil. Até onde posso saber meus preconceitos e motivações a esse respeito, aqui estão eles. Cresci como judeu no Centro-Oeste dos EUA na década de 1960, cercado por evidências das consequências do racismo. Em 1967, vi tanques rolando pela Woodward Avenue em Detroit depois que a cidade explodiu em tumultos raciais, e em 1971 vi ônibus sendo incendiados na minha cidade natal, Pontiac, porque seriam usados ​​para acabar com a segregação nas escolas públicas. Meu pai concorreu (e perdeu) para o conselho escolar naquele ano em uma plataforma de dessegregação escolar, e toda primavera por muitos anos, nossa família celebrava a Páscoa convidando membros de capítulos locais da NAACP e CORE para falar sobre as semelhanças entre as lutas de Moses e Martin Luther King Jr. Eu também li Cleaver e Baldwin e Wright e Malcolm X e Haley e Hansberry e Morrison. Tudo isso estabeleceu em meu cérebro o que alguns críticos podem chamar de uma maneira “americana” de olhar para a raça. Mas também incutiu em mim algo mais importante: uma compreensão de que a devastação causada pelo racismo está frequentemente escondida no fundo do coração humano, e que os privilégios que se acumulam para a branquitude são comumente envoltos em camadas de auto ilusão e negação. (John Burdick, 2013)

Essas são as coisas que tenho visto nos últimos vinte e cinco anos, não apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil. Já me disseram mais vezes do que posso contar que “raça é diferente no Brasil do que nos Estados Unidos” e que não devo impor o paradigma racial da minha própria cultura (incluindo a regra da hipodescendência) onde ele não pertence. Garanto ao leitor que concordo plenamente. De fato, passei a maior parte do último quarto de século me esforçando para entender as complexidades distintivas da cor brasileira e do sistema fenotípico. Escrevi sobre a subjetividade de morenas e mulatas, que não tem correlação clara nos Estados Unidos. O sistema brasileiro pode, portanto, ser muito diferente do dos Estados Unidos, mas também é profundamente semelhante. (John Burdick, 2013)

Continua: A Importância da Música no Movimento Negro Evangélico

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick 

Como fonte o livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick 

O livro “The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE), explora como a teologia evangélica pode inspirar a luta contra a injustiça racial e a construção de uma identidade negra orgulhosa.

John Burdick iniciou sua pesquisa no Brasil em 1996, interessado nas inter-relações delicadas entre crença religiosa e identidade racial. Durante seu estudo, ele descobriu um pequeno, porém promissor, movimento de protestantes evangélicos em São Paulo que, inspirados por sua teologia, começaram a se identificar como o Movimento Negro Evangélico (MNE).

Em 1996, passei um ano no Brasil pesquisando as delicadas inter-relações entre crença religiosa e identidade racial entre pessoas que se identificavam como cristãs. Enquanto estava envolvido nesse projeto, me deparei com um pequeno e promissor movimento de protestantes evangélicos sediados em São Paulo que foram inspirados por sua teologia para lutar contra a injustiça racial e construir uma orgulhosa identidade negra. O que achei intrigante sobre esse movimento — seus participantes estavam na época apenas começando a se identificar como o movimento negro evangélico, ou MNE — foi que ele estava inserido em um contexto religioso que a maioria das organizações do movimento negro havia descartado como profundamente hostil à sua causa. (John Burdick, 2013)

O MNE estava inserido em um contexto religioso que, tradicionalmente, rejeitava as religiões afro-brasileiras como o candomblé e a umbanda, consideradas hostis à causa negra. Apesar disso, Burdick percebeu que o MNE desenvolveu visões antirracistas e pró-negras, desafiando o ceticismo de muitos colegas que acreditavam se tratar de uma estratégia dos líderes evangélicos para angariar fiéis.

O principal ponto de discórdia, do ponto de vista do movimento negro, era a atitude dos evangélicos em relação às religiões afro-brasileiras do candomblé e da umbanda. Eu estava profundamente ciente de que os evangélicos pregavam contra essas religiões e que algumas denominações, como a Igreja Universal do Reino de Deus, estavam implicadas em ataques iconoclastas diretos a templos afro-brasileiros. Embora eu achasse tais ataques repugnantes, o exemplo do MNE me convenceu de que a rejeição dos evangélicos, por motivos teológicos, da religião mediúnica afro-brasileira não era em si uma barreira intransponível ao desenvolvimento de fortes visões antirracistas e pró-negros. No entanto, durante anos, sempre que eu falava em público sobre o MNE, eu me encontrava diante de um forte ceticismo. (John Burdick, 2013)

Alguns colegas insinuaram que eu tinha sido enganado, levado por líderes evangélicos que pouco se importavam com a luta contra o racismo e jogavam a carta da raça apenas para angariar almas e ofertas para suas igrejas. Embora minha própria experiência sugerisse que o MNE era bem mais complexo do que isso — a profundidade e a durabilidade dos compromissos antirracistas de pessoas como Hernani da Silva ou Rolf da Souza mostravam que o MNE não podia ser explicado como simplesmente mais um estratagema missionário — ninguém estava tentando documentar essa complexidade. (John Burdick, 2013)

Continua: Estratégias para Expandir o Movimento Negro Evangélico

Como fonte o livro The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

Movimento Negro Evangélico, letramento racial e educação antirracista

A tríade Movimento Negro Evangélico, Letramento Racial e Educação Antirracista são a base conceitual para o mapeamento e análise dos dados levantados sobre o MNE, o entendimento aqui é que essa tríade venha trabalhar sob uma base conceitual e epistemológica contemporânea intrinsecamente ligada ao campo dos estudos em educação, que, segundo Brandão (1985) em seu livro O que é Educação, nos dois primeiros capítulos, faz a reflexão de que todos vivemos em situações que envolvem aprendizagens, sendo: na rua, no lar, na tribo, enfim na vida social. (aqui a reflexão é de que, a igreja ou qualquer espaço religioso, constitui-se de relações interpessoais interativas, portanto, espaços de aprendizagens e educação).

A princípio estes são os referenciais teóricos preliminares que dão norte a este trabalho: Kleiman (2010), Soares, Rojo (1998), Caldeira (2023), Gomes (2022), Hall (2003), Bauman (1997) e Gohn (2012) que apresentam reflexões relevantes para a compreensão do objeto de estudo compõem o corpus teórico de discussão deste estudo.

Para Oliveira (2021), O Movimento Negro Evangélico pode ser compreendido, não como uma entidade completamente consolidada, mas em construção, formado pelo conjunto das ações produzidas por coletivos evangélicos negros com o objetivo de enfrentar o racismo tanto nas igrejas quanto na sociedade. Pode-se falar em Movimento Negro evangélico (MNE), por um lado, na medida em que se tem como referencial um conjunto de ações produzidas por grupos consolidados ou em construção, cujos agentes são pessoas que se autoclassificam como “evangélicas” e negras (pretas ou pardas, de acordo com a nomenclatura adotada pelo IBGE). Por outro, deve-se considerar que, em geral, os destinatários dessas atividades são também pessoas negras que participam de alguma igreja classificada como “evangélica”. O combate ao racismo no interior das igrejas, em particular, e na sociedade em geral, pode ser tomado como o elemento central a partir do qual se organizam as diversas iniciativas com temática racial empreendidas por esses grupos. (FERREIRA, 2021,170)

A reconstrução da história do Movimento Negro Evangélico é uma tarefa complexa, Oliveira (2021) a difícil tarefa de mapear a trajetória do MNE reside no fato de este ser um movimento em construção, mesmo tendo os seus agentes se movendo no segmento evangélico há décadas.

O que se entende como MNE, na verdade é um conjunto de ações de coletivos consolidados ou em construção (o que classifico como negros evangélicos em movimento). O MNE é composto por várias organizações que lutam em defesa de uma leitura e uma hermenêutica afro centrada da Bíblia, das ações afirmativas, da igualdade racial e do combate ao racismo e seus desdobramentos.

Segundo Silva (2011), o MNE é como uma rede que interconecta os atores, instituições e ações como, a título de exemplo, a Sociedade Cultural Missão Quilombo, fundada em 1991, que tem como foco principal das suas ações, modificar a visão que as igrejas têm da cultura negra, Silva (2011) dessa forma, provocar o enfrentamento ao racismo no seu interior.

Texto extraído do artigo acadêmico: EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA E LETRAMENTO RACIAL: AS PROPOSTAS E AÇÕESDO MOVIMENTO NEGRO EVANGÉLICO
Magno Santana da Silva – UNEB – Universidade do Estado da Bahia. ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.

O caso da Nossa Igreja Brasileira

A denominação supramencionada está localizada, atualmente, na rua da Carioca, no centro da cidade do Rio de Janeiro. O casal, Marco Davi de Oliveira e Nilza Valéria Zacarias são principais articuladores dessa igreja. O pastor Marco Davi é natural de Teresópolis/RJ, formou-se em teologia, história e ciências da religião, foi um dos fundadores do Movimento Negro Evangélico (MNE) em 2003. Publicou o livro A religião mais negra do Brasil: por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo? É o idealizador do projeto Discipulado, Justiça e Reconciliação e atualmente apresenta o programa de rádio, Papo de CrenteNilza Valéria é formada em jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Recentemente (08 de março de 2023) recebeu, pelo Senado Federal, o Diploma Bertha Lutz por sua militância a favor do Estado democrático de direito e dos direitos humanos. É fundadora e coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito (FEED), e cofundadora do MNE. Atualmente coordena o projeto de comunicação, Papo de Crente (programa radiofônico homônimo e Revista de Estudo Bíblico).

O primeiro culto da Nossa Igreja Brasileira ocorreu no dia 3 de março de 2018 em um espaço cedido pela Igreja Batista Memorial da Tijuca, localizada no bairro da Lapa, próximo ao centro da cidade. No entanto, Rosenilton Oliveira (2021) afirma que o pastor Marco Davi de Oliveira fundou o Ministério Nossa Igreja Brasileira no ano de 2014. Antes da sede atual, a igreja já realizou cultos dominicais na Casa Porto, um estabelecimento gastronômico boêmio localizado no bairro da Saúde, local conhecido como Pequena África. Nas fotos divulgadas nas redes sociais é possível ver os fiéis próximo aos engradados de cerveja, mesa de totó, arcade (ou fliperama) etc. A igreja também teve alguns encontros no Kuzinha Nem, a cozinha vegana solidária da Casa Nem (espaço de
acolhimento LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social, fundada pela militante Indeanarae Siqueira) e também nas dependências do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN).

A igreja tem como principal proposta a valorização da cultura brasileira (brasilidade) em suas múltiplas manifestações culturais. Algo que se expressa inclusive no nome e no logotipo da denominação, que faz referência as cores da bandeira do Brasil (principalmente verde e amarelo), aos pontos turísticos do Rio de Janeiro (Cristo redentor e Pão de Açúcar) e o pandeiro, um dos instrumentos de percussão mais populares do universo do samba.

A proposta de valorização da brasilidade pode ser percebida também em seu cancioneiro constituído por inúmeros ritmos musicais pertencentes as culturas populares afro-brasileira e indígena, como o sertanejo, o xote, o forró, o samba, o maxixe, a bossa nova, o frevo, o jongo entre outros.

Algumas das canções encontrada no cancioneiro trata diretamente da questão racial, como é caso de “Sorriso negro”, em que diz:

Um sorriso negro
Um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego
Fica sem sossego
Negro é a raiz de liberdade
Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio é luto
Negro é a solução
Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade

Percebe-se que a canção “Sorriso Negro” exalta positivamente a negritude, repetindo inúmeras vezes a palavra, “negro”. Em conversa com o pastor Marco Davi de Oliveira, este afirmou que muitas das canções foram compostas por ele mesmo, e isso decorreria da dificuldade de encontrar canções evangélicas que trata da questão racial e social. A maioria das canções evangélicas, de acordo com Marco Davi, seriam voltadas quase que exclusivamente para a dimensão espiritual e individual em detrimento das questões sociais e coletivas.

Um dos esforços da denominação para valorizar a “brasilidade” são as rodas de samba (com músicas seculares) organizadas no espaço da igreja. Em um dos encontros que participei, o pastor Marco Davi no púlpito afirmou que a roda de samba enquanto expressão cultural existe “para a glória de Deus” e que “ali está a graça de Deus”.

Os elementos da cultura afro-brasileira estão presentes na liturgia da igreja, em visita a uma das reuniões, comemorou-se uma festa junina, com decoração característica das festas de rua, com bandeirinhas, balão, vestimentas, paleta cores, comidas típicas (caldo de feijão, paçoca, milho cozido, bolo etc.), ritmo musical, dança e uma reflexão sobre a importância dessa tradição enquanto expressão da cultura popular brasileira, que na percepção de suas lideranças, é uma expressão, sobretudo, afro-indígena. Em certa ocasião desse encontro, o
pastor Marco Davi afirmou que a denominação tem uma “proposta decolonial”, reforçando o argumento de que o cristianismo é diverso e por isso a cultura popular deve ser valorizada, no sentido político da inversão, ou “subversão”.

Entre os argumentos defendidos pelos agentes do protestantismo negro de esquerda é a ideia de que o próprio cristianismo em si é uma religião de matriz africana ou afro-asiática. Parte-se do princípio de que o cristianismo possui uma forte herança cultural africana e que inúmeros personagens bíblicos são de origem africana. Aqui temos algo assemelhado com as propostas de “reafricanização dos espíritos” do movimento estético, filosófico e literário afrofranco-caribenho, Negritude e os pensadores africanos, Amílcar Cabral e Mario Pinto de Andrade, que também deram uma importante contribuição a esse conceito.

Ainda no início de sua formação a NIB organizava encontros semanais com grupos menores denominado de Pequenos Quilombos. Em uma publicação de 2019 na rede social Facebook definia esses grupos de “veículos de formação bíblica, teológica, cultural e política”. O grupo das Mulheres chamava-se Madalenas, o dos homens, Zé João. Esse é um exemplo de como a NIB realiza um conjunto de esforços voltados para questão étnico-racial. Preocupação essa que envolve identidade visual, seleção dos ritmos musicais, manuseio de um conjunto de terminologias específicas, detalhes nos aspectos litúrgicos, seleção e interpretação de passagens bíblicas entre outras.

Os símbolos mobilizados, resgatados, construídos e ressignificados dentro dessa dinâmica, objetivam fortalecer a ideia de uma igreja pautada na experiência negra. E neste sentido a denominação pertenceria ao movimento negro e ao movimento negro evangélico. A NIB se propõe a fazer de forma sistemática um resgate e uma valorização afirmativa e positiva das múltiplas expressões culturais negro africana e indígena. Apresentado, dessa forma, uma narrativa teológica e política contra hegemônica, na sociedade e no campo evangélico.

Rosenilton Oliveira (2021) afirma que no movimento negro evangélico a dinâmica de (re)africanização por meio de um deslocamento do “eurocentrismo” (“deseuropeizá-lo”) e uma recusa do candomblé e outras religiões de matriz africana e enquanto expressão única da africanidade (“descandombletizá-lo”). A NIB também realiza esse duplo movimento a seu modo enquanto defende o cristianismo como uma expressão religiosa afro-asiática, mas sem fazer oposição as outras religiões de matriz africana.

Wallace Cabral Ribeiro

Texto retirado do trabalho de pesquisa de  Wallace Cabral Ribeiro. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF). Realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Protestantismo negro de esquerda – Trabalho completo – Wallace Cabral Ribeiro – 48º Encontro Anual da ANPOCS – 2024

Protestantismo negro de esquerda

 

No final do ano de 2022, o cantor e pastor evangélico Kleber Lucas, em entrevista ao podcast do cantor Caetano Veloso, do canal Mídia Ninja, afirmou que o racismo existente na sociedade brasileira também se expressa nas canções que compõem o hinário das igrejas evangélicas.

Tem um hino que diz: “alvo mais que a neve”, se você aceitar Jesus, você vai ficar branco como a neve. Isso é cantado por brancos e negros  com lágrimas, porque tem uma melodia lindíssima. No final da santa ceia– Você toma santa ceia, eucaristia e canta “alvo mais que a neve”,  porque tem uma melodia, porque o discurso, às vezes nefasto, um discurso de dominação, ele está embalado. Ele tem uma entrega muito boa, de uma melodia linda, de uma memória familiar, de uma memória comunitária, todo mundo cantando de olhinhos fechados, de mãos levantadas ou ajoelhados ou um coro cantando “alvo mais… branco como a neve, branco como a neve”. Porque o sangue de Jesus me torna branco. As ideias de embranquecimento estão lá no hino.” (Kleber Lucas)12

O refrão da referida canção afirma: “Alvo mais que a neve, Alvo mais que a neve, Sim, nesse sangue lavado, Mais alvo que a neve serei”1

Essa reflexão de Kleber Lucas provocou uma reação generalizada entre evangélicos mais conservadores. Influencers e lideranças eclesiásticas se engajaram em uma campanha para negar a existência do racismo nas
comunidades de fé evangélica. Nesse contexto, a fala de Kleber Lucas foi alvo de ridicularização por meio de “memes” e discursos em tom mais bélico e agressivo, descredibilizando suas reflexões teológicas e políticas acerca da dimensão do racismo.

A preocupação com a linguagem racista nas canções evangélicas não é nova, de acordo com Rosenilton Oliveira (2021) essa demanda já se apresentava na criação da Pastoral Nacional de Combate ao Racismo, da Igreja Metodista, na década de 1980. O caso que envolve Kleber Lucas é nosso ponto de partida para refletir sobre a atuação dos evangélicos negros de esquerda engajados na luta política e teológica contra o racismo, certa vez que o próprio Kleber Lucas participa ativamente desse movimento político e teológico/religioso.

O protestantismo negro de esquerda é uma experiência minoritária tanto no interior do evangelicalismo como no espectro da esquerda política. No entanto, os agentes individuais e coletivos são muito atuantes e produzem de maneira sistemática ações diversificadas relacionadas a luta antirracista, como a realização de debates, produção de conteúdo para as redes sociais, lançamento de cartilhas e livros, participação em manifestações de rua, formação de grupos de estudos, cultos, eventos culturais etc.

Entre os objetivos específicos dessas ações identificamos, por exemplo, a demanda em demonstrar que a origem do cristianismo está muito mais vinculada ao continente africano do que o europeu. E parte desses esforços se constitui em expor a presença da África e de personagens negros na bíblia e pela defesa de um Jesus negro (ou de um Jesus não branco). Também verificamos a valorização da ancestralidade pelo resgate de figuras do passado, denunciar a intolerância contra religiões de matriz africana (racismo religioso), apontar o silenciamento da questão racial nas igrejas, afirmar a prática do racismo como pecado, defender as cotas raciais nas universidades e concursos públicos, exaltar positivamente as expressões culturais afro-brasileiras, expor a violência perpetrada pelo Estado contra a comunidade negra (necropolítica), entre outras.

Verificou-se a existência de um campo semântico próprio do protestantismo negro de esquerda, com expressões do tipo “Jesus preto de Nazaré”, “contra o pecado do racismo”, “a bíblia é um livro negro”, “Jesus é preto” entre outras. Ideias, frases, jargões e terminologias que são expressas verbalmente, em estampas de camisetas, na produção teórica escrita, no conteúdo das redes sociais etc.

Os agentes sociais buscam afirmar a negritude e a africanidade de múltiplas formas, uma delas é no próprio corpo físico, por meio de uma estética corporal, conformando uma “estilística” ou “estética da existência” (FOUCAULT, 2004). O corpo é uma espécie de espaço político de afirmação positiva da negritude e da africanidade, isso acontece por meio do uso de dreadlocks (principalmente entre homens); cabelos crespos e cacheados volumosos (principalmente entre mulheres); vestimentas coloridas com estampas africanas; adereços como colares, anéis, brincos, pulseiras, gargantilhas, lenços, turbantes.

Há também as tatuagens com referências ao território continental africano e suas múltiplas expressões culturais, como o sankofa (símbolo adinkra das culturas akan na África ocidental). Em um dos encontros que participei na Nossa Igreja Brasileira, o pastor Marco Davi de Oliveira vestia uma camiseta de cor preta com
a frase estampada com fonte branca, “Sou seguidor do negro da periferia, Jesus de Nazaré”. Muitos dos agentes sociais observados possuem curso superior em diferentes áreas, como teologia, ciências sociais, jornalismo, história, arquitetura, medicina, pedagogia etc. Alguns articulam militância política com pesquisa acadêmica, Rosenilton Silva de Oliveira (2021) já havia percebido em suas pesquisas que parte da atuação política dos agentes sociais do movimento negro evangélico (MNE) é mediada pela pesquisa cientifica.

Percebeu-se que a maioria pertence ou já pertenceu a denominações históricas e missionárias, poucos são ou já foram de igrejas pentecostais. As três igrejas observadas nessa pesquisa que tem um engajamento político antirracista, são denominações de orientação batista, a saber, Nossa Igreja Brasileira, Comunidade Batista de São Gonçalo e Igreja Batista do Caminho. Percebe-se que muitos evangélicos não estão vinculados a nenhuma denominação, como é o caso de um dos entrevistados nessa pesquisa. Os evangélicos que se encontram nessa situação são denominados nesse campo religioso de “desigrejados”. De acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2010 existem mais de 9 milhões de evangélicos sem pertencer a uma denominação, o que corresponde à 4,8% da população brasileira. No Censo este seguimento está agrupado sob a categoria de “não determinados”.

Os evangélicos negros de esquerda produzem intensamente teologias antirracistas, que compõem a denominada teologia negra. As grandes influências teóricas são os autores da teologia negra estadunidense, da teologia da
libertação, da teologia da missão integral, os pensadores anticoloniais, pós-coloniais e decoloniais, da psicanálise, dos estudos culturais, do pensamento social brasileiro, entre outros. A maioria dos pensadores e pensadoras mobilizadas nessas reflexões políticas e teológicas são sobretudo negros, como James Cone, Martin Luther King Jr, Desmond Tutu, Neusa Santos Souza, Lélia Gonzalez, Frantz Fanon, Stuart Hall, Sueli Carneiro, Abdias do Nascimento etc.

De acordo com a pesquisa realizada pelo teólogo Hernani Francisco da Silva (2011), o movimento evangélico negro, tem longa história no Brasil. Teria se iniciado com Agostinho José Pereira, por volta de 1841 quando fundou a Igreja do Divino Mestre na cidade de Recife em Pernambuco. Esse pastor enfatizava em suas pregações passagens bíblicas que condenavam a escravidão e exaltava a liberdade, de acordo com o historiador Marcus Carvalho, “A própria Bíblia tornava-se um instrumento de resistência e não de conformismo” (1998, s,p). O líder também mencionava com certa frequência a revolução haitiana do final do século XVIII (Revolução de São Domingos), alfabetizava pessoas negras escravizadas e libertas. Sua igreja, de acordo com os poucos registros da época, aglutinava cerca e 300 pessoas, sendo majoritariamente negras.

O movimento religioso foi desarticulado por conta de uma série de perseguições, prisões, apreensão de material e interrogatórios de suas principais lideranças. As autoridades policiais enxergavam o Divino Mestre como um sujeito potencialmente perigoso por desconfiarem que havia participado da revolta da sabinada na Bahia, alguns anos anteriores. Não se sabe o que de fato ocorreu com o líder religioso após esse episódio.

A figura de Agostinho José Pereira é mencionada com certa frequência nos debates teológicos e políticos promovidos pelos agentes observados nesta pesquisa. A percepção que os agentes sociais têm desse líder religioso é que seu agenciamento teria afrontado os diversos tabus estabelecidos na época, como a religião, a questão de raça, de classe e educação. Aqui vale ressaltar que os atores sociais em sua atuação e produção de conhecimento reivindicam a existência de uma tradição evangélica que combate a opressão racial.

A publicação do livro Movimento Negro Evangélico: Um Mover do Espírito Santo é um esforço por parte do teólogo Francisco Hernani da Silva de resgatar a memória de personalidades e experiências coletivas que se encontram a margem da denominada “história oficial”. Esse é exatamente o caso do já mencionado Agostinho José Pereira (“o Lutero Negro”) e a Igreja do Divino Mestre, mas também da Mãe Maria (“a Jovem Maria da nação Nagô”), João Cândido (“o marinheiro negro”), Solano Trindade (“o poeta negro”), João Pedro Teixeira (“da Liga Camponesa de Sapé”), por exemplo. A produção teórica, os discursos e as práticas sociais promovida pelos diferentes agentes do protestantismo negro desafia as teorias, as práticas e os discursos hegemônicos ao mesmo tempo que tensionam o debate sobre a questão racial na sociedade e no protestantismo brasileiro. São essas questões que planejamos verificar no caso da denominação, Nossa Igreja Brasileira – Igreja Batista.

Wallace Cabral Ribeiro

Texto retirado do trabalho de pesquisa de  Wallace Cabral Ribeiro. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF). Realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Protestantismo negro de esquerda – Trabalho completo – Wallace Cabral Ribeiro – 48º Encontro Anual da ANPOCS – 2024

CONTRA O PECADO DO RACISMO”: PROTESTANTISMO NEGRO DE
ESQUERDA NA LUTA ANTIRRACISTA