A Bíblia e a África

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Personagens negros apresentados nas Escrituras oferecem lições inspiradoras à Igreja

Por Marcelo Santos

Palavra inspirada e útil para o ensino, como escreveu o apóstolo Paulo a Timóteo (2 Tm 3.16), o Livro Sagrado descreve eventos, diálogos e lições que se desenrolam em um contexto afro-asiático, em que a diversidade étnica e cultural é evidente. Moisés, que passou parte da infância no Egito, e a rainha de Sabá [cujo reino ficava na região hoje ocupada pelo Iêmen], conhecida pela sabedoria e riqueza, são referências de figuras africanas que desempenharam papéis cruciais na história do povo de Deus. A monarca, por exemplo, é descrita como uma governante poderosa que viajou longas distâncias para encontrar o rei Salomão, desafiando estereótipos e destacando a importância de outras culturas na formação da fé israelita.

O Pr. Marco Davi de Oliveira expõe que teologias pautadas na supremacia branca, que não são recentes, “incluem conceitos que contribuíram para solidificar o racismo e os estereótipos racistas, até mesmo dentro da população negra” Foto: Arquivo pessoal

No entendimento do Pr. Marco Davi de Oliveira, da Nossa Igreja Brasileira, no Centro do Rio de Janeiro (RJ), a interpretação do Texto Santo tem sido dominada por uma perspectiva eurocêntrica, ocultando, muitas vezes, a contribuição e a presença de povos africanos nas Sagradas Escrituras. Escritor, autor da obra A religião mais negra do Brasil, e doutorando em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra (Portugal), uma das mais prestigiadas e antigas do mundo, Oliveira ressalta que as teologias pautadas na supremacia branca solidificaram o racismo, tanto na mente dos brancos quanto na dos negros. “De fato, as histórias bíblicas e suas interpretações têm a liberdade de leitura e iluminação. O problema está na interpretação considerada livre”, avalia ele. “Essas teologias, que não são recentes, incluem conceitos que contribuíram para solidificar o racismo e os estereótipos racistas, até mesmo dentro da população negra”, expõe Oliveira.

O estudioso cita como exemplo a chamada maldição de Cam (um dos filhos de Noé) associada à escravidão e à inferioridade racial dos africanos. Segundo essa teoria, Cam, ao ver a nudez do pai, foi amaldiçoado a viver como escravo, e seus descendentes, identificados como africanos, teriam herdado essa maldição. Esse mito racista deturpou textos bíblicos, perpetuando a ideia de que a subjugação dos africanos era uma condição divina e inevitável, cristalizando o racismo e a discriminação.

Por muito tempo, acentua o pregador, essas interpretações foram aceitas como verdades absolutas, firmadas na supremacia branca, a qual determinava a inferioridade dos negros. Além disso, ele acredita que essas perspectivas erradas serviram para justificar a escravidão, sob a ótica de que os negros precisavam ser colonizados e escravizados para se tornarem pessoas melhores. Tal visão, assegura o pastor, foi reforçada por filósofos, como os alemães Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que descreveram os africanos como inferiores e selvagens. “A Bíblia é um livro que escreve a partir dos oprimidos. Nela, encontramos Moisés, filho de Joquebede, que era africana. Moisés não nasceu no lugar que hoje é chamado de Israel, mas na África, não é verdade? Em 400 anos de escravização, muitos libertadores nasceram nesse continente.” [Do editor: Moisés nasceu na Terra de Gósen, território mencionado na Bíblia situado no Delta oriental do Egito]

O empreendedor social Hernani Francisco da Silva destaca a importância dos personagens negros nas histórias bíblicas  – Foto: Arquivo pessoal

Personagens negros – Assim, desde os primórdios, a África está presente nas narrativas bíblicas. O empreendedor social Hernani Francisco da Silva, fundador da Missão Quilombo e da rede social Afrokut, destaca a importância dos personagens negros nas histórias bíblicas e revela alguns que foram protagonistas. “Sofonias, o profeta negro; Simão Cireneu, um homem de origem africana que vivia em Cirene (uma cidade situada no Norte da África), que foi forçado a carregar a cruz de Jesus, mas acabou se tornando um seguidor de Cristo, conforme o texto de Marcos 15.21 registra.”

Hernani ainda aponta Simeão, o Níger [o termo niger significa ‘negro’ em latim], um líder da Igreja primitiva em Jerusalém que impôs as mãos sobre Paulo para enviá-lo ao campo missionário; a africana Zípora, esposa de Moisés e filha de Jetro (Êx 2.21); a rainha Candace, cujo nome aparece quando o evangelista Filipe encontra um chefe dos tesouros da Etiópia (At 8.27). O fundador da Missão Quilombo também faz questão de citar a rainha de Sabá. “Sua fama era tal que, mil anos depois, Jesus Cristo mencionou os feitos dela. Ele disse que ela viera dos confins da Terra para ouvir a sabedoria de Salomão”, afirma, referindo-se à passagem de Mateus 12.42. Por fim, Hernani lembra que termos como etíopes e egípcios aparecem frequentemente na Palavra de Deus, evidenciando a presença africana. “Ler a Bíblia na perspectiva de um contexto afro-asiático contribuiria imensamente para a diversidade racial”, argumenta.

Vanessa Maria Barboza, coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (RMNE), afirma que é importante reconhecer e resgatar a diversidade étnica e racial do Livro Sagrado – Foto: Arquivo pessoal

Diversidade racial – Para Vanessa Maria Barboza, coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (RMNE), é importante reconhecer e resgatar a diversidade étnica e racial do Livro Sagrado. “Quando falamos sobre representação e diversidade nas Escrituras, reivindicamos a pluralidade étnica, cultural e fenotípica dos grupos retratados na Bíblia”, explica. Ela observa que, muitas vezes, as interpretações bíblicas feitas por lideranças religiosas não consideram as características físicas e culturais dos povos reportados, deixando de lado a fidelidade histórica.

Para Vanessa, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos, existe uma multiplicidade de representantes do Oriente Médio, da África e até mesmo do Mediterrâneo e do Extremo Oriente [região que abrange o Extremo Oriente Russo, a China, a Coreia do Norte, a Coreia do Sul, o Japão e Taiwan]. A pesquisadora pontua que essa ausência de reconhecimento das características dos povos bíblicos “é uma falta de respeito à história e à vivência desses grupos étnicos”. Em sua opinião, essa omissão distorce a realidade bíblica.

A coordenadora da RNME critica a forma como grupos missionários, desde o período colonial, impuseram as próprias imagens como representações das Escrituras, criando uma “falsidade” e uma “apropriação” das narrativas sagradas. Vanessa, que é doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), pensa que essa estratégia pedagógica foi usada para subordinar povos africanos escravizados e culturas indígenas, consolidando um imaginário segundo o qual o “povo escolhido de Deus” é predominantemente branco. A estudiosa lembra que a mensagem central da Bíblia é de “um Deus que acolhe e reconhece a diversidade dos povos, sem distinções”.

O Pr. Vanderlei Duarte Júnior ressalta que as comunidades de fé precisam ser espaços de acolhimento: “As igrejas têm o dever de acolher, e não de afastar, especialmente aqueles que foram historicamente marginalizados” – Foto: Arquivo pessoal

Inclusão – O Pr. Vanderlei Duarte Júnior, líder estadual da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em Sergipe, concorda com Vanessa Maria Barboza e ressalta que as comunidades de fé precisam ser espaços de acolhimento. “As igrejas têm o dever de acolher, e não de afastar, especialmente aqueles que foram historicamente marginalizados”, assevera o ministro, enfatizando o papel das congregações na promoção da inclusão racial. Vanderlei, aliás, cita a sua experiência positiva na Igreja da Graça. “Nunca me senti excluído. Pelo contrário, sempre fui bem acolhido pelos meus pastores e líderes, assim como pelo Missionário R. R. Soares. Ele confiou a mim a liderança de um estado quando eu ainda era bastante jovem, com apenas 23 anos.”

Dados do Atlas da Violência 2024, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostram que, no Brasil, o racismo e a exclusão racial continuam sendo problemas graves. Essa edição do Atlas, que compila dados reunidos em 2022, revela que, naquele ano, foram registrados mais de 63 mil casos de violência racial referentes a agressões e discriminações motivadas pela cor da pele e etnia. No estudo, o IPEA demonstrou que a população negra representava 76,5% das vítimas de homicídios.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os evangélicos representam hoje 31% da população do país, e a maioria dos crentes brasileiros (56%) se identifica como pretos ou pardos. Se, por um lado, as congregações evangélicas ainda precisam vencer alguns desafios para alcançar a equidade racial; por outro, na opinião de Vanderlei Duarte, tem havido avanços na inclusão de líderes negros. Mas ele faz um alerta: existe o risco de ocorrerem divisões dentro das igrejas se não houver atenção a esses grupos étnicos.

Entretanto, o líder observa que a exclusão racial não é apenas um problema das igrejas, mas também da sociedade em geral. “Esse estereótipo reflete a imagem projetada pela colonização e pela escravização”, defende Duarte. Ele ressalta que, se alguma igreja exclui pessoas devido à cor da pele, isso ocorre por falta de conhecimento – tal como ensina o texto de Oséias 4.6. “Se um pastor, líder de uma igreja, possui algum tipo de preconceito racial, ele não é dirigido por Deus, e sim por um espírito maligno”, atesta Vanderlei, salientando que as congregações devem se concentrar em cumprir a ordem de Jesus. “Todos, na igreja, devem estar unidos em torno do nosso maior propósito: salvar pessoas”, conclui.

Marcelo Santos é biógrafo, escritor, jornalista Freelancer e Repórter na empresa SESC SP – Revista Problemas Brasileiros.

Fonte:  Revista Show da Fé

O racismo religioso se apropriou até mesmo da bíblia para atacar tudo que vem da África

Interpretações racistas da Bíblia foram base para a escravidão e sustentam o racismo e a intolerância religiosa ainda hoje

Uma parte da história dos irmãos Caim e Abel é muito conhecida: o primeiro matou o segundo por inveja. Mas ela tem outras camadas. Uma delas foi alvo de uma interpretação teológica racista que serviu de base para a escravidão e ainda hoje sustenta o racismo e a intolerância religiosa. Quando Caim assassinou seu irmão, ele recebeu de Deus um sinal. A Bíblia não descreve esse sinal, mas não vacila quanto ao seu objetivo: proteger Caim.

“O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse qualquer que o achasse.” (Gênesis 4.15). É o que diz o trecho. Ainda assim, entre os séculos XV e XVI, teólogos racistas elaboraram um discurso que apontava a marca como negra e sendo um sinal do pecado; que Deus havia tornado Caim um homem negro como punição.

 É nossa tarefa usar a mesma Bíblia para denunciar esses crimes, esse pecado

Segundo Ras André Guimarães, educador popular e pastor da Igreja Metodista Filadélfia, essa não é a única passagem bíblica que foi distorcida nesse sentido. Em um episódio de embriaguez de Noé, Cam, seu filho, o vê deitado nu em uma rede. Ao se deparar com a cena, ele a relata a seus irmãos, o que foi considerado um desrespeito. Quando Noé toma conhecimento do ato de seu filho, ele amaldiçoa seu neto Canaã, filho de Cam.

Noé diz que Canaã seria escravo de seus irmãos. E aí se construiu um discurso de que Canaã seria a África, logo todos os africanos seriam escravos desses irmãos. Então, tanto a maldição de Caim quanto a de Canaã são utilizadas para justificar a escravidão. E aí a gente vai ver todo um processo de ocupação de territórios da América com esse tipo de discurso de que o negro é fruto do pecado.”, explica Ras André.

Segundo o pastor metodista, a insinuação é de que existe uma ordem divina que justifica a exploração desse povo.

E aí qual o grande problema: a mentalidade religiosa, tanto do protestantismo, quanto do catolicismo, vai absorver esse imaginário, essa perspectiva racista, para justificar seu distanciamento com os pretos, descendentes de africanos. A leitura bíblica construída daí pra frente é toda de negação da figura negra”, complementa.

Nessa perspectiva, ele também acrescenta que a igreja cristã não rompeu com essa matriz escravagista.

Quando ela se depara com um país de maioria negra e essa maioria tá numa situação de sofrimento, não há resposta pra essa dor e sofrimento por parte dessas igrejas. Quem vai chorar pelos meninos mortos com 111 tiros? Pelos rapazes presos e torturados no supermercado? Há o imaginário de que aquilo é o destino, permissão de Deus”.

Para ele, todos os textos da Bíblia podem ser usados para combater o racismo:

O texto bíblico precisa ser lido com o viés das práticas de justiça, da mudança que Jesus trouxe. Salvação é as pessoas se livrarem desse inferno, do racismo, da intolerância religiosa. Quem são os samaritanos do tempo presente? São os povos subalternizados de hoje. Estão nas comunidades empobrecidas, na população indígena, nos terreiros de Candomblé.”.

Se uma igreja se coloca como cristã – que tem como sua base a vida, o testemunho, a luta e o serviço de Jesus Cristo – não há como separar o seu papel da luta antirracista. Se não há abraço, acolhimento, se uma criança sofre bullying por ser do Candomblé, a tarefa da igreja é denunciar. Conversar com os/as fiéis, apresentar textos que provocam o senso por justiça. Ouvir os relatos de quem sofre com a intolerância religiosa. Acho que essa é a nossa maior tarefa.”.

E todo esse racismo se estende ao campo religioso.

Em pleno século 21, espaços são depredados, pessoas são impedidas de trabalhar com suas indumentárias, deixam de conseguir um emprego. Tudo por conta de uma mentalidade que foi construída lá atrás, por alguém que usou a Bíblia para dizer que tudo que vinha da África era maldito. É nossa tarefa usar a mesma Bíblia para denunciar esses crimes, esse pecado.”, afirma o pastor.

A intolerância contra as religiões de matriz africana

Iyá Márcia destaca a importância do diálogo inter-religioso na luta contra a intolerância. Ela cresceu vendo sua mãe pedir e dar a benção a pastores/as, reverendas/os, padres.

Eu a questionava, falava que aquelas pessoas não eram do Candomblé e ela respondia que a gente pode tomar a benção de qualquer pessoa. ‘É muito bom ouvir um ‘Jeová lhe abençoe’, ‘Deus te abençoe’, dizia. O diálogo inter-religioso é promotor da paz.”.

O racismo religioso, dentre tantas formas de ataque, traz consigo a demonização das divindades da África. Diz que são “do mal”, mas é algo tão enraizado que as pessoas nem mesmo sabem dizer o porquê de pensarem assim. Foi naturalizado no imaginário social. E é preciso se refletir: religiões como o budismo ou o espiritismo não sofrem ataques como as religiões de matriz africanas. Por vezes, são até romantizadas.

Iyá Márcia de Ogum, ialorixá criada no Candomblé, ironiza a demonização feita por cristãos/as contra as religiões de matriz africana. Ela afirma que os povos de terreiro são acusados de cultuarem o diabo, mas o diabo sequer existe na sua cultura.

Diabo é uma nomenclatura das religiões cristãs. No Candomblé, existe o culto à ancestralidade e aos Orixás – Ogum, Oxum, Oyá, Iroko, logun edé.”.

Como exemplo escancarado de racismo, ela cita o caso da mãe que perdeu a guarda da filha após a jovem passar por rituais de iniciação no Candomblé, em São Paulo.

Só aconteceu porque se tratava do Candomblé. Com qualquer outra religião não haveria essa postura. A gente cresce ouvindo que a Justiça deve ser imparcial, mas a nossa termina sendo tendenciosa quando deixa de ouvir uma mãe para ouvir terceiros/as.”.

Ela também denuncia as estruturas negligentes do Estado para tratar do assunto.

Infelizmente nós não temos delegacias especializadas para receber as denúncias de racismo religioso e tomar as providências cabíveis contra os criminosos no nosso país. Muitas vezes, o/a criminoso/o não é chamado/a para ser ouvido/a no caso. Só se for um flagrante, como aconteceu uma vez com o busto de Mãe Gilda.”.

O busto de mãe Gilda, localizado no parque metropolitano do Abaeté, em Salvador, já foi alvo do racismo religioso na forma da depredação por duas vezes – em 2016, sendo reformado no mesmo ano, e em 2020, à luz do dia e em plena pandemia. No caso mais recente, o agressor disse que atacou a imagem da Mãe de Santo “a mando de Deus”. À época, a ialorixá Jaciara dos Santos, filha de Mãe Gilda, questionou: “que Deus é esse?”.

A CESE na luta e prática antirracista

A CESE entende o racismo como gerador de injustiças contra pessoas negras e sempre apoiou movimentos, organizações e grupos deste segmento. Nos últimos 15 anos, foram cerca de 660 projetos apoiados no campo da luta antirracista, beneficiando 314 mil pessoas com um investimento de 5 milhões de reais. Neste Dia da Consciência Negraa CESE reafirma a sua Política Institucional de Equidade Racial, na qual estão definidas estratégias para a superação do racismo no âmbito da gestão e ação institucionais.

Helivete Ribeiro,  pastora da Aliança de Batista do Brasil e presidenta da CESE, destaca que, como mulher negra evangélica, sabe que o racismo presente na sociedade tem reflexo nas comunidades de fé.

Poucas mulheres negras são pastoras, diaconizas ou seminaristas. Falta representatividade nas igrejas, na história e na tradição cristã, que na maioria das vezes, ainda é apresentada de forma eurocentrada, branca e heteronormativa.”, afirma.

Ela reforça a necessidade de se possibilitar a construção de uma teologia mais inclusiva, incorporando elementos da cultura negra sem demonizá-los, valorizando a identidade negra. 

Como evangélica, entendo que devemos estudar a liturgia universal que aceita todas as pessoas sem discriminação. Não podemos negar que há uma rejeição da herança cultural e religiosa africana que tem levado muitos/as de nós a negar nossa identidade racial para sermos ‘bons e boas cristãs’.’”.

“Como diz Lélia Gonzalez, escritora negra: ‘tonar-se negra é uma conquista’.

Ser mulher negra, pastora evangélica, ativista, divorciada, sim, é uma conquista. Não se trata só de mim. Como presidenta da CESE, me orgulho em fazer parte de uma organização que reconhece a existência dos racismos – institucional, estrutural, ambiental, religioso – na construção histórica do Estado e da sociedade brasileira e atua na defesa e garantia de direitos e tem o compromisso com a luta e a prática antirracista, finaliza a pastora Helivete.

As pastoras Sônia Mota e Bianca Daébs, respectivamente Diretora Executiva e Assessora para Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da CESE reafirmam a importância do diálogo entre as religiões para a promoção da paz.

Posturas exclusivistas, verdades absolutas, demonização da religião do outro não contribuem para uma cultura de paz, que é o que, a princípio, as religiões defendem.”, afirmam,

 Fonte:  CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço

Mulheres Negras: A Luta Evangélica Contra o Racismo e Sexismo

Quando comecei a pensar sobre nós negras evangélicas, lembrei dos filmes hollywoodianos que mostravam a força das mulheres negras escravizadas ou empregadas domésticas, resistindo as “desgraças” entoando cânticos gospel. Isso marcou minha vida, especialmente o filme Imitação da Vida de 1959, onde uma mulher negra, Juanita Moore ajuda uma atriz em início de carreira branca e acaba morando com ela juntamente com sua filha, que tem a pele clara. Durante todo o filme, podemos ver a ascensão da mulher branca, que vive romances. Enquanto a mulher negra, vive o dilema do racismo com a filha que a rejeita por ser negra. Mulher dócil, servil, sem reclamar de nada, cujo sonho era ter um funeral com cavalos brancos.

Quem não se lembra da personagem negra de “E o Vento Levou”, a atriz Hattie McDaniel, que ganhou um Oscar por sua atuação? Ela cuidava da sra. Scarlete. Era brava, às vezes, amava sua sinhá, era extremamente obediente e servil. Hattie não pôde participar da festa do Oscar e nem pôde ser enterrada no cemitério em Los Angeles por ser negra.

Essa imagem da mulher dócil, a mamãe cozinheira, sempre prestativa, persiste até os dias de hoje, especialmente nas igrejas. Quem não conhece uma senhora negra, gentil, que não tem dia, nem hora, nem lugar para ela? Que se sente feliz em estar sempre à disposição do pastor e dos membros da igreja?

As imagens de filmes, das histórias contadas nos flanelógrafos da APEC (Aliança Pró-Evangelização das Crianças), os quadros e vitrais das igrejas tiveram uma forte influência no que entendemos sobre Deus, Jesus Cristo e personagens bíblicos.

“Uma imagem vale mais que mil palavras” – Essa frase, que alguns atribuem a Confúcio, transformou-se em clichê. Repetida bem mais de mil vezes, não perdeu, por isso, sua validade. Ela é especialmente verdadeira quando se trata de cinema. E, mais ainda, quando o cinema é utilizado como arma de propaganda política e controle da opinião pública. Esse é o tema do livro “O Poder da Imagem”, de Wagner Pinheiro Pereira. (https://bit.ly/3pLhsJH extraído em 5/10/2020)

Aprendemos na Escola Dominical que Deus é um homem branco, sentado no trono, com barbas brancas e muitas vezes, com um olhar de superioridade. Jesus Cristo também é branco, de cabelos longos, olhos claros, com um olhar dócil. E o Espírito Santo é representado por uma pomba branca.

Obviamente, poucas vezes, nas histórias e filmes, personagens centrais foram representados e apresentados próximos da realidade. Jesus jamais seria loiro, com pele, cabelos claros e olhos claros, nascendo em Belém. Graças à tecnologia, podemos ter imagens de um Jesus como um homem de pele escura, cabelos curtos, o que, provavelmente, seria o mais próximo do real.

Portanto, as imagens transmitidas durante anos também reforçaram estereótipos para as etnias não brancas e isto atinge especialmente as mulheres negras. Mulheres negras não são retratadas nas histórias bíblicas. Quando o são, aparecem somente as figuras da escrava Agar, Rainha de Sabá e a mulher morena, porém formosa dos Cânticos dos Cânticos.

Sempre foi esperado e suportado nas igrejas protestantes, especialmente nas chamadas “históricas”, que as mulheres negras desempenhassem o papel de figurantes, subalternas, obedientes e gratas por estarem entre os brancos das igrejas. Seu destaque é limitado. É permitido na área do entretenimento, ou seja, nas músicas, nas artes e na culinária. É suportado nas lideranças de mulheres e no cuidado com as crianças, com a organização da igreja e com a ornamentação. Mas não é permitido nas estâncias superiores de decisão.

Foram mulheres negras, muitas nada “boazinhas”, que colaboraram na construção de uma identidade negra nas igrejas evangélicas. Podemos identificar movimentos no Brasil, nas décadas de 80 e 90. Com uma pesquisa mais extensa e profunda, com certeza, encontraremos iniciativas anteriores. Não temos tempo hábil para apresentar todos. Por isso, vamos destacar alguns movimentos importantes.

Por ELIAD DIAS


Parte do artigo “MULHERES NEGRAS: A LUTA EVANGÉLICA CONTRA O RACISMO E SEXISMO“, da Reva. Eliad Dias, presente na REVISTA DE EDUCAÇÃO CRISTÃ PARA ADULTOS com o tema “POR UMA FÉ CONTRA O RACISMO“. A revista com a temática especial “racismo”, foi organizada pelo Rev. Robson de Oliveira, que conta com a contribuição de várias autoras e autores, um material didático para pastoral de combate ao racismo.


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https://afrokut.com.br/por-uma-fe-contra-o-racismo/

Textos bíblicos sobre racismo

Para sermos claros e honestos, a Bíblia não aborda o tema do racismo como nós o entendemos hoje, especialmente contra os negros, que é o tema central desta publicação. Mas tanto o Antigo quanto o Novo Testamentos trazem muitas exortações sobre o amor e o respeito que devemos a todas as pessoas. Mesmo assim, em se tratando de negros, há passagens bíblicas que mencionam a cor da pele ou a procedência étnica de algumas pessoas, sem fazer nenhum julgamento sobre elas por causa disso.

Por exemplo, há diversas personagens nas narrativas bíblicas: Zípora, a esposa de Moisés, de quem falaremos mais abaixo (Êxodo 2.21); Sulamita, em Cântico dos Cânticos 1.5 e 6; a Rainha de Sabá, que veio da África ver e ouvir Salomão (1 Reis 10.1-13); Ebede-Meleque, que tirou Jeremias do poço (Jeremias 38.6-13); Simão, o Cirineu, que ajudou Jesus a levar a cruz (Marcos 15.21); Simão Níger (Atos 13.1); o ofi cial etíope da rainha Candace da Etiópia (Atos 8.26-40).

Apenas a narrativa de Zípora apresenta um problema em relação à cor da pele, como trataremos mais adiante. O protesto da Sulamita de ser “negra como as tendas de Quedar” também parece dirigido para pessoas que, de alguma forma, estão se indignando contra ela. Mas essa passagem necessita de uma atenção que não podemos dar neste espaço. Os demais textos citados apenas mencionam o fato dos personagens serem negros.

É bastante óbvio, entretanto, que podemos derivar desses trechos bíblicos conceitos de respeito, participação e comunhão de todos os povos no Reino de Deus. E você faria bem se pudesse estudar as citações acima a partir deste viés.

Por JOSÉ ROBERTO CRISTOFANI


Este texto é parte do artigo “Leitura Bíblica Antirracista“, de José Roberto Cristofani, presente na REVISTA DE EDUCAÇÃO CRISTÃ PARA ADULTOS com o tema “POR UMA FÉ CONTRA O RACISMO“. A revista com a temática especial “racismo”, foi organizada pelo Rev. Robson de Oliveira, que conta com a contribuição de várias autoras e autores, um material didático para pastoral de combate ao racismo.


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Como a igreja pode, de fato, se inserir em uma luta antirracista

Neste cenário difícil e desigual, que é efeito dos longos anos de escravização no Brasil, o que podemos fazer, enquanto igreja, para uma sociedade que não seja racista?

Angela Davis, socióloga norte-americana e militante do movimento social negro nos EUA, dizia que: “Não basta não ser racista, tem que ser antirracista”.

Neste ponto, nossos irmãos estudiosos da Teologia Negra têm muito a nos ensinar, como, por exemplo, o Lutero Negro (sec. XIX), Agostinho José Pereira. Homem negro alforriado da escravização que se converteu ao protestantismo e fundou uma igreja cujo o objetivo era comprar a alforria de mulheres negras e homens negros, e ensiná-los a ler a bíblia. Ele alcançou mais de 300 pessoas com esse lindo projeto! 

É exatamente isso que a Teologia Negra, que será apresentada no decorrer desta revista, representa. Ela faz uma leitura da Bíblia na perspectiva do povo oprimido. O Lutero Negro entendeu que essas pessoas precisavam de Jesus, e precisavam também de liberdade. Entendeu que precisavam saber mais de Deus, e precisavam aprender a ler para terem uma vida digna.

Temos, também, o Rev. Martin Luther King que usou o seu púlpito para denunciar o racismo nos EUA. Ou Rosa Parks, mulher batista que, com uma atitude, marcou a luta antirracista nos EUA (ela não se levantou de um assento reservado para “brancos” em um ônibus). Recentemente, faleceu o Rev. James Cone que juntou a espiritualidade e a ação – ambas baseadas na Bíblia – para combater o racismo! Ou Soujourner Truth (A Peregrina da Verdade), ex-escravizada que viajou pelos EUA falando de Jesus e lutando contra o racismo, além de ser a primeira mulher negra nos EUA a vencer um processo judicial contra um senhor de escravos.

Por SIMONY DOS ANJOS


Este texto é parte do artigo “RACISMO ESTRUTURAL: UM PROBLEMA DE TODOS E TODAS“, de Simony dos Anjos, presente na REVISTA DE EDUCAÇÃO CRISTÃ PARA ADULTOS com o tema “POR UMA FÉ CONTRA O RACISMO“. A revista com a temática especial “racismo”, foi organizada pelo Rev. Robson de Oliveira, que conta com a contribuição de várias autoras e autores, um material didático para pastoral de combate ao racismo.


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Os protestantes na luta contra o racismo

Os protestantes somente se firmaram no Brasil a partir da segunda metade do século XIX. Em sua maioria, os missionários enviados à América Latina eram norte-americanos. Principalmente os procedentes do Sul dos Estados Unidos chegaram ao Brasil defendendo a escravidão e utilizando negros para trabalhos domésticos. Vale lembrar que, de alguma forma, esses sempre foram a favor da escravidão negra, uma das bandeiras de lutas na Guerra Civil Americana entre Estados do sul e Estados do norte dos Estados Unidos.

É importante considerar que, entre os protestantes brasileiros, o Rev. Eduardo Carlos Pereira, como já mencionamos, que era pastor presbiteriano, notabilizou-se pelo seu veemente protesto contra o racismo e a escravidão. Em 1886, Pereira publicou um livreto sob o título A Religião Cristã em suas relações com a escravidão, tendo em vista que, na época, metodistas, batistas e presbiterianos eram donos de escravos.

Na religião protestante, a mensagem dos púlpitos ainda traz em sua retórica expressões como “o negro e rude pecado”; e nos cânticos também aparecem frases como “negros batalhões”, “meu coração era preto; mas Cristo aqui já entrou; com seu precioso sangue; tão alvo assim o tornou”. A Aliança pró Evangelização de Crianças (APEC),
por exemplo, adota em seu trabalho didático, o chamado “Livro sem Palavras”.1

Entre as cores referidas nesse material, está o uso do preto, que pode induzir a criança a rejeitar-se, quando negra. O preto aparece aqui como símbolo do pecado. Considerando as críticas em relação a essa posição, a APEC substituiu a palavra “preto” por “sujo”. Tal mudança faz-nos pensar que “preto” equivale a “sujo” ou “sujeira”! Em livros de ética cristã e teologia, a frase “homens de cor” continua aparecendo, até mesmo em textos escritos contra o racismo.2 Certamente, há autores e tradutores que acreditam que existem homens sem cor, os brancos! 

Há, contudo, registros históricos signifi cativos sobre atuações de evangélicos no combate à escravidão e ao racismo. Embora parte dos missionários norte-americanos fosse indiferente a tal problema social ou até favoráveis à existência de escravos, vários documentos da época (século XIX) mostram que havia entre protestantes grande preocupação em relação à escravidão. Alguns fatos ilustram essa participação de protestantes.

O Prof. Duncan Reily, em sua “História Documental do Protestantismo no Brasil”, relata que Robert Kalley, da Igreja Evangélica Fluminense, em 3 de novembro de 1865, fez um sermão dirigido a um membro de sua igreja que se negava a libertar seus escravos. Por esse irmão não atender sua exortação, foi expulso da igreja. Tal rigor mostra o zelo do missionário na luta contra a escravidão. Em sua missão no Brasil, Kalley mostrou que aquele sermão contra a escravidão não era apenas um fato isolado. Dedicou-se a combater o problema em classes bíblicas de crianças e negros, evangelizando-os, ao mesmo tempo.

Vale ressaltar a contribuição de Ashbel Green Simonton, missionário presbiteriano que deu início ao trabalho de sua Igreja no Brasil, foi também fundador do jornal “Imprensa Evangélica”, periódico amplamente lido a partir de 1864, onde publicou vários artigos contra a escravidão. Referimo-nos também ao romancista Júlio Ribeiro, da Igreja Presbiteriana de São Paulo que, ao apresentar para o batismo um pequeno escravo, logo o libertou e, de igual modo, a sua mãe. Foi o primeiro menino escravo batizado, com registro nas atas da Igreja Presbiteriana em São Paulo e que recebeu, juntamente com a sua mãe, Carta de Alforria.

Lembramos também a participação da presbiteriana Amélia Dantas de Souza Melo Galvão (D. Sinhá Galvão), na luta contra a escravidão. Amélia foi mulher apaixonada pelo tema da libertação. Dotada de raros predicados, fez parte de várias comissões temáticas sobre a libertação dos escravos. Filha de José Damião de Souza Melo, um português radicado em Mossoró, no Rio Grande do Norte, foi protagonista dessa luta ao dar Carta de Alforria a várias mulheres escravas. Morreu em 1980 e deixou como legado sua contribuição para que Mossoró se tornasse a primeira cidade a libertar seus escravos, muito antes da Lei Áurea.

Apesar desses testemunhos que marcam a história de protestantes contra o racismo e do esforço e trabalho do Rev. Eduardo Carlos Pereira contra a escravidão, no fi nal do século XIX, essas atuações não têm inspirado nossas igrejas na luta contra o racismo, em especial a IPI do Brasil, para um projeto de luta contra o racismo na sociedade e na própria igreja. Os púlpitos permanecem em silêncio sobre esse pecado! O ministério pastoral em geral comporta-se como se o problema do racismo não existisse em suas comunidades. Pouco se escreve e pouco se fala contra o pecado do racismo.

1. Leontino Farias dos Santos, “Educação: Libertação ou Submissão”, p.118

2. Veja-se em E. C. Gardner, “Fé Bíblica e Ética Social”, São Paulo, ASTE, 1965, p. 402. Também no texto “Albert Schweitzer por ele
mesmo”, publicado pela Martin Claret Ltda., São Paulo, 1995, p. 29, entre outros.


A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil tem no Rev. Eduardo Carlos Pereira, que foi um de seus fundadores, uma grande referência de luta contra o racismo. Em 1886, Eduardo Carlos Pereira publicou um livreto com 44 páginas, sob o título “A religião cristã em suas relações com a escravidão”. Nesse trabalho, tendo como fundamento bíblico textos do Antigo e do Novo Testamentos, Pereira denuncia a escravidão como pecado, critica o sistema escravista como injusto, como uma afronta a Deus e ao ser humano e, profeticamente, apela para os crentes no sentido de que libertem os seus escravos. Também desafi a os pastores de sua época no sentido de que não fi quem em silêncio diante desse pecado.

Textualmente ele observa:

“Por que o silêncio medroso ante um crime tão grave? O silêncio do púlpito não é prudência: é infi delidade. Pregue-se o Evangelho… e no dia que ele plantar-se no coração do senhor (de escravos) cairão por terra as cadeias de seus escravos…”.

O momento histórico no qual o livro de Eduardo Carlos Pereira foi lançado era de discussões e lutas contra a escravidão, sendo esta uma das fortes expressões do racismo contra os negros no Brasil.


Este texto é parte do artigo “A IPIB e o Racismo“, de Leontino Farias dos Santos, presente na REVISTA DE EDUCAÇÃO CRISTÃ PARA ADULTOS com a temática “POR UMA FÉ CONTRA O RACISMO“. A revista com o tema especial “racismo”, foi organizada pelo Rev. Robson de Oliveira, que conta com a contribuição de várias autoras e autores, um material didático para pastoral de combate ao racismo.


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Por uma fé contra o racismo

 

Negros evangélicos em movimento

Reconstruir a história do Movimento Evangélico Brasileiro é uma tarefa complexa, sobretudo porque este é um processo ainda em andamento, com suas fronteiras borradas. Essa dificuldade parece ser maximizada na medida em que olhamos com maior vagar para o interior do próprio campo religioso cristão não católico, nomeado genericamente de “evangélico”. Entretanto, assim como os católicos que, apesar das divergências e das múltiplas facetas da sua militância negra, é possível observar uma espécie de fio de Ariadne que conduziu seus agentes, no campo evangélico há também uma diversidade de concepções sobre os direcionamentos das políticas voltadas para a população negra. No contexto evangélico, portanto, o combate ao racismo no interior das igrejas, em particular, e na sociedade em geral, pode ser tomado como o ponto de convergência dessas inciativas.

Pode-se falar em Movimento Negro Evangélico (MNE) na medida em que se tem como referencial um conjunto de ações desenvolvidas por grupos consolidados ou em construção cujos agentes são pessoas que se autoclassificam como “evangélicas” e negras (pretas ou pardas, de acordo com a nomenclatura adotada pelo IBGE) e os destinatários são os negros, em geral, e aqueles que participam de alguma igreja. Tais ações têm em comum o fato de serem organizadas a partir de certa orientação teológica-pastoral de inspiração protestante. Isso significa que, mais do que tratar de um grupo especifico, para compreender o MNE é preciso, antes de tudo, mapear as diversas iniciativas presentes nas várias igrejas para, em seguida, proceder a análise de suas estruturas. No mais, é importante tomá-lo como um processo em construção e não como um projeto consolidado, diferente da Pastoral Afro-brasileira, no caso católico.

Nesse texto será apresentado de maneira panorâmica o estado da arte do campo afro-evangélico, ressaltando a historiografia do MNE e alguns de seus agentes paradigmáticos. Os dados que seguem foram recolhidos durante a pesquisa de campo, que privilegiou a produção escrita dos agentes evangélicos, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut que reúne exclusivamente negros e negros evangélicos) além de conversas informais.

Reconstituir a trajetória do Movimento Negro Evangélico implica, em alguma medida retraçar a trajetória de seus agentes paradigmáticos e de algumas instituições. Metaforicamente pode-se dizer que o MNE é uma rede que interconecta tais atores. Partindo aleatoriamente de um de seus elementos tentaremos evidenciar os nós de significado que a compõe.

Hernani Francisco da Silva, paraibano de família católica, converteu-se à Igreja Congregacional (portanto pentecostal) aos quinze anos de idade, dois anos mais tarde tornou-se membro da Igreja evangélica O Brasil para Cristo (também pentecostal); Segundo entrevista concedida ao programa Análise Direta da rede RIT – Rede Internacional de Televisão, no dia 09 de dezembro de 2009, sua “segunda conversão” foi “despertar sua negritude”, a qual ocorreu durante a marcha nacional em comemoração ao centenário da abolição formal da escravidão no Brasil, realizada no dia 13 de maio de 1988. Embora tenha se deparado com ela de maneira ocasional, foi a partir desse momento que se sentiu impelido a desenvolver um trabalho voltado ao combate ao racismo no interior do campo religioso evangélico. A sua experiência como fellow na Ashoka, o capacita para atuar como empreendedor social atuando, sobretudo no campo dos direitos humanos tendo como público preferencial os negros.

Em 23 de janeiro de 1991, com o auxílio de outras pessoas fundou a Sociedade Cultural Missões Quilombo, cujo objetivo principal é “modificar a visão que as igrejas evangélicas têm da cultura negra” (SILVA, 2011, p. 45). Embora esteja localizada no âmbito de uma igreja pentecostal (O Brasil para Cristo) possui integrantes de outras denominações e tem desenvolvido ações que extrapolam por vezes o campo evangélico. Em parceria com o antropólogo norte-americano John Burdick, Hernani tem realizado um mapeamento das iniciativas desenvolvidas por evangélicos no combate ao racismo e discriminação.

De fato, a militância desenvolvida por Hernani Silva revela uma tentativa de regaste da presença negra nas raízes do cristianismo, ao mesmo tempo, em que
denuncia o que considera uma “teologia evangélica racista”, nesse sentido, várias são as ações que remetem à história do negro no Brasil de maneira geral, e especificamente, no protestantismo, tendo destaque a criação da rede de relacionamentos virtual Afrokut e a publicação do livro O movimento Negro Evangélico – um mover do Espírito Santo (pela Selo da Negritude Cristão em 2011).

Conforme fora dita acima, a pluralidade do campo protestante impede o estabelecimento de organismos que concentrem todas as ações e agentes do Movimento Negro Evangélico, diferentemente do catolicismo que, embora conte com três grandes grupos (Pastoral Afro-Brasileira, Instituto Mariama – que reúne diáconos, padres e bispos negros – e o GRENI – Grupo de Religiosos e Religiosas Negros e Indígenas) possui políticas coordenadas, já que parte significativa dos seus integrantes circulam nos três grupos, desenvolvem ações em conjunto e, sobretudo, pertencem à mesma instituição religiosa. No caso evangélico, há várias iniciativas para reunir os militantes negros, uma das primeiras delas foi o Fórum de Afrodescendentes Evangélicos criada no MSN (em 2002), dada as limitações desse serviço de mensagens e com a popularização da rede social Orkut no Brasil

muitas comunidades surgiram nesta rede social de relacionamento, as que mais se destacaram foram Negros Cristãos, com mais de cinco mil membros, o Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos – CNNC, Negros Evangélicos, Negros sim!! Somos cristãos, Movimento Negro Evangélico, Teologia Negra, entre muitas outras (SILVA, 2011, p. 15).  

Têm em comum essas “comunidades virtuais” o fato de reunirem evangélicos de várias denominações, na tentativa de estabelecer um canal de comunicação entre os vários agentes, a troca de informações e, em alguma medida, possibilitar a realização de atividades em conjunto, justamente porque a marca principal do Movimento Negro Evangélico é a descentralização de suas ações. Descentramento este fruto menos do desejo dos atores envolvidos e mais da própria configuração do campo protestantes, que se apresenta de maneira fragmentária e plural.

Com a decadência do Orkut, muitos grupos migraram para outras plataformas virtuais como o Facebook, Youtube, Twitter, Wiki etc. E no bojo desse movimento de apropriação das redes sociais, Hernani Silva cria o Afrokut em 2008.

O Afrokut reúne não apenas evangélicos negros e instituições. Como uma rede de relacionamento possibilita o intercâmbio entre seus membros, a criação de subcomunidades de acordo com interesses convergentes (inclusive a plataforma permite criar fóruns de discussões, blogs e lojas virtuais), além de possibilitar a realização de cursos, palestras e reuniões on line. Conta hoje com mais de três mil membros cadastrados, segundo o seu fundador.

Foi justamente por sua atuação à frente da Sociedade Cultural Missões Quilombos e do Afrokut, que Hernani Silva foi agraciado com o prêmio Direitos Humanos, outorgado pelo Governo Federal brasileiro (em 2000), além de outras honrarias. Entretanto, o reconhecimento de seu trabalho na articulação dos evangélicos negros nem sempre encontra respaldo na hierarquia eclesiástica, haja vista que não é sacerdote, portanto, as alianças estabelecidas com pastores e bispos, intelectuais e agentes de outras denominações são fundamentais para um maior desenvolvimento de suas ações no interior das igrejas. Tendo-se em conta que sua origem religiosa é pentecostal e a maior parte dos atores do MNE pertencem às igrejas protestantes históricas, há sempre por parte de Hernani a tentativa de dar sempre um caráter ecumênico às suas ações.

Esse esforço de congregar as várias iniciativas do MNE impulsionou Hernani Silva a publicar o livro O movimento negro evangélico, em 2011. Nessa obra, o autor procura retraçar a história do movimento. Esse exercício não é inédito no processo de resgate identitários, sobretudo, porque se cristalizou a ideia de que a “história oficial” invisibilizou esses agentes.

Nesse sentido, há também uma tentativa de reescrita da presença evangélica no Brasil. Por exemplo, enquanto a história oficial considera o início do protestantismo no país, no ano de 1858, com a fundação da Igreja Fluminense pelo revendo Roberto Kalley; em O movimento negro evangélico, a gênesis está no ano de 1841, quando o pregador negro Agostinho José Pereira, funda a Igreja do Divino Mestre. Apelidado de “Lutero Negro”, o fim desse pregador e sua igreja é desconhecidos, conta–se, porém, que ele teria sido preso e deportado (SILVA, 2011, p. 9). Mas, se o recuo histórico for maior, Hernani (SILVA, 2011) aponta que a primeira Pastoral Negra Protestante no Brasil nasce das pregações de “Mãe Maria”, uma africana nagô, nascida na África por volta de 1825, e adquirida como escrava pelo pastor Voges, em 1846, fora alfabetizada e aprendeu alemão com a senhora Elisabetha, sua proprietária. Assim, no rol das lideranças negras brasileiras, figuram membros de igrejas protestantes: João Candido (Igreja Metodista de São João de Meriti, liderou a revolta da chibata, no Rio de Janeiro, em 1910); Joao Pedro Teixeira (igreja Evangélica Presbiteriana, fundou a Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba); Solano Trindade (poeta, foi diácono na Igreja Presbiteriana), o qual “decepcionado com o distanciamento do protestantismo com as questões sociais, incluindo a discriminação contra os negros, deixou a igreja, justificando sua saída com um versículo da própria Bíblia “Se não amas a teu irmão, a quem vês, como podes amar a Deus, a quem não vês’?” (SILVA, 2011, p. 12).

Na segunda parte do livro, Hernani Silva volta-se não mais para personalidades específicas, mas iniciativas coletivas. No capitulo O Movimento Negro Evangélico Contemporâneo considera os anos 1970 e 80 como paradigmáticos, pois é nesse momento vem à luz diversas iniciativas institucionais e muitos “despertam” para sua negritude. Recorde-se que o próprio autor localiza sua “reconversão” em 1988.

Assim como ocorreu com o Movimento Negro Católico, e com os religiosos afro-brasileiros, o período de dedemocratização do Brasil, impulsionou as minorias (sobretudos negros e indígenas) a se reorganizarem para desenvolverem ações de combate as injustiças sofridas. Alguns evangélicos não ficam alheios a esse contexto político-social.

Dentre as várias iniciativas podem-se destacar as ações da Igreja Metodista, que foi a primeira a oficializar, em 1985, uma Comissão Nacional de Combate ao Racismo, que havia sido criada anos antes (1973) por iniciativa de fiéis oriundos de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. (BRANCHINI, 2011, p. 20). O reconhecimento dessa comissão só ocorreu doze anos após a sua criação, pois se temia que esse tipo de discussão provocasse um cisma na Igreja (FAUTINO, 2014). Foi sob a gestão do reverendo Antonio Olímpio Sant’Ana na Secretaria de Ação Social da Igreja Metodista que houve essa oficialização, que passou a ser chamada de Pastoral Nacional de Combate ao Racismo, cujo objetivo era

identificar linguagem racista na hinologia e na própria literatura produzida pela igreja e capacitar lideranças para atuarem nas diversas regiões eclesiásticas. Nessa mesma década, foram criadas as Pastorais Regionais de Combate ao Racismo em quase todas as regiões eclesiásticas, que desenvolveram importante trabalho de conscientização no seio das igrejas locais. Também surgiram neste período o Coral Resistência de Negros Evangélicos, em São Paulo (1988), e o Centro Ecumênico de Cultura Negra, em Porto Alegre.

Metodista natural de Rio Piracicaba (MG), o revendo Sant’Ana, em entrevista concedida à Revista Raça Brasil (FAUTINO, 2014), afirma que a “A religiosidade é a maneira de se chegar e vislumbrar o Ser Supremo. Minha religião é Metodista, mas a minha espiritualidade é negra. Antes de ser metodista e cristão, sou negro.

Esse texto é parte da Tese: A cor da fé: “identidade negra” e religião para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.

Autor: Rosenilton Silva de Oliveira.

Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em convenio de dupla-titulação com a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais (Antropologia Social).

Orientador: Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva
Co-orientadora: Prof.ª Dra. Emmanuelle K. Tall  

Para ler a Tese completa baixe o arquivo em PDF:

BAIXAR A cor da fé: “identidade negra” e religião

Produção científica sobre o Movimento Negro Evangélico

Protestantismo e negritude

Uma grande contribuição bibliográfica que trata da questão negritude-protestantismo é a tese de doutorado de Elizete da Silva. Um dos temas trabalhados é a questão da discriminação racial entre os protestantes, mais especificamente, entre os anglicanos e batistas independentes. Seu recorte cronológico abrange o contexto baiano no período que vai de 1880 a 1930.

Para a autora, um dos pontos que devemos considerar, ao analisar a ética e prática protestante, é a distância que existe entre o discurso e a prática desse grupo. Isto é, “as diferenças entre o concebido teologicamente e a vivência cotidiana dos fiéis, inclusive do próprio clero”, oposição claramente observada nas documentações trabalhadas.

Elizete Silva observou que embora o discurso teológico ensinasse sobre a unidade de todos os seres humanos, sem distinção, era possível perceber posicionamentos que deixavam escapar o preconceito contra os negros e, portanto, a distinção entre as pessoas. Um bom exemplo apontado pela autora é o texto de uma revista do clero anglicano escrita em 1908, em que o articulista dizia que o negro devia ocupar seu lugar, que não era certo desejar lugares que ele não poderia ocupar e encerra dizendo:

“o problema com o negro é que ele está o tempo todo tentando obter reconhecimento, quando o que devia estar fazendo é obter algo para reconhecer”.

Outros documentos analisados pela pesquisadora, como cartas escritas por reverendos anglicanos, deixam escapar concepções racistas, por exemplo, quando descreviam a estrutura física dos negros comparando-os com animais selvagens, ou mostrando-os como intelectualmente inferiores, ou, até mesmo, como grosseiros e incapazes de boas maneiras civilizadas, etc.

Elizete Silva aclara que algumas atitudes em favor do escravo, por parte dos batistas, podiam ser percebidas. Como o caso citado pela autora, de um escravo que freqüentava a igreja batista de Salvador, mas foi proibido por seu ‘dono’ de assistir aos cultos. Diante dessa situação, os membros da igreja decidiram comprar a liberdade do escravo. Atitude que não pode ser interpretada como uma posição política dos batistas contra a escravidão, pois não houve nenhum tipo de ação coletiva nesse sentido. De acordo com a autora,

“a alforria do irmão escravo fazia parte de uma estratégia evangelística e não uma ação política mais abrangente que questionasse o escravismo enquanto sistema econômico, baseado na propriedade de seres humanos, como mão-de-obra servil.”

Após 1888, com a abolição oficial da escravatura brasileira, contraditoriamente, os batistas passam a condenar a escravidão por ser incompatível com a fé cristã. Os batistas compartilhavam da versão difundida pela historiografia oficial, interpretando a abolição como uma sucessão de medidas naturais tomadas pelos governantes, desconsiderando as lutas e resistências dos negros.

Por se centrarem na salvação das almas perdidas, poucos refletiram sobre as reais condições sociais e políticas vivida pelos negros e demais brasileiros.

Esse texto é parte do artigo: “Religião e negritude: discursos e práticas no Protestantismo e nos Movimentos Pentecostais”. Autora Cristina Kelly da Silva Pereira.

Imagem: Pregação de David LivingstoneSociedade Missionária de Londres – Crédito: Wikimedia Commons, o repositório de mídia livre – Esta imagem é de domínio público porque seus direitos autorais expiraram e seu autor é anônimo.

https://afrokut.com.br/producao-cientifica-sobre-o-movimento-negro-evangelico/

Qual é a cor da “religião mais negra do Brasil”? O Movimento Negro Evangélico

 

O tema da identidade cultural negra sempre foi espinhoso para as igrejas evangélicas e agravou-se, nas últimas décadas, com o ataque dos neopentecostais e das igrejas de outros segmentos contra as religiões afro-brasileiras e seus símbolos.

Se, nos Estados Unidos, as igrejas protestantes negras foram um importante espaço para a tomada de consciência étnica e a luta pelos direitos civis, no Brasil, nem de longe se constituíram com esse perfil.40 Primeiro, pela própria especificidade do racismo brasileiro. Segundo, pelas dificuldades para se identificar o que pode ser definido como “heranças negras ou africanas” na chamada “cultura mestiça” brasileira. E, terceiro, pelo tipo de missão evangelizadora dessas igrejas que enfatiza a universalidade do acesso aos dons do Espírito Santo e da prática de sua fé. Não podendo haver, nesse coletivo de irmãos convertidos, ódio, diferença e discriminação por qualquer motivo, inclusive a cor da pele, a missão de conversão tornar-se-ia o principal objetivo da ação proselitista cuja consequência natural seria a constituição de uma ordem social mais justa. Essas igrejas, portanto, mesmo tendo vivido sob um regime de exceção, como o período da ditatura militar, se mantiveram, com raras exceções, impermeáveis à influência de ideologias políticas de esquerda, ao contrário da Igreja Católica, com a Teologia da Libertação e as CEBs. Na verdade, as igrejas evangélicas temiam e combatiam o comunismo por sua pregação materialista e antirreligiosa. E, mesmo em período recente, após a redemocratização, a eleição de políticos evangélicos conservadores demonstra que essa tendência se manteve no perfil das igrejas que os apoiam.

Mas a ausência de um movimento negro no campo evangélico não significa que os problemas relativos à identidade negra não sejam postos nesse campo e que ações e iniciativas não sejam tomadas por parte de lideranças e religiosos negros visando à sua organização.41

Indícios de iniciativas recentes podem ser identificados, como apontou Burdick,42 em atuações pessoais, como a de Benedita da Silva, líder negra e evangélica, que foi eleita e participou da Subcomissão dos Negros, das Populações Indígenas e Minorias da Assembleia Nacional Constituinte (1988), e coletivas, como as denúncias de racismo, ainda que eventuais, feitas nos meios de divulgação e proselitismo das igrejas evangélicas. Ou, ainda, de forma mais sistemática, na criação de grupos de reflexão e militância negra surgidos no final dos anos de 1980, por ocasião do centenário da abolição. Foi nesse período que o movimento negro procurou congregar os diversos grupos voltados para a população negra, inclusive os de confissão religiosa. Surgiram, desde então, a Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo (CENACORA), em 1985, integrada ao Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), e inúmeras outras organizações: Comunidade Martin Luther King Jr. (da Igreja Pentecostal Cristo em Deus), em 1985; Missão Quilombo (da Igreja Pentecostal Brasil para Cristo), em 1991; Pentecostais Negros do Rio de Janeiro etc.43 Atualmente, por meio de grupos dessa natureza, fóruns de discussão, sites de divulgação, redes sociais, como a Rede Afrokut, lançada em 2008, entre outras iniciativas, têm se configurado o Movimento Negro Evangélico. Entretanto, a desarticulação entre as tendências e a falta de consenso entre as diversas denominações têm sido alguns dos seus maiores desafios.

No livro O movimento negro evangélico, Hernani Francisco da Silva define a missão do movimento como sendo a de “promover a reflexão e o debate bíblico/teológico em uma perspectiva negra e combater toda forma de racismo”.44 Reconhece que as diversas denominações cristãs foram, ao longo da história e em diversos contextos, coniventes com a escravidão e o racismo, mas registra a existência de lideranças evangélicas que se opuseram ao racismo e, em referência a elas, o movimento evangélico poderia traçar sua origem ou buscar inspiração para atuar. Lembra, inclusive, que o iniciador do movimento pentecostal nos Estados Unidos, na primeira década do século XX, foi um pastor afro-americano, William Joseph Seymor, que acolheu em sua igreja brancos e negros indistintamente. Entretanto, os ensinamentos de Seymor teriam se perdido com a transformação causada pela presença de lideranças brancas. Para Silva, essas lideranças teriam sido responsáveis pela implementação, no Brasil, de um “pentecostalismo branco racista norte-americano de viés reformado”, no âmbito do qual os valores ocidentais brancos são vistos como superiores e os de outros povos não brancos são desqualificados teologicamente e demonizados: “Os valores e a cultura ocidental são divinos modelos para todos os povos e as outras culturas não são de Deus, são do diabo, como a cultura afro”.45

E mais, as igrejas neopentecostais reforçariam o viés racista ao introduzir pontos teológicos, como a teoria da prosperidade, maldições heréticas e batalha espiritual.

Na Doutrina da Prosperidade se mede o crente abençoado por seus bens, onde de uma maneira simplista se faz um diagnóstico da situação do povo negro: “é pobre porque é pecador e é oriundo de um continente idólatra e praticante da bruxaria”. Segundo as maldições heréticas, o povo negro é considerado uma raça maldita e para que o negro se livre desta maldição (aceitar Jesus não é suficiente) é necessário que ele faça uma espécie de cura interior se desvinculando de todos os seus antepassados, ou seja, não sendo mais negro. […] A Batalha Espiritual reforça a demonização do povo negro: se olharmos cuidadosamente nos livros que tratam do assunto […] veremos que no exército de Deus são todos brancos e louros e no exército do diabo são todos pretos e negros. (grifos meus).46

Um ponto de dissenso é exatamente o lugar atribuído às heranças africanas, principalmente às religiões afro-brasileiras, na agenda de luta do movimento negro evangélico. Ainda segundo o pastor Hernani, para muitos, a questão da demonização impede o diálogo entre igrejas e terreiros, diálogo que poderia ser uma ferramenta útil para a superação do racismo e da intolerância religiosa.47


40 Para uma comparação entre pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos, cf. Marcia Contins, “Tornando-se pentecostal: um estudo comparativo sobre pentecostais negros nos EUA e no Brasil” (Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995); Marcia Contins, “Pentecostalismo e umbanda: identidade étnica e religião entre pentecostais negros no Rio de Janeiro”, Interseções, n. 2 (2002), pp. 83-98; Marcia Contins, “Convivendo com o inimigo. Pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos”, Caminhos, v. 1, n. 2 (2003).

41 Mesmo porque os grupos evangélicos têm na população pobre (e, portanto, negra) sua maior base de apoio.

42 John Burdick, “Pentecostalismo e identidade negra no Brasil: mistura possível?”, in Yvonne Maggie e Claudia Barcellos Rezende (orgs.), Raça como retórica. A construção da diferença (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), p. 189.

43 Burdick, “Pentencostalismo”; Hernani Francisco da Silva, O movimento negro evangélico. Um mover do Espírito Santo, São Paulo: Negritude Cristã, 2011.

44 Silva, O movimento, p. 16.

45 Silva, O movimento, p. 23.

46 Silva, O movimento, p. 25.

47 Silva, O movimento, p. 26.

Imagem: Uma mulher levanta as mãos durante um culto inter-religioso na Igreja Batista Ebenezer, a igreja onde o reverendo Martin Luther King Jr. costumava pregar. David Goldman / AP



O Movimento Negro Evangélico: história, desafios e perspectivas

Hernani Francisco da Silva, no livro “O Movimento Negro Evangélico: um mover do Espírito Santo” relata que o panorama histórico do Movimento Negro Evangélico surgiu no Brasil em 1841, por iniciativa do recifense Agostinho José Pereira, defensor da liberdade física e espiritual do povo negro escravizado, considerado fundador da primeira igreja negra.

Segundo o autor, a partir 1970, inspirado na Teologia Negra, o Movimento Negro Evangélico contemporâneo começa a se formar, com a finalidade de trabalhar a questão racial nas igrejas evangélicas, buscando o resgate da identidade e consciência do negro sob uma visão cristã, enquanto indivíduo, em oposição à equivocada interpretação teológica das escrituras.

Silva (2011) revela que a partir de 2000, o movimento começa a criar forma através do surgimento de novas organizações em diversos estados brasileiros, voltadas para a temática de combate às discriminações raciais dentro das igrejas evangélicas, tais como:

Cenacora (Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao
Racismo), Grupo de Reflexão Teológica, Teólogos Negros, AGAR (Sociedade Teológica de Mulheres Negras), Coral de Resistência de Negros Evangélicos, Ministério de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, o Grupo de Combate ao Racismo da Igreja Batista (Centenário, Duque de Caxias, Rio de Janeiro). Fórum das Mulheres Cristãs Negras de São Paulo, Projeto Palmares da Igreja Batista – SPE, Sociedade Cultural Missões Quilombo, Negros Evangélicos do Rio de Janeiro, Ministério Azusa, GEVANAB – Grupo Evangélico Afro Brasileiro, Negros Evangélicos de Londrina e Movimento Negro Evangélico – RS.

De acordo com o Movimento Negro Evangélico, o “racismo teológico” disseminado pelos movimentos pentecostais e neopentecostais tem como objetivo principal justificar a ideia de que o branco é superior ao negro. Esse tipo de “teologia” nasceu no sul dos Estados Unidos, em meados do século XVIII, através das pregações e práticas desenvolvidas por missionários norte-americanos. Seu ideal era justificar a escravidão e as punições aplicadas àqueles que fugissem às normas de conduta da época. As sugestões variavam de açoites para os negros que erguessem a mão contra os brancos cristãos, à proibição de alfabetização e pregação do evangelho.

No mesmo sentido, Branchini (2013) afirma que mesmo após um século de abolição no Brasil, a inserção do negro no meio evangélico tem base na desigualdade sócio cultural. O negro evangélico enfrenta preconceitos que o impedem de desfrutar da mesma igualdade e liberdade dos fiéis brancos, assimilando um preconceito disfarçado. Apesar disso, a palavra racismo ainda é tabu que provoca reações diversas dentro das igrejas.

Segundo o autor o negro evangélico silencia o racismo sofrido por vergonha ou constrangimento. A religião como aspecto histórico é uma questão contraditória na formação individual e coletiva do negro, atuando como libertadora, ou como pode ocorrer no seguimento evangélico, uma força opressora no desapego de sua identidade africana, visto que a teologia neopentecostal desqualifica o viés espiritual da cultura negra.

Para Pacheco (2010) o racismo pentecostal tem bases nas ideias fundamentalistas. Entende-se por fundamentalismo qualquer movimento de doutrina conservadora, que exija obediência rigorosa e integral a um conjunto de princípios e essa norma única a ser seguida pode tornar-se ferramenta geradora de discriminações.

Segundo a autora, o fundamentalismo neopentecostal é radical, fazendo o crente colocar-se em sacrifício da causa e adotando uma postura servil, obediente e resignada, muito parecida com o comportamento dos negros durante o período de escravidão.

Contra os fundamentos e práticas adotadas pelas igrejas neopentecostais, o Movimento Negro Evangélico interpreta de forma diversa os fundamentos referentes à Maldição Hereditária, Teoria da Prosperidade e Batalha Espiritual (exorcismo e possessões demoníacas).

Em relação à Maldição Hereditária, o MNE combate a historicidade de que a escravidão defendida pelos missionários era plenamente justificada em nome de Deus, decorrente da maldição imposta aos filhos de Cam. Pelo Gênesis 9.18-27, Cam, filho de Noé, foi amaldiçoado a ser o mais baixo dos servos. Cam, palavra de origem hebraica significa queimado, preto; daí o porquê do filho de Noé ser considerado, por desventura, o precursor da raça negra, justificando a escravidão de seus descendentes, ou seja, africanos e negros em geral.

Essa interpretação das Escrituras, tendenciosa na visão do MNE, era tida como forma de conduzir os negros à redenção, através da subserviência incondicional e, principalmente, através do total rompimento com seu passado histórico (costumes, hábitos, cultura e tradições), como forma de livrar-se da maldição hereditária. No mesmo sentido, Oliveira (2004) relata que vários teólogos
pentecostais defendem o pensamento que estigma Caim após matar Abel, era a maldição caracterizada pela cor negra.

De acordo com Silva (2011) as igrejas neopentecostais estão alicerçadas numa teologia fortemente racista, citando como exemplo a Teologia da Prosperidade, na qual a ideia de que crentes abençoados são ricos e os crentes pobres são amaldiçoados. Através da Teoria da Prosperidade, abençoado é aquele que acumula e ostenta bens materiais aqui na Terra. Em opinião divergente, o MNE cita que em decorrência da escravidão e proibição de acesso à educação, os negros viram-se excluídos das possibilidades de ascensão social, em razão da desigualdade e preconceito racial, difundido e assimilado no senso comum da sociedade.

Para o Movimento Negro Evangélico, o maior perigo de perseguição ao negro está centrado na Batalha Espiritual preconizada pelos movimentos neopentecostais, na medida em que a cor preta é tida como negativa e os enviados de Deus, retratados por anjos brancos que devem combater o mal representado pelos anjos decaídos, negros, conforme citado em “Este Mundo Tenebroso”, de Frank E. Peretti.

Hernani Silva (2011) acrescenta que o Movimento Negro Evangélico tem empreendido esforços na construção de uma agenda comum de estratégias para os diversos grupos espalhados pelo país, mas encontra obstáculos entre seus militantes devido aos diferentes fundamentos das denominações que integram. O autor cita como exemplo o 1º Encontro Nacional de Negras e Negros Cristãos, realizado em 2007. Nesse evento ocorreu uma divisão entre seus participantes porque um grupo defendia o pan-africanismo e o afrocentrismo, outro defendia a negritude cristã e a brasilidade.

O autor destaca que o MNE mostra-se extremamente preocupado com as perseguições sofridas por práticas racistas e intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana, inclusive com agressões físicas, depredação de imagens do panteão africano e locais de culto.

Para dar corpo à prática da Batalha Espiritual, segundo denúncias do Movimento Negro Evangélico, a Igreja Universal do Reino de Deus criou o grupo de Gladiadores do Altar, formado por jovens preparados ao sistema militar, inclusive marcham, batem continência e gritam que estão “prontos para a batalha”, durante um culto realizado em Fortaleza, no início de 2015. Em sua defesa, a Igreja Universal do Reino de Deus afirma que esses grupos, vinculados à Força Jovem Universal, têm como objetivo a formação de novos pastores para a pregação da palavra de Deus e do Evangelho a toda criatura, conforme matéria publicada na revista eletrônica Carta Capital, em 6/4/2015, sob o título “Exército” da Universal preocupa religiões afro-brasileiras.

O Movimento Negro Evangélico, ao contrário da Igreja Universal do Reino de Deus, vê nesses grupos, verdadeiras milícias em defesa de um fundamentalismo religioso que ameaça não só as liberdades individuais, como também opção sexual e manifestações religiosas de matriz africana.

Uma das vitórias obtidas pelo Movimento Negro, de acordo com Silva (2011) está no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado dia 21 de janeiro, instituído em 2007 pela Lei Federal 11.635, em homenagem a Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, de Salvador. A religiosa do Candomblé enfartou após ver seu rosto estampado na primeira página da Folha Universal, jornal evangélico, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Humberto Ribeiro DuarteOs negros do “Saravá, meu Pai” para o “Amém, Jesus”: abordagem sobre questões de fé e identidade.

Artigo extraído da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Sociologia.