Os protestantes na luta contra o racismo

Os protestantes somente se firmaram no Brasil a partir da segunda metade do século XIX. Em sua maioria, os missionários enviados à América Latina eram norte-americanos. Principalmente os procedentes do Sul dos Estados Unidos chegaram ao Brasil defendendo a escravidão e utilizando negros para trabalhos domésticos. Vale lembrar que, de alguma forma, esses sempre foram a favor da escravidão negra, uma das bandeiras de lutas na Guerra Civil Americana entre Estados do sul e Estados do norte dos Estados Unidos.

É importante considerar que, entre os protestantes brasileiros, o Rev. Eduardo Carlos Pereira, como já mencionamos, que era pastor presbiteriano, notabilizou-se pelo seu veemente protesto contra o racismo e a escravidão. Em 1886, Pereira publicou um livreto sob o título A Religião Cristã em suas relações com a escravidão, tendo em vista que, na época, metodistas, batistas e presbiterianos eram donos de escravos.

Na religião protestante, a mensagem dos púlpitos ainda traz em sua retórica expressões como “o negro e rude pecado”; e nos cânticos também aparecem frases como “negros batalhões”, “meu coração era preto; mas Cristo aqui já entrou; com seu precioso sangue; tão alvo assim o tornou”. A Aliança pró Evangelização de Crianças (APEC),
por exemplo, adota em seu trabalho didático, o chamado “Livro sem Palavras”.1

Entre as cores referidas nesse material, está o uso do preto, que pode induzir a criança a rejeitar-se, quando negra. O preto aparece aqui como símbolo do pecado. Considerando as críticas em relação a essa posição, a APEC substituiu a palavra “preto” por “sujo”. Tal mudança faz-nos pensar que “preto” equivale a “sujo” ou “sujeira”! Em livros de ética cristã e teologia, a frase “homens de cor” continua aparecendo, até mesmo em textos escritos contra o racismo.2 Certamente, há autores e tradutores que acreditam que existem homens sem cor, os brancos! 

Há, contudo, registros históricos signifi cativos sobre atuações de evangélicos no combate à escravidão e ao racismo. Embora parte dos missionários norte-americanos fosse indiferente a tal problema social ou até favoráveis à existência de escravos, vários documentos da época (século XIX) mostram que havia entre protestantes grande preocupação em relação à escravidão. Alguns fatos ilustram essa participação de protestantes.

O Prof. Duncan Reily, em sua “História Documental do Protestantismo no Brasil”, relata que Robert Kalley, da Igreja Evangélica Fluminense, em 3 de novembro de 1865, fez um sermão dirigido a um membro de sua igreja que se negava a libertar seus escravos. Por esse irmão não atender sua exortação, foi expulso da igreja. Tal rigor mostra o zelo do missionário na luta contra a escravidão. Em sua missão no Brasil, Kalley mostrou que aquele sermão contra a escravidão não era apenas um fato isolado. Dedicou-se a combater o problema em classes bíblicas de crianças e negros, evangelizando-os, ao mesmo tempo.

Vale ressaltar a contribuição de Ashbel Green Simonton, missionário presbiteriano que deu início ao trabalho de sua Igreja no Brasil, foi também fundador do jornal “Imprensa Evangélica”, periódico amplamente lido a partir de 1864, onde publicou vários artigos contra a escravidão. Referimo-nos também ao romancista Júlio Ribeiro, da Igreja Presbiteriana de São Paulo que, ao apresentar para o batismo um pequeno escravo, logo o libertou e, de igual modo, a sua mãe. Foi o primeiro menino escravo batizado, com registro nas atas da Igreja Presbiteriana em São Paulo e que recebeu, juntamente com a sua mãe, Carta de Alforria.

Lembramos também a participação da presbiteriana Amélia Dantas de Souza Melo Galvão (D. Sinhá Galvão), na luta contra a escravidão. Amélia foi mulher apaixonada pelo tema da libertação. Dotada de raros predicados, fez parte de várias comissões temáticas sobre a libertação dos escravos. Filha de José Damião de Souza Melo, um português radicado em Mossoró, no Rio Grande do Norte, foi protagonista dessa luta ao dar Carta de Alforria a várias mulheres escravas. Morreu em 1980 e deixou como legado sua contribuição para que Mossoró se tornasse a primeira cidade a libertar seus escravos, muito antes da Lei Áurea.

Apesar desses testemunhos que marcam a história de protestantes contra o racismo e do esforço e trabalho do Rev. Eduardo Carlos Pereira contra a escravidão, no fi nal do século XIX, essas atuações não têm inspirado nossas igrejas na luta contra o racismo, em especial a IPI do Brasil, para um projeto de luta contra o racismo na sociedade e na própria igreja. Os púlpitos permanecem em silêncio sobre esse pecado! O ministério pastoral em geral comporta-se como se o problema do racismo não existisse em suas comunidades. Pouco se escreve e pouco se fala contra o pecado do racismo.

1. Leontino Farias dos Santos, “Educação: Libertação ou Submissão”, p.118

2. Veja-se em E. C. Gardner, “Fé Bíblica e Ética Social”, São Paulo, ASTE, 1965, p. 402. Também no texto “Albert Schweitzer por ele
mesmo”, publicado pela Martin Claret Ltda., São Paulo, 1995, p. 29, entre outros.


A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil tem no Rev. Eduardo Carlos Pereira, que foi um de seus fundadores, uma grande referência de luta contra o racismo. Em 1886, Eduardo Carlos Pereira publicou um livreto com 44 páginas, sob o título “A religião cristã em suas relações com a escravidão”. Nesse trabalho, tendo como fundamento bíblico textos do Antigo e do Novo Testamentos, Pereira denuncia a escravidão como pecado, critica o sistema escravista como injusto, como uma afronta a Deus e ao ser humano e, profeticamente, apela para os crentes no sentido de que libertem os seus escravos. Também desafi a os pastores de sua época no sentido de que não fi quem em silêncio diante desse pecado.

Textualmente ele observa:

“Por que o silêncio medroso ante um crime tão grave? O silêncio do púlpito não é prudência: é infi delidade. Pregue-se o Evangelho… e no dia que ele plantar-se no coração do senhor (de escravos) cairão por terra as cadeias de seus escravos…”.

O momento histórico no qual o livro de Eduardo Carlos Pereira foi lançado era de discussões e lutas contra a escravidão, sendo esta uma das fortes expressões do racismo contra os negros no Brasil.


Este texto é parte do artigo “A IPIB e o Racismo“, de Leontino Farias dos Santos, presente na REVISTA DE EDUCAÇÃO CRISTÃ PARA ADULTOS com a temática “POR UMA FÉ CONTRA O RACISMO“. A revista com o tema especial “racismo”, foi organizada pelo Rev. Robson de Oliveira, que conta com a contribuição de várias autoras e autores, um material didático para pastoral de combate ao racismo.


Voltar:

Por uma fé contra o racismo

 

Negros evangélicos em movimento

Reconstruir a história do Movimento Evangélico Brasileiro é uma tarefa complexa, sobretudo porque este é um processo ainda em andamento, com suas fronteiras borradas. Essa dificuldade parece ser maximizada na medida em que olhamos com maior vagar para o interior do próprio campo religioso cristão não católico, nomeado genericamente de “evangélico”. Entretanto, assim como os católicos que, apesar das divergências e das múltiplas facetas da sua militância negra, é possível observar uma espécie de fio de Ariadne que conduziu seus agentes, no campo evangélico há também uma diversidade de concepções sobre os direcionamentos das políticas voltadas para a população negra. No contexto evangélico, portanto, o combate ao racismo no interior das igrejas, em particular, e na sociedade em geral, pode ser tomado como o ponto de convergência dessas inciativas.

Pode-se falar em Movimento Negro Evangélico (MNE) na medida em que se tem como referencial um conjunto de ações desenvolvidas por grupos consolidados ou em construção cujos agentes são pessoas que se autoclassificam como “evangélicas” e negras (pretas ou pardas, de acordo com a nomenclatura adotada pelo IBGE) e os destinatários são os negros, em geral, e aqueles que participam de alguma igreja. Tais ações têm em comum o fato de serem organizadas a partir de certa orientação teológica-pastoral de inspiração protestante. Isso significa que, mais do que tratar de um grupo especifico, para compreender o MNE é preciso, antes de tudo, mapear as diversas iniciativas presentes nas várias igrejas para, em seguida, proceder a análise de suas estruturas. No mais, é importante tomá-lo como um processo em construção e não como um projeto consolidado, diferente da Pastoral Afro-brasileira, no caso católico.

Nesse texto será apresentado de maneira panorâmica o estado da arte do campo afro-evangélico, ressaltando a historiografia do MNE e alguns de seus agentes paradigmáticos. Os dados que seguem foram recolhidos durante a pesquisa de campo, que privilegiou a produção escrita dos agentes evangélicos, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut que reúne exclusivamente negros e negros evangélicos) além de conversas informais.

Reconstituir a trajetória do Movimento Negro Evangélico implica, em alguma medida retraçar a trajetória de seus agentes paradigmáticos e de algumas instituições. Metaforicamente pode-se dizer que o MNE é uma rede que interconecta tais atores. Partindo aleatoriamente de um de seus elementos tentaremos evidenciar os nós de significado que a compõe.

Hernani Francisco da Silva, paraibano de família católica, converteu-se à Igreja Congregacional (portanto pentecostal) aos quinze anos de idade, dois anos mais tarde tornou-se membro da Igreja evangélica O Brasil para Cristo (também pentecostal); Segundo entrevista concedida ao programa Análise Direta da rede RIT – Rede Internacional de Televisão, no dia 09 de dezembro de 2009, sua “segunda conversão” foi “despertar sua negritude”, a qual ocorreu durante a marcha nacional em comemoração ao centenário da abolição formal da escravidão no Brasil, realizada no dia 13 de maio de 1988. Embora tenha se deparado com ela de maneira ocasional, foi a partir desse momento que se sentiu impelido a desenvolver um trabalho voltado ao combate ao racismo no interior do campo religioso evangélico. A sua experiência como fellow na Ashoka, o capacita para atuar como empreendedor social atuando, sobretudo no campo dos direitos humanos tendo como público preferencial os negros.

Em 23 de janeiro de 1991, com o auxílio de outras pessoas fundou a Sociedade Cultural Missões Quilombo, cujo objetivo principal é “modificar a visão que as igrejas evangélicas têm da cultura negra” (SILVA, 2011, p. 45). Embora esteja localizada no âmbito de uma igreja pentecostal (O Brasil para Cristo) possui integrantes de outras denominações e tem desenvolvido ações que extrapolam por vezes o campo evangélico. Em parceria com o antropólogo norte-americano John Burdick, Hernani tem realizado um mapeamento das iniciativas desenvolvidas por evangélicos no combate ao racismo e discriminação.

De fato, a militância desenvolvida por Hernani Silva revela uma tentativa de regaste da presença negra nas raízes do cristianismo, ao mesmo tempo, em que
denuncia o que considera uma “teologia evangélica racista”, nesse sentido, várias são as ações que remetem à história do negro no Brasil de maneira geral, e especificamente, no protestantismo, tendo destaque a criação da rede de relacionamentos virtual Afrokut e a publicação do livro O movimento Negro Evangélico – um mover do Espírito Santo (pela Selo da Negritude Cristão em 2011).

Conforme fora dita acima, a pluralidade do campo protestante impede o estabelecimento de organismos que concentrem todas as ações e agentes do Movimento Negro Evangélico, diferentemente do catolicismo que, embora conte com três grandes grupos (Pastoral Afro-Brasileira, Instituto Mariama – que reúne diáconos, padres e bispos negros – e o GRENI – Grupo de Religiosos e Religiosas Negros e Indígenas) possui políticas coordenadas, já que parte significativa dos seus integrantes circulam nos três grupos, desenvolvem ações em conjunto e, sobretudo, pertencem à mesma instituição religiosa. No caso evangélico, há várias iniciativas para reunir os militantes negros, uma das primeiras delas foi o Fórum de Afrodescendentes Evangélicos criada no MSN (em 2002), dada as limitações desse serviço de mensagens e com a popularização da rede social Orkut no Brasil

muitas comunidades surgiram nesta rede social de relacionamento, as que mais se destacaram foram Negros Cristãos, com mais de cinco mil membros, o Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos – CNNC, Negros Evangélicos, Negros sim!! Somos cristãos, Movimento Negro Evangélico, Teologia Negra, entre muitas outras (SILVA, 2011, p. 15).  

Têm em comum essas “comunidades virtuais” o fato de reunirem evangélicos de várias denominações, na tentativa de estabelecer um canal de comunicação entre os vários agentes, a troca de informações e, em alguma medida, possibilitar a realização de atividades em conjunto, justamente porque a marca principal do Movimento Negro Evangélico é a descentralização de suas ações. Descentramento este fruto menos do desejo dos atores envolvidos e mais da própria configuração do campo protestantes, que se apresenta de maneira fragmentária e plural.

Com a decadência do Orkut, muitos grupos migraram para outras plataformas virtuais como o Facebook, Youtube, Twitter, Wiki etc. E no bojo desse movimento de apropriação das redes sociais, Hernani Silva cria o Afrokut em 2008.

O Afrokut reúne não apenas evangélicos negros e instituições. Como uma rede de relacionamento possibilita o intercâmbio entre seus membros, a criação de subcomunidades de acordo com interesses convergentes (inclusive a plataforma permite criar fóruns de discussões, blogs e lojas virtuais), além de possibilitar a realização de cursos, palestras e reuniões on line. Conta hoje com mais de três mil membros cadastrados, segundo o seu fundador.

Foi justamente por sua atuação à frente da Sociedade Cultural Missões Quilombos e do Afrokut, que Hernani Silva foi agraciado com o prêmio Direitos Humanos, outorgado pelo Governo Federal brasileiro (em 2000), além de outras honrarias. Entretanto, o reconhecimento de seu trabalho na articulação dos evangélicos negros nem sempre encontra respaldo na hierarquia eclesiástica, haja vista que não é sacerdote, portanto, as alianças estabelecidas com pastores e bispos, intelectuais e agentes de outras denominações são fundamentais para um maior desenvolvimento de suas ações no interior das igrejas. Tendo-se em conta que sua origem religiosa é pentecostal e a maior parte dos atores do MNE pertencem às igrejas protestantes históricas, há sempre por parte de Hernani a tentativa de dar sempre um caráter ecumênico às suas ações.

Esse esforço de congregar as várias iniciativas do MNE impulsionou Hernani Silva a publicar o livro O movimento negro evangélico, em 2011. Nessa obra, o autor procura retraçar a história do movimento. Esse exercício não é inédito no processo de resgate identitários, sobretudo, porque se cristalizou a ideia de que a “história oficial” invisibilizou esses agentes.

Nesse sentido, há também uma tentativa de reescrita da presença evangélica no Brasil. Por exemplo, enquanto a história oficial considera o início do protestantismo no país, no ano de 1858, com a fundação da Igreja Fluminense pelo revendo Roberto Kalley; em O movimento negro evangélico, a gênesis está no ano de 1841, quando o pregador negro Agostinho José Pereira, funda a Igreja do Divino Mestre. Apelidado de “Lutero Negro”, o fim desse pregador e sua igreja é desconhecidos, conta–se, porém, que ele teria sido preso e deportado (SILVA, 2011, p. 9). Mas, se o recuo histórico for maior, Hernani (SILVA, 2011) aponta que a primeira Pastoral Negra Protestante no Brasil nasce das pregações de “Mãe Maria”, uma africana nagô, nascida na África por volta de 1825, e adquirida como escrava pelo pastor Voges, em 1846, fora alfabetizada e aprendeu alemão com a senhora Elisabetha, sua proprietária. Assim, no rol das lideranças negras brasileiras, figuram membros de igrejas protestantes: João Candido (Igreja Metodista de São João de Meriti, liderou a revolta da chibata, no Rio de Janeiro, em 1910); Joao Pedro Teixeira (igreja Evangélica Presbiteriana, fundou a Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba); Solano Trindade (poeta, foi diácono na Igreja Presbiteriana), o qual “decepcionado com o distanciamento do protestantismo com as questões sociais, incluindo a discriminação contra os negros, deixou a igreja, justificando sua saída com um versículo da própria Bíblia “Se não amas a teu irmão, a quem vês, como podes amar a Deus, a quem não vês’?” (SILVA, 2011, p. 12).

Na segunda parte do livro, Hernani Silva volta-se não mais para personalidades específicas, mas iniciativas coletivas. No capitulo O Movimento Negro Evangélico Contemporâneo considera os anos 1970 e 80 como paradigmáticos, pois é nesse momento vem à luz diversas iniciativas institucionais e muitos “despertam” para sua negritude. Recorde-se que o próprio autor localiza sua “reconversão” em 1988.

Assim como ocorreu com o Movimento Negro Católico, e com os religiosos afro-brasileiros, o período de dedemocratização do Brasil, impulsionou as minorias (sobretudos negros e indígenas) a se reorganizarem para desenvolverem ações de combate as injustiças sofridas. Alguns evangélicos não ficam alheios a esse contexto político-social.

Dentre as várias iniciativas podem-se destacar as ações da Igreja Metodista, que foi a primeira a oficializar, em 1985, uma Comissão Nacional de Combate ao Racismo, que havia sido criada anos antes (1973) por iniciativa de fiéis oriundos de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. (BRANCHINI, 2011, p. 20). O reconhecimento dessa comissão só ocorreu doze anos após a sua criação, pois se temia que esse tipo de discussão provocasse um cisma na Igreja (FAUTINO, 2014). Foi sob a gestão do reverendo Antonio Olímpio Sant’Ana na Secretaria de Ação Social da Igreja Metodista que houve essa oficialização, que passou a ser chamada de Pastoral Nacional de Combate ao Racismo, cujo objetivo era

identificar linguagem racista na hinologia e na própria literatura produzida pela igreja e capacitar lideranças para atuarem nas diversas regiões eclesiásticas. Nessa mesma década, foram criadas as Pastorais Regionais de Combate ao Racismo em quase todas as regiões eclesiásticas, que desenvolveram importante trabalho de conscientização no seio das igrejas locais. Também surgiram neste período o Coral Resistência de Negros Evangélicos, em São Paulo (1988), e o Centro Ecumênico de Cultura Negra, em Porto Alegre.

Metodista natural de Rio Piracicaba (MG), o revendo Sant’Ana, em entrevista concedida à Revista Raça Brasil (FAUTINO, 2014), afirma que a “A religiosidade é a maneira de se chegar e vislumbrar o Ser Supremo. Minha religião é Metodista, mas a minha espiritualidade é negra. Antes de ser metodista e cristão, sou negro.

Esse texto é parte da Tese: A cor da fé: “identidade negra” e religião para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.

Autor: Rosenilton Silva de Oliveira.

Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em convenio de dupla-titulação com a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais (Antropologia Social).

Orientador: Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva
Co-orientadora: Prof.ª Dra. Emmanuelle K. Tall  

Para ler a Tese completa baixe o arquivo em PDF:

BAIXAR A cor da fé: “identidade negra” e religião

Produção científica sobre o Movimento Negro Evangélico

Protestantismo e negritude

Uma grande contribuição bibliográfica que trata da questão negritude-protestantismo é a tese de doutorado de Elizete da Silva. Um dos temas trabalhados é a questão da discriminação racial entre os protestantes, mais especificamente, entre os anglicanos e batistas independentes. Seu recorte cronológico abrange o contexto baiano no período que vai de 1880 a 1930.

Para a autora, um dos pontos que devemos considerar, ao analisar a ética e prática protestante, é a distância que existe entre o discurso e a prática desse grupo. Isto é, “as diferenças entre o concebido teologicamente e a vivência cotidiana dos fiéis, inclusive do próprio clero”, oposição claramente observada nas documentações trabalhadas.

Elizete Silva observou que embora o discurso teológico ensinasse sobre a unidade de todos os seres humanos, sem distinção, era possível perceber posicionamentos que deixavam escapar o preconceito contra os negros e, portanto, a distinção entre as pessoas. Um bom exemplo apontado pela autora é o texto de uma revista do clero anglicano escrita em 1908, em que o articulista dizia que o negro devia ocupar seu lugar, que não era certo desejar lugares que ele não poderia ocupar e encerra dizendo:

“o problema com o negro é que ele está o tempo todo tentando obter reconhecimento, quando o que devia estar fazendo é obter algo para reconhecer”.

Outros documentos analisados pela pesquisadora, como cartas escritas por reverendos anglicanos, deixam escapar concepções racistas, por exemplo, quando descreviam a estrutura física dos negros comparando-os com animais selvagens, ou mostrando-os como intelectualmente inferiores, ou, até mesmo, como grosseiros e incapazes de boas maneiras civilizadas, etc.

Elizete Silva aclara que algumas atitudes em favor do escravo, por parte dos batistas, podiam ser percebidas. Como o caso citado pela autora, de um escravo que freqüentava a igreja batista de Salvador, mas foi proibido por seu ‘dono’ de assistir aos cultos. Diante dessa situação, os membros da igreja decidiram comprar a liberdade do escravo. Atitude que não pode ser interpretada como uma posição política dos batistas contra a escravidão, pois não houve nenhum tipo de ação coletiva nesse sentido. De acordo com a autora,

“a alforria do irmão escravo fazia parte de uma estratégia evangelística e não uma ação política mais abrangente que questionasse o escravismo enquanto sistema econômico, baseado na propriedade de seres humanos, como mão-de-obra servil.”

Após 1888, com a abolição oficial da escravatura brasileira, contraditoriamente, os batistas passam a condenar a escravidão por ser incompatível com a fé cristã. Os batistas compartilhavam da versão difundida pela historiografia oficial, interpretando a abolição como uma sucessão de medidas naturais tomadas pelos governantes, desconsiderando as lutas e resistências dos negros.

Por se centrarem na salvação das almas perdidas, poucos refletiram sobre as reais condições sociais e políticas vivida pelos negros e demais brasileiros.

Esse texto é parte do artigo: “Religião e negritude: discursos e práticas no Protestantismo e nos Movimentos Pentecostais”. Autora Cristina Kelly da Silva Pereira.

Imagem: Pregação de David LivingstoneSociedade Missionária de Londres – Crédito: Wikimedia Commons, o repositório de mídia livre – Esta imagem é de domínio público porque seus direitos autorais expiraram e seu autor é anônimo.

https://afrokut.com.br/producao-cientifica-sobre-o-movimento-negro-evangelico/

Igrejas Evangélicas, Atuação Negra e Antirracismo

Na obra “A Religião Mais Negra do Brasil”, o Pr. Marco Davi de Oliveira ressalta as transformações por que tem passado o cenário religioso brasileiro. O autor destaca forte crescimento dos evangélicos, singularmente através dos grupos pentecostais, realidade que já tem se tornado notória desde os anos 70. O autor argumenta que essa vertente protestante conseguiu alcançar a base da cultura do Brasil, provocou uma revolução o âmbito da negritude, e tem contribuído para a ressignificação de crenças presentes no contexto social.

Tem sido observado que a busca frequente pelas comunidades pentecostais por parte dos negros, tem contribuído para que o pentecostalismo figure como a religião mais negra do Brasil, e entre os fatores apontado para essa procura estão elementos ligados à forma de culto, músicas, acolhimento, interação com as pessoas, discursos, postura eclesiástica, etc.

Segundo Marco Davi de Oliveira pastor batista e coordenador do Movimento Negro Evangélico, o pentecostalismo com sua forma de culto, onde as expressões corporais, utilização de instrumentos regionais, hinos animados e participativos; propiciam a identificação da cultura negra com essa forma de protestantismo popular. Ainda segundo o escritor três aspectos da espiritualidade negra são contemplados na pentecostalidade: a espontaneidade, expansividade e a abnegação (GELEDÉS, 2009).

Marco Davi, sustenta que a igreja, especialmente a vertente chamada histórica, não deu a devida atenção às demandas raciais e sociais, e tem se mostrado indiferente ás políticas de ação afirmativa. O livro salienta, também, que essa expressividade negra dentro do pentecostalismo não significa uma participação maior em posições hierarquicamente mais elevadas dentro das igrejas e convenções.

A despeito da persistência de atitudes de demonização e inferiorização das culturas de matriz africana e afro-brasileiras e suas práticas, especialmente na esfera religiosa, a postura dos evangélicos tem alcançado mudanças ainda que não muito significativas. Tais mudanças, no entanto, representam um avanço, especialmente se considerar o histórico de resistência por parte de muitos adeptos de igrejas evangélicas, bem como a situação de exclusão e discriminação do negro na sociedade brasileira. Essa atuação evangélica tem se dado tanto no questionamento dos preconceitos, como na implementação de programas de combate ao racismo, mediante formação de frentes de resistência.

Cunha (2017), no artigo intitulado “A Superação do Racismo Também é Coisa de Evangélicos”, faz uma retrospectiva da questão do racismo no Brasil, mencionando a onda de intolerância que tem varrido o país nos últimos anos. Cunha acentua que práticas racistas se manifestam desde a existência de elevador social e elevador de serviço, até a forma agressiva com que policiais abordam “suspeitos”. Na sua visão, tais práticas são maquiadas pela ideia de uma falsa democracia racial, que insiste em negar que o racismo esteja sedimentado na sociedade brasileira. No seu discurso, Cunha se reporta aos evangélicos negros do Brasil e se reporta a vários evangélicos de tradição Metodista, Batista e Presbiteriana, reconhecendo o seu papel enquanto agentes de luta contra a desigualdade. Na sua acepção, “São fiéis que empenham suas vidas na resistência contra o racismo e na luta por justiça e igualdade, inclusive dentro das próprias igrejas e nos ensinam e inspiram” (CUNHA, 2017).

Destaco na Igreja Metodista o pastor Antônio Olímpio de Sant’Ana, fundador da Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo (CENACORA), nos anos 1980. A leiga Marilia Schuller, que serviu por 14 anos nos projetos de superação do racismo do Conselho Mundial de Igrejas, e segue em atuação. O pastor Melchias Silva, com o projeto Atitude Afro, e a busca de justiça para população negra dentro e fora das igrejas (…) As leigas Diná da Silva Branchini, Keila Guimarães e Maria da Fé Vianna, em seus esforços por ações afirmativas. As pastoras Maria do Carmo Kaká Lima e Lídia Maria de Lima, empenhadas no fazer teológico sob o olhar da mulher negra. Da tradição Batista recordo o pastor Marco Davi de Oliveira, liderança do Movimento Negro Evangélico, autor do livro “A religião mais negra do Brasil: Por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo“. Sua parceira e esposa Nilza Valéria Zacarias, jornalista que atua na Frente Evangélica pelo Estado de Direito, ao lado do pastor Ariovaldo Ramos, também disseminador da causa negra entre evangélicos. O jovem pastor Henrique Vieira, ativista na política institucional e nas mídias alternativas, com ações e apelos pela igualdade e a justiça. O teólogo Ronilso Pacheco, ativista social e autor do livro “Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão” (Editora Novos Diálogos). Entre presbiterianos, há nomes históricos, como o pastor Jovelino Ramos, perseguido pela ditadura e exilado em 1968, e o pastor Joaquim Beato, incansável propagador da busca por igualdade racial dentro das próprias igrejas. Entre os mais jovens está o pastor Eduardo Dutra, ativista do movimento negro evangélico (CUNHA, 2017).

De acordo com Santos (2015) o Movimento Negro Evangélico contemporâneo emerge nos anos70 e 80. Nesse contexto, se levantam pessoas interessadas em discutir temáticas étnico-raciais nas igrejas evangélicas. Salienta, porém, que nos anos 60 foi criada a Comissão Nacional de Combate ao Racismo e a Pastoral e a Pastoral de Combate ao Racismo, entidades criadas pela igreja Metodista. A partir daí, surgem várias instituições de combate ao racismo no seio do protestantismo, especialmente de vertente histórica.

Um dos exemplos de militância negra evangélica é o já citado Pr. Marco Davi, que lidera grupo de estudo para refletir sobre raça e evangelho, objetivando questionar e combater práticas racistas. Também foi citado anteriormente, a reconstrução de um terreiro de
candomblé no Rio de Janeiro, que contou com a doação de integrantes de igrejas evangélicas.

A iniciativa desse ato foi da pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, presidente do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado do Rio de Janeiro (CONIC-Rio).


Esse texto é parte da Dissertação:

“O que é de Deus e o que não é de Deus:”
DOCENTES EVANGÉLICOS E O ENSINO DAS CULTURAS AFRICANAS
AFRO-BRASILEIRAS NAS ESCOLAS PÚBLICAS

Autor: RENILDES DE JESUS SILVA DE OLIVEIRA

Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre.

 

Qual é a cor da “religião mais negra do Brasil”? O Movimento Negro Evangélico

 

O tema da identidade cultural negra sempre foi espinhoso para as igrejas evangélicas e agravou-se, nas últimas décadas, com o ataque dos neopentecostais e das igrejas de outros segmentos contra as religiões afro-brasileiras e seus símbolos.

Se, nos Estados Unidos, as igrejas protestantes negras foram um importante espaço para a tomada de consciência étnica e a luta pelos direitos civis, no Brasil, nem de longe se constituíram com esse perfil.40 Primeiro, pela própria especificidade do racismo brasileiro. Segundo, pelas dificuldades para se identificar o que pode ser definido como “heranças negras ou africanas” na chamada “cultura mestiça” brasileira. E, terceiro, pelo tipo de missão evangelizadora dessas igrejas que enfatiza a universalidade do acesso aos dons do Espírito Santo e da prática de sua fé. Não podendo haver, nesse coletivo de irmãos convertidos, ódio, diferença e discriminação por qualquer motivo, inclusive a cor da pele, a missão de conversão tornar-se-ia o principal objetivo da ação proselitista cuja consequência natural seria a constituição de uma ordem social mais justa. Essas igrejas, portanto, mesmo tendo vivido sob um regime de exceção, como o período da ditatura militar, se mantiveram, com raras exceções, impermeáveis à influência de ideologias políticas de esquerda, ao contrário da Igreja Católica, com a Teologia da Libertação e as CEBs. Na verdade, as igrejas evangélicas temiam e combatiam o comunismo por sua pregação materialista e antirreligiosa. E, mesmo em período recente, após a redemocratização, a eleição de políticos evangélicos conservadores demonstra que essa tendência se manteve no perfil das igrejas que os apoiam.

Mas a ausência de um movimento negro no campo evangélico não significa que os problemas relativos à identidade negra não sejam postos nesse campo e que ações e iniciativas não sejam tomadas por parte de lideranças e religiosos negros visando à sua organização.41

Indícios de iniciativas recentes podem ser identificados, como apontou Burdick,42 em atuações pessoais, como a de Benedita da Silva, líder negra e evangélica, que foi eleita e participou da Subcomissão dos Negros, das Populações Indígenas e Minorias da Assembleia Nacional Constituinte (1988), e coletivas, como as denúncias de racismo, ainda que eventuais, feitas nos meios de divulgação e proselitismo das igrejas evangélicas. Ou, ainda, de forma mais sistemática, na criação de grupos de reflexão e militância negra surgidos no final dos anos de 1980, por ocasião do centenário da abolição. Foi nesse período que o movimento negro procurou congregar os diversos grupos voltados para a população negra, inclusive os de confissão religiosa. Surgiram, desde então, a Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo (CENACORA), em 1985, integrada ao Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), e inúmeras outras organizações: Comunidade Martin Luther King Jr. (da Igreja Pentecostal Cristo em Deus), em 1985; Missão Quilombo (da Igreja Pentecostal Brasil para Cristo), em 1991; Pentecostais Negros do Rio de Janeiro etc.43 Atualmente, por meio de grupos dessa natureza, fóruns de discussão, sites de divulgação, redes sociais, como a Rede Afrokut, lançada em 2008, entre outras iniciativas, têm se configurado o Movimento Negro Evangélico. Entretanto, a desarticulação entre as tendências e a falta de consenso entre as diversas denominações têm sido alguns dos seus maiores desafios.

No livro O movimento negro evangélico, Hernani Francisco da Silva define a missão do movimento como sendo a de “promover a reflexão e o debate bíblico/teológico em uma perspectiva negra e combater toda forma de racismo”.44 Reconhece que as diversas denominações cristãs foram, ao longo da história e em diversos contextos, coniventes com a escravidão e o racismo, mas registra a existência de lideranças evangélicas que se opuseram ao racismo e, em referência a elas, o movimento evangélico poderia traçar sua origem ou buscar inspiração para atuar. Lembra, inclusive, que o iniciador do movimento pentecostal nos Estados Unidos, na primeira década do século XX, foi um pastor afro-americano, William Joseph Seymor, que acolheu em sua igreja brancos e negros indistintamente. Entretanto, os ensinamentos de Seymor teriam se perdido com a transformação causada pela presença de lideranças brancas. Para Silva, essas lideranças teriam sido responsáveis pela implementação, no Brasil, de um “pentecostalismo branco racista norte-americano de viés reformado”, no âmbito do qual os valores ocidentais brancos são vistos como superiores e os de outros povos não brancos são desqualificados teologicamente e demonizados: “Os valores e a cultura ocidental são divinos modelos para todos os povos e as outras culturas não são de Deus, são do diabo, como a cultura afro”.45

E mais, as igrejas neopentecostais reforçariam o viés racista ao introduzir pontos teológicos, como a teoria da prosperidade, maldições heréticas e batalha espiritual.

Na Doutrina da Prosperidade se mede o crente abençoado por seus bens, onde de uma maneira simplista se faz um diagnóstico da situação do povo negro: “é pobre porque é pecador e é oriundo de um continente idólatra e praticante da bruxaria”. Segundo as maldições heréticas, o povo negro é considerado uma raça maldita e para que o negro se livre desta maldição (aceitar Jesus não é suficiente) é necessário que ele faça uma espécie de cura interior se desvinculando de todos os seus antepassados, ou seja, não sendo mais negro. […] A Batalha Espiritual reforça a demonização do povo negro: se olharmos cuidadosamente nos livros que tratam do assunto […] veremos que no exército de Deus são todos brancos e louros e no exército do diabo são todos pretos e negros. (grifos meus).46

Um ponto de dissenso é exatamente o lugar atribuído às heranças africanas, principalmente às religiões afro-brasileiras, na agenda de luta do movimento negro evangélico. Ainda segundo o pastor Hernani, para muitos, a questão da demonização impede o diálogo entre igrejas e terreiros, diálogo que poderia ser uma ferramenta útil para a superação do racismo e da intolerância religiosa.47


40 Para uma comparação entre pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos, cf. Marcia Contins, “Tornando-se pentecostal: um estudo comparativo sobre pentecostais negros nos EUA e no Brasil” (Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995); Marcia Contins, “Pentecostalismo e umbanda: identidade étnica e religião entre pentecostais negros no Rio de Janeiro”, Interseções, n. 2 (2002), pp. 83-98; Marcia Contins, “Convivendo com o inimigo. Pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos”, Caminhos, v. 1, n. 2 (2003).

41 Mesmo porque os grupos evangélicos têm na população pobre (e, portanto, negra) sua maior base de apoio.

42 John Burdick, “Pentecostalismo e identidade negra no Brasil: mistura possível?”, in Yvonne Maggie e Claudia Barcellos Rezende (orgs.), Raça como retórica. A construção da diferença (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), p. 189.

43 Burdick, “Pentencostalismo”; Hernani Francisco da Silva, O movimento negro evangélico. Um mover do Espírito Santo, São Paulo: Negritude Cristã, 2011.

44 Silva, O movimento, p. 16.

45 Silva, O movimento, p. 23.

46 Silva, O movimento, p. 25.

47 Silva, O movimento, p. 26.

Imagem: Uma mulher levanta as mãos durante um culto inter-religioso na Igreja Batista Ebenezer, a igreja onde o reverendo Martin Luther King Jr. costumava pregar. David Goldman / AP



O Movimento Negro Evangélico: história, desafios e perspectivas

Hernani Francisco da Silva, no livro “O Movimento Negro Evangélico: um mover do Espírito Santo” relata que o panorama histórico do Movimento Negro Evangélico surgiu no Brasil em 1841, por iniciativa do recifense Agostinho José Pereira, defensor da liberdade física e espiritual do povo negro escravizado, considerado fundador da primeira igreja negra.

Segundo o autor, a partir 1970, inspirado na Teologia Negra, o Movimento Negro Evangélico contemporâneo começa a se formar, com a finalidade de trabalhar a questão racial nas igrejas evangélicas, buscando o resgate da identidade e consciência do negro sob uma visão cristã, enquanto indivíduo, em oposição à equivocada interpretação teológica das escrituras.

Silva (2011) revela que a partir de 2000, o movimento começa a criar forma através do surgimento de novas organizações em diversos estados brasileiros, voltadas para a temática de combate às discriminações raciais dentro das igrejas evangélicas, tais como:

Cenacora (Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao
Racismo), Grupo de Reflexão Teológica, Teólogos Negros, AGAR (Sociedade Teológica de Mulheres Negras), Coral de Resistência de Negros Evangélicos, Ministério de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, o Grupo de Combate ao Racismo da Igreja Batista (Centenário, Duque de Caxias, Rio de Janeiro). Fórum das Mulheres Cristãs Negras de São Paulo, Projeto Palmares da Igreja Batista – SPE, Sociedade Cultural Missões Quilombo, Negros Evangélicos do Rio de Janeiro, Ministério Azusa, GEVANAB – Grupo Evangélico Afro Brasileiro, Negros Evangélicos de Londrina e Movimento Negro Evangélico – RS.

De acordo com o Movimento Negro Evangélico, o “racismo teológico” disseminado pelos movimentos pentecostais e neopentecostais tem como objetivo principal justificar a ideia de que o branco é superior ao negro. Esse tipo de “teologia” nasceu no sul dos Estados Unidos, em meados do século XVIII, através das pregações e práticas desenvolvidas por missionários norte-americanos. Seu ideal era justificar a escravidão e as punições aplicadas àqueles que fugissem às normas de conduta da época. As sugestões variavam de açoites para os negros que erguessem a mão contra os brancos cristãos, à proibição de alfabetização e pregação do evangelho.

No mesmo sentido, Branchini (2013) afirma que mesmo após um século de abolição no Brasil, a inserção do negro no meio evangélico tem base na desigualdade sócio cultural. O negro evangélico enfrenta preconceitos que o impedem de desfrutar da mesma igualdade e liberdade dos fiéis brancos, assimilando um preconceito disfarçado. Apesar disso, a palavra racismo ainda é tabu que provoca reações diversas dentro das igrejas.

Segundo o autor o negro evangélico silencia o racismo sofrido por vergonha ou constrangimento. A religião como aspecto histórico é uma questão contraditória na formação individual e coletiva do negro, atuando como libertadora, ou como pode ocorrer no seguimento evangélico, uma força opressora no desapego de sua identidade africana, visto que a teologia neopentecostal desqualifica o viés espiritual da cultura negra.

Para Pacheco (2010) o racismo pentecostal tem bases nas ideias fundamentalistas. Entende-se por fundamentalismo qualquer movimento de doutrina conservadora, que exija obediência rigorosa e integral a um conjunto de princípios e essa norma única a ser seguida pode tornar-se ferramenta geradora de discriminações.

Segundo a autora, o fundamentalismo neopentecostal é radical, fazendo o crente colocar-se em sacrifício da causa e adotando uma postura servil, obediente e resignada, muito parecida com o comportamento dos negros durante o período de escravidão.

Contra os fundamentos e práticas adotadas pelas igrejas neopentecostais, o Movimento Negro Evangélico interpreta de forma diversa os fundamentos referentes à Maldição Hereditária, Teoria da Prosperidade e Batalha Espiritual (exorcismo e possessões demoníacas).

Em relação à Maldição Hereditária, o MNE combate a historicidade de que a escravidão defendida pelos missionários era plenamente justificada em nome de Deus, decorrente da maldição imposta aos filhos de Cam. Pelo Gênesis 9.18-27, Cam, filho de Noé, foi amaldiçoado a ser o mais baixo dos servos. Cam, palavra de origem hebraica significa queimado, preto; daí o porquê do filho de Noé ser considerado, por desventura, o precursor da raça negra, justificando a escravidão de seus descendentes, ou seja, africanos e negros em geral.

Essa interpretação das Escrituras, tendenciosa na visão do MNE, era tida como forma de conduzir os negros à redenção, através da subserviência incondicional e, principalmente, através do total rompimento com seu passado histórico (costumes, hábitos, cultura e tradições), como forma de livrar-se da maldição hereditária. No mesmo sentido, Oliveira (2004) relata que vários teólogos
pentecostais defendem o pensamento que estigma Caim após matar Abel, era a maldição caracterizada pela cor negra.

De acordo com Silva (2011) as igrejas neopentecostais estão alicerçadas numa teologia fortemente racista, citando como exemplo a Teologia da Prosperidade, na qual a ideia de que crentes abençoados são ricos e os crentes pobres são amaldiçoados. Através da Teoria da Prosperidade, abençoado é aquele que acumula e ostenta bens materiais aqui na Terra. Em opinião divergente, o MNE cita que em decorrência da escravidão e proibição de acesso à educação, os negros viram-se excluídos das possibilidades de ascensão social, em razão da desigualdade e preconceito racial, difundido e assimilado no senso comum da sociedade.

Para o Movimento Negro Evangélico, o maior perigo de perseguição ao negro está centrado na Batalha Espiritual preconizada pelos movimentos neopentecostais, na medida em que a cor preta é tida como negativa e os enviados de Deus, retratados por anjos brancos que devem combater o mal representado pelos anjos decaídos, negros, conforme citado em “Este Mundo Tenebroso”, de Frank E. Peretti.

Hernani Silva (2011) acrescenta que o Movimento Negro Evangélico tem empreendido esforços na construção de uma agenda comum de estratégias para os diversos grupos espalhados pelo país, mas encontra obstáculos entre seus militantes devido aos diferentes fundamentos das denominações que integram. O autor cita como exemplo o 1º Encontro Nacional de Negras e Negros Cristãos, realizado em 2007. Nesse evento ocorreu uma divisão entre seus participantes porque um grupo defendia o pan-africanismo e o afrocentrismo, outro defendia a negritude cristã e a brasilidade.

O autor destaca que o MNE mostra-se extremamente preocupado com as perseguições sofridas por práticas racistas e intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana, inclusive com agressões físicas, depredação de imagens do panteão africano e locais de culto.

Para dar corpo à prática da Batalha Espiritual, segundo denúncias do Movimento Negro Evangélico, a Igreja Universal do Reino de Deus criou o grupo de Gladiadores do Altar, formado por jovens preparados ao sistema militar, inclusive marcham, batem continência e gritam que estão “prontos para a batalha”, durante um culto realizado em Fortaleza, no início de 2015. Em sua defesa, a Igreja Universal do Reino de Deus afirma que esses grupos, vinculados à Força Jovem Universal, têm como objetivo a formação de novos pastores para a pregação da palavra de Deus e do Evangelho a toda criatura, conforme matéria publicada na revista eletrônica Carta Capital, em 6/4/2015, sob o título “Exército” da Universal preocupa religiões afro-brasileiras.

O Movimento Negro Evangélico, ao contrário da Igreja Universal do Reino de Deus, vê nesses grupos, verdadeiras milícias em defesa de um fundamentalismo religioso que ameaça não só as liberdades individuais, como também opção sexual e manifestações religiosas de matriz africana.

Uma das vitórias obtidas pelo Movimento Negro, de acordo com Silva (2011) está no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado dia 21 de janeiro, instituído em 2007 pela Lei Federal 11.635, em homenagem a Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, de Salvador. A religiosa do Candomblé enfartou após ver seu rosto estampado na primeira página da Folha Universal, jornal evangélico, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Humberto Ribeiro DuarteOs negros do “Saravá, meu Pai” para o “Amém, Jesus”: abordagem sobre questões de fé e identidade.

Artigo extraído da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Sociologia.

508 anos da Reforma Protestante e a Escravidão Negra

 

Em 31 de outubro de 2025, a reforma protestante completará 508 anos,  data oportuna para a reflexão histórica do protestantismo e a escravidão negra no mundo. Nestes artigos vamos pincelar alguns fatos da relação do protestantismo com a escravidão negra nas igrejas protestantes.

Reforma Protestante Negra

O movimento religioso liderado por Agostinho José Pereira foi diferente de todos os movimentos ligados ao protestantismo europeu e norte americano. O pastor negro Agostinho não tinha nenhum vinculo com  missionários ou grupos protestantes….

Eu fico com a Revolução Protestante

  Reforma protestante, movimento europeu, pensado a partir da política, do estado e da religião. Movimento que começa com Lutero inspirado em parte na igreja da Etiópia, porém a partir…

Reforma Protestante Negra

O movimento religioso liderado por Agostinho José Pereira foi diferente de todos os movimentos ligados ao protestantismo europeu e norte americano. O pastor negro Agostinho não tinha nenhum vinculo com  missionários ou grupos protestantes. As pregações do mesmo tinham muitas diferenças com relação as pregações oficiais das denominações estrangeiras no Brasil.

Desculpe, nenhum post foi encontrado.

A Reforma Protestante Negra brasileira do Divino Mestre

O pastor negro Agostinho José Pereira foi o primeiro pregador brasileiro, também pode ser considerado o Pai da Reforma Protestante Negra no Brasil. Agostinho também formou a  primeira igreja protestante, provavelmente em 1841 ou mesmo antes desta data. Só depois em 1858 o reverendo Roberto Kalley fundou a Igreja Fluminense, episodio considerado pela historia oficial data de fundação da primeira igreja protestante do Brasil.

O movimento religioso liderado por Agostinho José Pereira foi diferente de todos os movimentos ligados ao protestantismo europeu e norte americano. O pastor negro Agostinho não tinha nenhum vinculo com  missionários ou grupos protestantes. As pregações do mesmo tinham muitas diferenças com relação as pregações oficiais das denominações estrangeiras no Brasil.

Reforma Protestante Negra

Provavelmente Agostinho ouviu ou teve contato com a literatura protestante,  percebe-se em sua pregação aproximações com linhas protestantes, mesmo assim esse contato não faz com que o mesmo aderisse as doutrinas professas por qualquer uma das denominações em atividade no país. Com a chegada da família real abriu-se uma brecha no monopólio católico, permitindo a presença de outra religião que não fosse a Igreja Católica Romana a religião oficial do Brasil: os protestantes estrangeiros não podiam pregar nem abrir uma igreja com formato de templo, mais podia se reunir  em suas casas, também podia comercializar a bíblia e até distribui-la. Fatos documentais apontam uma representação de Agostinho José Pereira enquanto reformador religioso:

“Diante de um quadro de possível adesão ao protestantismo as autoridades passam a questionar por quem Agostinho e seus seguidores e seguidoras haviam sido doutrinados. Agostinho responde que foi doutrinado “por uma inspiração divina”. As autoridades riem diante desse argumento. O Agostinho, entretanto, permanece firme na defesa de suas crenças.” (DIÁRIO NOVO, 30/10/1846, p.1-2).

O naturalista britânico Charles Mansfield de passagem por Pernambuco, em 1852, ouvira os populares falarem ainda do acontecimento, passando, então a referir-se ao Agostinho Pereira como um “Lutero negro”. (CARVALHO, 2004, p.329).

Por Hernani Francisco da Silva – Do Afrokut

Continua:

O Lutero Negro


Citações e Referências:

Léonard, Émile-G. O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. 2ª ed. Rio de Janeiro: JUERP e ASTE, 1981.

Marcus JM de Carvalho – Rumores e rebeliões: estratégias de resistência escrava no Recife, 1817-1848 – 49 – Tempo – Revista do Departamento de Historia da UFF – Nº 6 Vol. 3 – Dez. 1998.

Marcus JM de Carvalho “FÁCIL É SEREM SUJEITOS, DE QUEM JÁ FORAM SENHORES”: O ABC DO DIVINO MESTRE Afro-Ásia, número 031 Universidade Federal da Bahia, Brasil pp. 327-334, 2004.

O DIVINO MESTRE OU NOTAS SOBRE UMA DEVOÇÃO DE FRONTEIRA – Alexandro Silva de Jesus – Doutorando em Sociologia pela uFpE.


Corpos negros e a morte de Cristo

Estamos no tempo da quaresma, período que antecedem a festa ápice do cristianismo, onde os cristãos concentram a sua atenção sobre a morte e ressurreição de Jesus Cristo. Uma morte na cruz, Cristo poderia ter morrido de inúmeras maneiras, mas a cruz era uma humilhante exposição pública: escarnecido, espancado e morto desumanamente. Sim, a morte é a parte mais importante da Cruz, mas na morte encontramos a finalidade da cruz – os negros e negras tem experimentado o mesmo destino que o Cristo crucificado.

Para entender o que a cruz significa para nós negros cristãos, precisamos dar uma boa olhada na historia dos negros e negras desta nação, do sofrimento e da humilhação da população negra durante a escravidão, que prossegui vivo nas estruturas contemporâneas da nossa sociedade.

Hoje os cristãos não conseguem ver o evangelho da cruz de Jesus revelado através de corpos negros vítimas de um processo genocida instalado pela política de segurança pública. Onde a Paixão de Cristo se revela hoje? Quem são os corpos negros crucificado hoje?

Os corpos de negros assassinados, baleados, esquartejados todos os dias, a juventude negra é uma das principais vítimas, mas não são as únicas. O genocídio não está só relacionado à morte por bala, tem outras questões que dizem respeito a esse processo. Pode-se matar uma pessoa sem uma arma. Mas sempre que a sociedade trata o povo como se eles não têm direitos ou dignidade ou valor. Sempre que são negados empregos, saúde, habitação e as necessidades básicas da vida, essas pessoas estão sendo mortas. Há muitas maneiras de se matar um povo. Sempre que um povo clama a ser reconhecido como seres humanos e são ignorados pela sociedade, eles estão sendo mortos.

O teólogo negro James H. Cone, no seu ultimo livro “he Cross and the Lynching Tree” ( A Cruz e a Árvore do linchamento) apresenta muito bem essa questão. A traçar a relação da cruz cristã e linchamento dos negros na sociedade americana. Cone faz um paralelo com a história de linchamento dos negros nos Estados Unidos com a crucificação de Cristo:

“A cruz e a árvore do linchamento: ambos eram espetáculos públicos, normalmente reservada para criminosos perigosos, escravos rebeldes, que se rebelava contra o Estado romano e falsamente acusado de militantes negros que eram muitas vezes chamados de bestas negras” e “Monstros em forma humana” pela a sua audácia de desafiar a supremacia branca nos Estados Unidos. Qualquer teologia genuína e qualquer pregação autêntica deve ser medido em relação ao teste do escândalo da cruz e a árvore do linchamento”.

Para Cone a crucificação era um linchamento do primeiro século:

“A cruz pode resgatar a árvore de linchamento e, assim, conceder-corpos negros linchados um sentido escatológico para a sua existência final”.

“A cruz também pode resgatar linchadores brancos e seus descendentes, também, mas não sem custo profundo, não sem a revelação da ira e a justiça de Deus, que executa o julgamento divino, com a demanda para o arrependimento e reparação, como pressuposto da divina misericórdia e perdão. A maioria dos brancos quer misericórdia e perdão, mas não justiça e reparação, pois eles querem a reconciliação sem a libertação, a ressurreição sem a cruz”.

Cone diz que quando nos deparamos com o Cristo crucificado hoje, ele é um negro humilhado, um corpo negro linchado:

“Cristo é negro não porque a Teologia Negra diz. Cristo torna-se negro através da solidariedade amorosa de Deus com corpos negros linchados e julgamento divino contra as forças demoníacas da supremacia branca. Como um corpo negro nu balançando em uma árvore de linchamento, a cruz de Cristo foi “um caso absolutamente ofensivo”, “obscena, no sentido original da palavra”, “submeter a vítima à indignidade máxima”.

Neste sentido, os negros são as figuras de Cristo, não porque queremos ser, mas porque nós não tivemos nenhuma escolha sobre ser trazido como escravo para a América, assim como Jesus não tinha escolha em seu caminho para o Calvário. Jesus não queria morrer na cruz, e os negros não queriam passar pelo holocausto da escravidão. Mas as forças malignas do Estado romano e o colonizador e o evangelizador quiseram.

Hernani Francisco da Silva – Afrokut