Ubuntu como prática ética da singularidade

As relações entre o “eu” e o “outro”:  o ubuntu como prática ética da singularidade

No ubuntu, fazer justiça a alguém tem a ver com cuidar da sua singularidade como uma pessoa única, explica a filósofa e advogada norte-americana Drucilla Cornell. Por isso, o ubuntu pode ser extremamente útil para as feministas ou demais grupos de direitos humanos

Singularidade e alteridade: entre a relação tensa entre esses dois âmbitos, o ubuntu pode ser um caminho para se entender – e para ser – humano. Para a professora da Rutgers University, dos Estados Unidos, Drucilla Cornell, a ética do ubuntu nos ajuda a perceber que “viemos a um mundo com obrigações para com os outros, e esses outros têm obrigações para conosco”, pois são eles que nos ajudam “a encontrar nosso caminho para nos tornarmos uma pessoa única e singular”.

Por isso, ela descarta qualquer aproximação entre o ubuntu e o conceito de comunitarismo. Diferentemente deste, o ubuntu nos leva a “realizar uma individualidade verdadeira e nos erguer acima de nossa mera distintividade” por meio “do envolvimento e do apoio aos outros”, explica.

Em suma, segundo Drucilla, “o ubuntu está intermitentemente conectado ao porquê e ao como o ser humano é uma prática ética”. Isso se explica pelo fato de que “sempre nascemos com obrigações para com os outros e não podemos escapar delas, assim como elas, por sua vez, têm de ser pessoas éticas na medida em que nos ajudam a formar nosso caminho para nos tornarmos pessoas”.

Drucilla Cornell é professora de Ciências Políticas, Literatura Comparada e Estudos da Mulher da Rutgers University, de Nova Jersey, nos Estados Unidos. Também é professora visitante das University of Pretoria, na África do Sul, e do Birkbeck College, da Universidade de Londres. Antes de começar sua vida acadêmica, Cornell foi líder sindical e feminista ativa durante muitos anos. Doutorou-se em direito pela University of California, em 1981. Ela também produziu um documentário sobre a ética do ubuntu, intitulado ubuntu Hokae. De 2008 até o final de 2009, Cornell foi professora da cátedra em direito, valores indígenas e jurisprudência da National Research Foundation, na University of Cape Town, na África do Sul. Ela fundou o projeto Ubuntu em 2003 e continua sendo sua codiretora junto com Chuma Himonga, no qual se busca compreender a importância do ubuntu na nova África do Sul e sua possível tradução na lei e no direito. É autora de diversos livros sobre teoria crítica e feminismo, como Feminismo como Crítica da Modernidade (Rosa dos Tempos, 1987), de coautoria de Seyla Benhabib. Destacamos também seu artigo Interpreting ubuntu: Possibilities for Freedom in the New South Africa, escrito com Karin van Marle.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a senhora interpreta o conceito ubuntu?

Drucilla Cornell – Ubuntu é uma noção fundamentalmente ética do que significa ser um ser humano. Por conseguinte, é um aspecto crucial do que veio a ser conhecido como humanismo africano. É claro que o ubuntu teve certa importância na política sul-africana e foi muitas vezes aplicado como uma ideologia nacionalista africana. Há razões importantes para reconhecer os valores africanos como cruciais para o diálogo da humanidade, já que eles foram excluídos durante muito tempo. Mas o ubuntu, como uma ética em que praticamos o que significa ser humano em nossas atividades cotidianas, não se justifica apenas devido a suas raízes indígenas na África do Sul, mais especificamente nas línguas zulu e xhosa. Por isso, uma ética como o ubuntu será sempre contestada, e é um erro reduzi-la a uma ideologia nacionalista africana.

IHU On-Line – Como um princípio ético, quais são seus pilares fundamentais? Podemos encontrar algumas similaridades com outras escolas de pensamento filosófico?

Drucilla Cornell – Sabe-se que, na tradição xhosa e zulu, quando os bebês nascem, seu cordão umbilical é enterrado, e o local do enterro assinala o início de sua jornada a se tornar uma pessoa. A realização da singularidade como pessoa sempre é um projeto inseparável das obrigações éticas nas quais se participa, de uma forma ou de outra, desde o início da vida. Nós nascemos dentro de uma língua, de um grupo de parentesco, de um orgulho, de uma nação, de uma família. Mas essa inscrição não pode ser simplesmente reduzida a um fato social. Viemos a um mundo com obrigações para com os outros, e esses outros têm obrigações para conosco no sentido de nos ajudar a encontrar nosso caminho para nos tornarmos uma pessoa única e singular.

Seria um equívoco profundo confundir o ubuntu com o conceito anglo-americano de comunitarismo. É só por meio do envolvimento e do apoio aos outros que somos capazes de realizar uma individualidade verdadeira e nos erguer acima de nossa mera distintividade. Poderíamos, portanto, dizer que uma pessoa está eticamente entrelaçada com os outros desde o início. Esse entrelaçamento não constitui quem elas são e quem devem se tornar. Pelo contrário: cada um de nós precisa encontrar uma forma de se tornar uma pessoa singular em relação ao resto. Nessa singularidade, elas se tornam alguém que define suas próprias responsabilidades éticas à medida que vai se tornando uma pessoa. Se, então, uma comunidade está comprometida com a individuação e a realização de um destino único para cada pessoa – muitas vezes dissecada pelo nome, mas não determinada por ele –, então a pessoa tem obrigações para com a comunidade que a apoia, não simplesmente como um dever abstrato correlacionado com direitos, mas é uma forma de participação que permite que uma comunidade busque ser fiel à diferença e à singularidade. Parte dessa diferença é que também somos chamados a fazer a diferença contribuindo para a criação e a manutenção de uma comunidade humana e ética.

IHU On-Line – Para a ética do ubuntu, qual é o significado e a importância da justiça e do direito?

Drucilla Cornell – Obviamente, o ubuntu tem implicações importantes para o significado do direito, da justiça e da reconciliação. Para o grande filósofo africano Kwasi Wiredu , a diferença participativa – em que cada um de nós é diferente – se confunde com o princípio da imparcialidade simpática, em que procuramos imaginar a nós mesmos e aos outros como seres singularmente únicos. A imparcialidade simpática, nesse sentido singular, nos chama não a buscar a semelhança, mas a imaginar os outros em sua diferença com relação a nós. O problema de como desenvolvemos tal ligação com a alteridade – crucial para a justiça e, com efeito, para qualquer sistema jurídico – explica-se em parte porque já estamos tentando desenvolvê-la com os outros e eles são, em um sentido profundo, parte de nós.

Os críticos do ubuntu, incluindo os críticos que confundem o ubuntu com uma modalidade obsoleta de coesão e hierarquia social, cometem o erro de reduzir o ubuntu a uma ontologia ética de um mundo supostamente compartilhado. O que se deixa de perceber nessa crítica é justamente o ativismo inerente à diferença participativa que marca cada um de nós como a nossa própria pessoa. O ubuntu contém claramente um fim aspiracional e ideal – produzir um mundo humano e tornar-se uma pessoa nesse mundo humano para fazer uma diferença nele é algo que não tem fim. Portanto, o ubuntu acarreta um vínculo social, que está sempre sendo remoldado pelas exigências éticas que ele coloca a seus participantes. O ubuntu condensa, em sentido profundo, as obrigações morais dos seres humanos que devem viver juntos, o que constitui a base de qualquer noção do direito que vai além da limitada noção anglo-americana do direito. O ubuntu implica em uma moralização fundamental das relações sociais, e essa moralização é o aspecto imutável do ubuntu, que nos ensina que nunca podemos escapar do mundo ético que compartilhamos. Mas quero mais uma vez deixar claro o que é o ubuntu: não é perdão na acepção cristã; no ubuntu, se um mal foi cometido por alguém na comunidade, então seria necessário que o malfeitor compensasse a pessoa à qual fez o mal. O perdão é um conceito cristão que, às vezes, foi imposto na Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul sobre a noção de ubuntu e não faz justiça a essa noção.

IHU On-Line – Qual é o valor do ser humano e da vida humana para o ubuntu?

Drucilla Cornell – Como vimos, o aspecto aspiracional do ubuntu é de que precisamos nos esforçar juntos para alcançar um bem público em um mundo compartilhado, de modo que possamos sobreviver e florescer, cada um e cada uma de nós em sua singularidade. Mas, ao mesmo tempo, cada um de nós em nossas relações éticas está produzindo o que significa ser um ser humano – um ser humano ético. É a inserção do ubuntu em nossas relações que a torna transformadora em seu cerne, e essa transformação nunca pode ser eliminada da moralização das relações sociais. Teria sido absurdo há 500 anos se o ubuntu tivesse exigido eletricidade, já que nem havia acesso à eletricidade. Agora, entretanto, não é nada absurdo fazer tal proposta, porque a eletricidade é parte integrante da vida humana na sociedade moderna. Por conseguinte, o ubuntu está intermitentemente conectado ao porquê e ao como o ser humano é uma prática ética. O ubuntu tem implicações importantes para a noção do que significa ter uma vida humana: em última análise, que a vida humana deve ser uma vida ética.

Por isso, ele tem certa ressonância com o pensador Immanuel Kant . Para ele, diferentemente de quase todos os outros pensadores do mundo ocidental, a liberdade é inseparável da obrigação. Em Kant, é ao menos uma possibilidade prática que os seres humanos se postulem como autônomos, na medida em que podem formular uma lei entre si mesmos. Assim, podemos, por sua vez, nos representar como livres de nossos desejos cotidianos que nos impulsionam e, com efeito, nos tratam duramente. A relação entre o âmbito da liberdade interior (da moral), e o âmbito da liberdade exterior (do direito ou Recht), tem sido muito debatida na pesquisa sobre Kant. Mas está claro que precisa haver uma ligação entre os dois. Se não houver ligação, não há terreno para a liberdade exterior em que coordenamos mutuamente nossos fins.

É exatamente por isso que o experimento hipotético kantiano na imaginação, em que podemos configurar as condições em que os seres humanos podem aspirar ao grande ideal do Reino dos Fins , desperta a possibilidade de que, como criaturas da razão prática, podemos harmonizar nossos fins, o que nos permite reconciliar a obrigação com a liberdade. Essa reconciliação também é crucial para o ubuntu, o que explica por que Kant continua desempenhando um papel tão importante na herança intelectual do humanismo africano.

IHU On-Line – A partir do ubuntu, como o ser humano pode e deve se relacionar com a natureza? Que tipo de relação deve haver entre os seres humanos e não humanos?

Drucilla Cornell – O ubuntu, assim como expusemos anteriormente, tem a ver primordialmente com uma prática de ser humano que seja ética. Houve, entretanto, uma série de pensadores do ubuntu que tentaram sustentar que essa forma de praticar a humanidade implica efetivamente uma relação muito diferente e não exploradora com a natureza e a proteção da vida dos seres não humanos. É claro que, no humanismo africano, a noção do humano é expandida para incluir quase todo o mundo na comunidade humana.
Dito isso, o ubuntu é uma forma de ser humano que não desperta nenhuma capacidade que nos separe dos animais, mas nos devolve a uma relação mais holística com a natureza. Acredito que o ubuntu pode ser um conceito muito útil para repensar nossas obrigações para com os animais, indo além da noção jurídica de direitos animais.

IHU On-Line – Como o ubuntu pode enriquecer as culturas e a ética das sociedades não africanas?

Drucilla Cornell – Um dos meus alunos de pós-graduação está trabalhando atualmente em uma tese que sustenta que a noção de Amartya Sen , segundo a qual liberdade é desenvolvimento, pode ser melhor concebida através da herança intelectual do humanismo africano. Em seu mais recente livro, The Idea of Justice (Cambridge: Belknap Press/Harvard University Press, 2009), o próprio Sen sustenta que precisamos introduzir ideias de diferentes heranças intelectuais em nossos diálogos sobre a justiça. Mas nem mesmo o melhor diálogo nos levaria necessariamente a um acordo.

Em última análise, o ubuntu nos ajuda a entender por que o conflito é sempre inevitável entre os seres humanos e por que nem mesmo uma ética da solução de conflitos jamais levará necessariamente a um conjunto único de princípios éticos ou a regras jurídicas. 

No direito, o ubuntu sempre desempenhou um papel importante ao nos lembrar que precisamos olhar para o contexto, por exemplo, de por que um determinado indivíduo roubou um carro, ao invés da lei do sentido do roubo de carros. É essa insistência de que olhemos para o conflito e o resolvamos que tornou o ubuntu tão importante em várias áreas de peso do direito constitucional na África do Sul atualmente – incluindo a jurisprudência muito importante que está se desenvolvendo em torno dos direitos sociais e econômicos.

Por isso, em um sentido profundo, o ubuntu tem muito a nos ensinar sobre a cultura e a ética africanas, porque ele nos ajuda a pensar sobre o sentido do desenvolvimento como liberdade, pois entendemos que a liberdade tem um vínculo intrínseco com nossas obrigações para com os outros.

IHU On-Line – De que forma o ubuntu nos ajuda a repensar as questões de gênero ou feministas hoje?

Drucilla Cornell – O ubuntu foi muitas vezes criticado por feministas que sustentam que ele oferece uma ética patriarcal em que as mulheres são necessariamente colocadas abaixo dos homens. Como sustentei, o ubuntu não nos dá uma ontologia social estática. Pelo contrário, ele é uma noção ativa de como nos tornamos humanos em nossa própria prática cotidiana da ética.

Então, o que isso tem a ver com o feminismo? Pense-se, por exemplo, no caso Shilubana , em que uma mulher se tornou chefe. A associação de mulheres da área rural sustentou vigorosamente que o direito consuetudinário vivo da África do Sul, incluindo a ética do ubuntu, sempre permitiu que se desse grande flexibilidade ao que é a resposta certa em uma situação específica, que não pode ser reduzida a uma noção jurídica do que a lei nos diz o que fazer. Assim, no caso de uma mulher da área rural, elas argumentaram que o direito consuetudinário sempre foi flexível e que elas buscavam a justiça para permitir que uma mulher se tornasse chefe. 

Por isso, discordo dos críticos que dizem que o ubuntu implica em uma ontologia social que necessariamente implica em desigualdade de gênero. Essa é uma compreensão equivocada da noção muito ativa do ubuntu como uma virtude ética em que damos vida ao nosso ser humano através de nossas ações para com os outros.

IHU On-Line – Em sua opinião, como o ubuntu pode ser uma alternativa – ou fomentar algumas alternativas – para a modernidade capitalista neoliberal e à cultura ocidental?

Drucilla Cornell – Muitos dos movimentos de base apelam ao ubuntu como uma forma de justificar sua própria militância de base e, de fato, seu apelo a uma ética socialista. Parte da razão pela qual os valores nativos são aplicados é, sem dúvida, por causa do legado colonial da borracha, do apagador. Como observei repetidamente em minhas respostas, essa não é a forma pela qual o ubuntu se justifica. O ubuntu se justifica como uma prática ética universalizável do que significa ser um ser humano, visto que temos sempre, desde o início, obrigações para com os outros e precisamos expandir as necessidades de nossa humanidade tanto quanto possível para incluir todos aqueles que podem estar excluídos do registro da humanidade.

Assim, não surpreende que muitas pessoas relacionem o ubuntu com a noção de Karl Marx  segundo a qual uma sociedade comunista se basearia na ideia “de cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com sua necessidade”. Essa é, com efeito, a ética mais individuada da justiça que se possa imaginar. O ubuntu entende por que essa noção de obrigação e de nossas próprias responsabilidades como pessoas com capacidades não tornaria necessário que tentássemos alcançar o máximo possível por nossa própria conta. Mas, ao invés disso, ele nos leva a criar uma comunidade justa em que possamos viver junto com outras pessoas.

Lembrem-se de que há uma verdade no ubuntu: sempre nascemos com obrigações para com os outros e não podemos escapar delas. Assim como elas, os outros, por sua vez, têm de ser pessoas éticas na medida em que nos ajudam a formar nosso caminho para nos tornarmos pessoas. 

Isso nos leva a um último aspecto de por que o ubuntu é importante para as feministas. Muitas feministas sustentam que existe um conflito, ou ao menos uma tensão, entre a justiça e o cuidado. Mas, no ubuntu, fazer justiça a alguém sempre tem a ver com cuidar da sua singularidade como uma pessoa única. Por isso, o ubuntu pode ser extremamente útil para as feministas que veem isso como uma tensão que não pode ser superada. Em última análise, o ubuntu inspirou muitos movimentos a se chamarem explicitamente de socialistas ou até a praticarem o comunismo vivo ao procurarem corresponder às obrigações cotidianas que todos nós aceitamos se entendemos que as relações sociais mútuas são primordialmente éticas e que isso inclui a nossa noção de eu-econômico, que é completamente incompatível com a visão capitalista de mundo.

Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

Via Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Imagem: Afrokut


O que é Ubuntu?

Ubuntu uma alternativa ecopolítica

 

A ética do ubuntu se pronuncia contra uma interpretação ideológica capitalista da realidade. Sua filosofia nativa espiritual está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, afirma a educadora sul-africana Dalene Swanson

Reconhecido como “um sistema de crenças, uma epistemologia, uma ética coletiva e uma filosofia humanista espiritual do sul da África”, o ubuntu é, em suma, “uma forma ética de conhecer e de ser em comunidade”. Essa é a opinião da doutora em Educação nascida na África do Sul e hoje residente no Canadá, Dalene Swanson.

Professora adjunta da University of British Columbia, em Vancouver, e de Alberta, em Edmonton, ambas no Canadá,Dalene encontra no ubuntu uma das formas de “humanismo africano”. Mas, diferentemente da filosofia ocidental derivada do racionalismo iluminista, “o ubuntu não coloca o indivíduo no centro de uma concepção de ser humano”: “A pessoa só é humana – explica – por meio de sua pertença a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros”.

O ubuntu, afirma Dalene, “é uma expressão viva de uma alternativa ecopolítica” e também “a antítese do materialismo capitalista”. Mas hoje, diz, a industrialização, a urbanização e a globalização crescentes ameaçam corromper esse modo de ser africano tradicional, pois o ubuntu se posiciona “contra essa interpretação ideológica da realidade por meio de uma filosofia nativa espiritual que está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte”.

Dalene Swanson é professora adjunta da Faculdade de Educação das University of British Columbia, em Vancouver, e de Alberta, em Edmonton, Canadá. Nascida na África do Sul, é membro associada do Centre for Culture, Identity and Education da University of British Columbia. É doutora em Educação pela University of British Columbia, com a pesquisa Voices in the Silence: Narratives of disadvantage, social context and school mathematics in post-apartheid South Africa. Sua tese lhe garantiu diversos prêmios de excelência, dentre eles o Canadian Association of Curriculum Studies Award de 2005; o prêmio Ted T. Aoki, do mesmo ano; e o American Educational Research Association Award de 2006. Dentre outras publicações, é autora do capítulo Where have all the fishes gone?: Living ubuntu as an ethics of research and pedagogical engagement, do livro In the Spirit of ubuntu: Stories of Teaching and Research [No espírito do ubuntu: Histórias de ensino e pesquisa] (Sense Publications, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Fala-se do ubuntu como uma noção filosófica, um conceito abstrato, um fundamento ético ou uma ideologia nacionalista africana. Afinal, o que é ubuntu?

Dalene Swanson – Ubuntu é um sistema de crenças, uma epistemologia, uma ética coletiva e uma filosofia humanista espiritual do sul da África. Dentre as quatro categorias que você menciona na pergunta, o ubuntu é mais um fundamento ético coletivo (ou um sistema de crenças) do que qualquer outra coisa, embora também seja considerado uma forma de filosofia e epistemologia africanas nativas. É uma forma ética de conhecer e de ser em comunidade. Nesse sentido, é uma forma de humanismo africano. É muito menos um conceito abstrato do que uma expressão coletiva cotidiana de experiências vividas, centradas em uma ética comunitária do que significa ser humano.

Em Swanson (2007) , eu o descrevi da seguinte maneira: “Ubuntu é uma abreviação de um provérbio isiXhosa da África do Sul, proveniente de Umuntu ngumuntu ngabantu: uma pessoa é uma pessoa por meio de seu relacionamento com outros. O ubuntu é reconhecido como a filosofia africana do humanismo, ligando o indivíduo ao coletivo através da ‘fraternidade’ ou da ‘sororidade’. Ele dá uma contribuição fundamental às ‘formas nativas de conhecer e ser’. Com ênfases históricas diversificadas e (re) contextualizações ao longo do tempo e do espaço, é considerado uma forma espiritual de ser no contexto sociopolítico mais amplo do sul da África. Essa abordagem não é apenas uma expressão de uma filosofia espiritual em seu sentido teológico e teórico, mas uma expressão da vivência cotidiana. Isto é, uma forma de conhecimento que fomenta uma jornada rumo a ‘tornar-se humano’ (VANIER, 1998)  ou ‘que nos torna humanos’ (TUTU, 1999) , ou, em seu sentido coletivo, uma maior humanidade que transcende a alteridade de todas as formas” (p. 55).

IHU On-Line – Sendo o ubuntu, portanto, uma filosofia do humanismo africano, qual o significado e o valor do ser humano dentro desse contexto?

Dalene Swanson – Diferentemente da filosofia ocidental derivada do racionalismo iluminista, o ubuntu não coloca o indivíduo no centro de uma concepção de ser humano. Este é todo o sentido do ubuntu e do humanismo africano. A pessoa só é humana por meio de sua pertença a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros; uma pessoa existe por meio da existência dos outros em relação inextricável consigo mesma, mas o valor de sua humanidade está diretamente relacionado à forma como ela apoia ativamente a humanidade e a dignidade dos outros; a humanidade de uma pessoa é definida por seu compromisso ético com sua irmã e seu irmão.

IHU On-Line – Quais são as origens culturais e históricas do ubuntu?

Dalene Swanson – O ubuntu tem sido uma expressão vivida de uma filosofia coletiva ética entre os povos sul-africanos há séculos. Ele também tem expressões linguísticas e vividas em outros povos africanos mais ao norte. Nesse sentido, é uma das normas culturais mais poderosas e universais que vinculam as pessoas em todo o continente e transcende línguas, tribos e locais como uma ética humana coletiva.
Em Swanson (2007), afirmei: “Da forma como cheguei a entender o conceito, o ubuntu nasce da filosofia de que a força da comunidade vem do apoio comunitário e de que a dignidade e a identidade são alcançadas por meio do mutualismo, da empatia, da generosidade e do compromisso comunitário. O adágio de que “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança” está alinhado com o espírito e a intenção do ubuntu. Assim como o apartheid ameaçava corroer esse modo de ser africano tradicional – embora, em alguns casos, ele ironicamente o fortaleceu ao galvanizar o apoio coletivo e ao criar solidariedade entre os oprimidos –, da mesma forma a industrialização, a urbanização e a globalização crescentes ameaçam fazer o mesmo (p. 53-54)”.

IHU On-Line – Quais aspectos o ubuntu pode ajudar a aprofundar na ética ocidental? O que ele pode ensinar a outras tradições e culturas?

Dalene Swanson – Este é um ponto crucial. Vivemos em uma era de globalização econômica neoliberal profundamente perturbadora. Nossas pautas de desenvolvimento foram sequestradas por esse modelo econômico que se apresenta como a forma “certa” ou única de promover o desenvolvimento. Moldado por relações capitalistas de produção, esse modelo é subscrito pelo materialismo, pelo individualismo e pela competição, e normaliza uma elite rica sobre os pobres privados de direitos (em que a raça, a classe, a nacionalidade, o gênero, a etnia e o credo estão, na maioria das vezes, envolvidos diferencialmente). Para maximizar os lucros, pensa-se que algo tem de ser explorado. Em termos geopolíticos, isso assume a forma de uma subclasse humana, mas, em termos ecológicos, também inclui a devastação do meio ambiente em sua esteira. O discurso prevalecente apoiaria isso como um direito e uma exigência necessária da segurança econômica nacional.

Uma ética do ubuntu se pronunciaria contra essa interpretação ideológica da realidade por meio de uma filosofia nativa espiritual que está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte. Visto que o princípio central do ubuntu é o respeito mútuo, ele está em consonância com a epistemologia africana de modo mais geral, que é circular em sua compreensão e, consequentemente, está mais em harmonia ecológica com a Terra do que a epistemologia do racionalismo ocidental, que é linear, exploradora e insustentável. Portanto, o ubuntu tem uma contribuição crítica a dar não só para uma filosofia nativa interconectada globalmente, mas como uma abordagem contra-hegemônica a uma cosmovisão globalizante que exalta a riqueza material às custas da dignidade humana e da sustentabilidade ecológica. 

Discursivamente, a globalização econômica torna as alternativas não existentes. O ubuntu, como contribuição para uma filosofia nativa, é uma expressão viva de uma alternativa ecopolítica. Em um mundo crescentemente movido a vigilância, o futuro dos direitos humanos (e ecológicos), da dignidade humana e da sobrevivência de nosso planeta em termos amplos dependem de noções filosóficas e ideológicas nativas como o ubuntu.

IHU On-Line – Como a ética do ubuntu se relaciona com a noção africana de comunidade, autonomia e descolonização?

Dalene Swanson – O ubuntu é central para uma noção de comunidade, não em um sentido simplista de “comunitarismo primitivo”, mas comunidade em termos de solidariedade com os estão sendo oprimidos e cuidado e preocupação sinceros pelo próximo, independentemente de classe, casta, credo ou circunstância. Essa é uma ética de responsabilidade pelo “Outro” em termos de ubuntu, e testemunhar ou participar da diminuição da humanidade do outro equivale à diminuição de sua própria humanidade.

Você menciona a palavra “autonomia”. Não creio que este seja um critério crucial do ubuntu. A autonomia sugere uma separação de alguma outra coisa. Se nós respeitamos a humanidade do outro, de qualquer outro, não podemos estar separados de sua humanidade. O ubuntu sugere que nós estamos sempre inextricavelmente conectados com outro ser humano – todos os outros seres humanos, que definem a nossa própria humanidade. Suponho que você considere que a “autonomia” entre em jogo no sentido de sugerir solidariedade. Sim, o ubuntu teve certa importância na solidariedade antiapartheid na África do Sul. Ser solidário com outro ser oprimido, nesse sentido, constituiria um envolvimento com o ubuntu. E, como extrapolação disso, ele tem muito a ver com a descolonização. Dessa forma, sua importância para com a descolonização não tem tanto a ver com a resistência a um poder colonial em uma frente nacional, como tem sido o legado da África, mas agora também a novas formas de colonialismo através da globalização econômica neoliberal e uma agenda de desenvolvimento cuja estrutura ideológica é definida dentro dos moldes político-econômicos dos poderes imperiais.

Creio que é preciso ser cuidadoso para não homogeneizar “a sociedade africana” e falar dela inteiramente em termos de “déficit”. Nem toda a sociedade africana é marcada por “violência e pobreza”. Essa terminologia também sugere que as sociedades não africanas talvez não sejam marcadas por violência e pobreza, ou o sejam menos. Há muita violência na América do Norte, por exemplo. A natureza e a extensão podem ser diferentes, mas o capitalismo pode ser uma ideologia muito violenta. Embora uma parte dessa violência talvez seja simbólica, ela é, não obstante, altamente destrutiva e cúmplice na negação da dignidade e dos direitos de muitos.

A África também tem muito a se orgulhar em termos de sua beleza e presença, mas também da beleza, resiliência, compaixão e humanidade de muitos de seus povos. Além disso, há muitas profundas contribuições e inovações epistemológicas históricas e contemporâneas que vieram e que estão vindo da África. Em muitos casos, ela também ostenta sofisticação e criatividade industrial e tecnológica, embora isso raramente seja reconhecido através das lentes dos poderes dominantes e dos discursos hegemônicos.

Não obstante, voltando à sua pergunta, segue-se o que escrevi em Swanson (2007), a respeito do papel do ubuntu na Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul pós-apartheid: “O ganhador do prêmio Nobel, o arcebispo Desmond Mpilo Tutu , que, em 1995, tornou-se o presidente da Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul pós-apartheid, era um vigoroso defensor da filosofia e do poder espiritual do ubuntu na recuperação da ‘verdade’ por meio de narrativas das atrocidades da era do apartheid. Ele também o viu como necessário nos processos mais importantes e subsequentes de perdão, reconciliação, transcendência e cura que surgem por meio do processo catártico de dizer a verdade. Nesse sentido, o alcance das noções de ‘verdade’ com relação ao mandato da Comissão de Verdade e Reconciliação superava uma noção forense de ‘descoberta da verdade’ para incluir três outras noções de busca da verdade que abrangiam a verdade pessoal ou narrativa, a verdade social ou dialógica e a verdade curativa ou restauradora (MARX, 2002, p. 51) . Uma percepção da epistemologia africana ressoa por essas postulações da ‘verdade’ em sua formulação e exposição. Como linha filosófica da epistemologia africana, o ubuntu foca as relações humanas, atentando para a consciência moral e espiritual do que significa ser humano e estar em relação com um Outro. Isso se expressa no anúncio da Comissão de que ele ‘desloca o foco primordial do crime, passando da violação das leis ou infrações contra um Estado sem rosto para uma percepção do crime como violações contra seres humanos, como dano ou mal feito a outra pessoa’ (apud Marx, 2002, p. 51). Mais uma vez, o imperativo da busca da verdade por parte da Comissão é sustentado por uma concepção da epistemologia africana e do ubuntu em sua incorporação da verdade pessoal ou narrativa, da verdade social ou dialógica e da verdade curativa ou restauradora (p. 53)”.

IHU On-Line – Em uma sociedade marcada pela violência e pela pobreza como a africana, quais são as contribuições e os limites da ética do ubuntu?

Dalene Swanson –

IHU On-Line – A senhora define o ubuntu como “humble togetherness”, intimidade humilde, estar juntos em humildade. Qual o significado dessa definição para a relação entre o indivíduo e a sociedade em geral?

Dalene Swanson – Cunhei o termo “humble togetherness” para exemplificar como o ubuntu atua não através de relações de poder, em que uma pessoa é superior a outra e mostra compaixão ou oferece ajuda de forma patriarcal ou paternalista, mas através do ato de se tornar humilde diante de outra pessoa, de ver o outro como uma pessoa igual, que contribui e é digna, que tem uma presença na qual nossa própria humanidade se reflete.

Trata-se de uma conexidade abnegada, voltada para fora, para o bem-estar de outra pessoa e o seu reconhecimento como pessoa. É uma forma de mutualismo em que o orgulho de si mesmo depende inteiramente de se sustentar a dignidade do outro ou da comunidade. Falei sobre como o ubuntu sustenta uma metodologia de pesquisa mais reflexiva por meio de um conceito de “estar juntos em humildade” e sobre como ela contribui para uma pedagogia e prática da educação e da vida em alguns de meus artigos e capítulos de livros, particularmente em Swanson (2007), (2009a)  e (2009b) .

IHU On-Line – Em que aspectos o ubuntu ajudou a forjar a sociedade, a política e a economia sul-africanas? Onde ainda é preciso melhorar?

Dalene Swanson – Toquei em algumas dessas questões ao fazer referência à Comissão de Verdade e Reconciliação. O ubuntu também tem sido usado em nível de governo para incentivar a formação da nação, curar as cicatrizes do apartheid e a desconfiança entre as raças que aquele regime engendrou. Embora isso tenha sido até certo ponto bem-sucedido em uma frente, o problema é que foi implementado de cima para baixo, não sendo uma abordagem organizacional crescente que parte das bases. Os limites dessa abordagem podem ser vistos nas poucas semanas de violência xenófoba do ano passado contra refugiados e imigrantes de outros países africanos que vivem e trabalham na África do Sul.

Nesse contexto, o ubuntu parecia se aplicar apenas aos companheiros “sul-africanos” dentro da “nação do arco-íris” e não aos “estrangeiros” – um sinal de uma formação de nação que deu muito errado. Pode-se sustentar que, no primeiro caso, há uma discordância entre as bases filosóficas do ubuntu que promovem a fraternidade e a sororidade universais, extensivas a toda a humanidade, e o conceito de uma “nação” que invoca fronteiras e diferencia as pessoas (e sua humanidade) de acordo com a cidadania, garantindo direitos a alguns e não a outros. Eu discuto esse problema com maior profundidade em Swanson (2007).
Outro aspecto que pode ser destacado é que o ubuntu assinala a antítese do materialismo capitalista. Com o advento contínuo da globalização econômica e mediante a adesão a um modelo de desenvolvimento moldado pelo capitalismo, a África do Sul vem se tornando cada vez mais materialista, de tal modo que o abismo que separa “os que têm” e “os que não têm” aumentou consideravelmente, mesmo que as configurações raciais dessa hierarquia tenham mudado até certo ponto. Isso representa uma ameaça para o ubuntu. Poder-se-ia sustentar que é somente por meio da força do ubuntu e de um conjunto coletivo de valores e de responsabilidades que honrem a humanidade, a dignidade e os direitos igualitários dos outros que o status quo poderia ser superado – talvez uma nova luta pela libertação.

IHU On-Line – Qual a relação entre o ubuntu e a transcendência, em sentido teológico?

Dalene Swanson – Acho que se pode ver isso na forma como o arcebispo Desmond Tutu deu ao ubuntu uma interpretação especificamente teológica quando presidiu a Comissão de Verdade e Reconciliação . Empregado como um fórum espiritual para a recuperação da verdade e para fomentar as condições para o arrependimento e o perdão, o ubuntu foi mesclado com o cristianismo (com o qual estaria estreitamente aliado em termos dos princípios cristãos autossacrificadores do “ama teu próximo como a ti mesmo”) para levar a efeito um ethos para a reconciliação e a transcendência.

Isso não era incomum, pois, em boa parte do contexto africano, a filosofia espiritual africana está integrada ou é compatibilizada com a ética cristã. No fim das contas, entretanto, lealdades e alianças são uma questão de interpretação. O ubuntu continua sendo essencialmente uma filosofia viva que é praticada nas vidas de pessoas comuns em uma miríade de contextos em todo o continente, mostrando ‘humanitariedade’, solidariedade, compaixão e uma sabedoria espiritual coletiva que oferece dignidade, respeito e humanidade em sua expressão.

Por: Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

Via Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Imagem: Afrokut


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O ubuntu é ‘liberdade indivisível’

Para me envolver com o Outro como sujeito, como indivíduo livre como eu mesmo, como outro ser humano, eu também tenho de me tornar sujeito, reconhecendo nossa sujeição comum à história, à contingência e ao destino, explica o teólogo norte-americano Charles Haws

A partir da ótica do ubuntu, a liberdade e a autonomia do indivíduo andam de mãos dadas com a responsabilidade pelos outros. É por isso que “ubuntu significa principalmente a interconexidade dos seres humanos”, ou seja, seres fundamentalmente livres em relação – uma liberdade indivisível.

Para o teólogo norte-americano Charles Graham Haws, essa relação entre sujeitos livres ocorre a partir do momento em que eles reconhecem sua “sujeição comum à história, à contingência e ao destino”. “Não existe um eu singular que preexista a nossas relações com os outros. Sempre existimos tanto no singular quanto no plural”, sintetiza.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-LineHaws também aborda as relações entre o ubuntu e o cristianismo. Para ele, “o ubuntu nos ajuda a compreender a noção de ‘comunidade cristã’, lembrando-nos de um tipo de kenosis na busca da justiça”, explica.

Além disso, o ubuntu nos ajuda também a compreender nossas relações com outros “sujeitos” não humanos. SegundoHaws, “para que o ubuntu não se associe ao mito da predominância da humanidade sobre a natureza ou l’animot (como escreve Derrida), ele não pode se limitar a dizer que o humano só pode se sentir plenamente humano em relação com a humanidade apenas”. 

Charles Graham Haws é formado em filosofia e ciências religiosas pelo Carson-Newman College, no Tennessee, dos EUA. Também é mestre em teologia pela McAfee School of Theology, da Mercer University, de Atlanta, nos EUA, com a dissertação Re/writing Tradition and the Tradition of Re/writing: The Crucified God as the Foundation and Criticism of Christian Theology. É membro da American Academy of Religion e da Society of Biblical Literature. Dentre outros, é autor do artigo Suffering, Hope, and Forgiveness: The Ubuntu Theology of Desmond Tutu, publicado no Scottish Journal of Theology.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as noções centrais para se compreender o ethos do ubuntu?

Charles Haws – Ubuntu significa principalmente a interconexidade dos seres humanos, que é uma determinação da compreensão dos seres humanos como seres fundamentalmente livres – livres, por exemplo, de qualquer limitação fora da pessoa individual. Como o traduz a proverbial expressão xhosa, ubuntu ungamntu ngabanye abantu, “a humanidade de cada indivíduo está idealmente expressa na relação com outros” ou, se me é permitido parafrasear Tutu, o ubuntu é “liberdade indivisível”. É justamente essa tensão que me intriga em relação ao ubuntu e que chama a minha atenção, algo que também Robert Orsi  comunica no último Harvard Divinity Bulletin. Para me envolver com o outro como sujeito, como um indivíduo livre como eu mesmo, como outros seres humanos, eu “também tenho de me tornar sujeito” através do “reconhecimento de nossa sujeição comum à história, à contingência e ao destino” . Eu tenho de reconhecer minha própria liberdade indivisível, de que eu sou quem eu sou em relação com outros. Envolvemo-nos com o mundo, continua Orsi, através das circunstâncias dentro das quais nos encontramos junto com eles – é assim que eu compreendo o ubuntu.
Também é importante reconhecer que o ubuntu é um termo sul-africano que representa um ethos africano polissêmico humanista e religioso. Variações do conceito proliferam nas línguas banto, que se multiplicam na África central, oriental e meridional. Elas geralmente expressam comunitariedade, respeito, dignidade e generosidade.

IHU On-Line – Qual a contribuição da teologia do reverendo Tutu  para a compreensão do ubuntu?

Charles Haws – Uma compreensão popular do ubuntu em evidência hoje deriva do uso do conceito como nome de um sistema operacional de código-fonte aberto desenvolvido pela Linux  . O sistema é movido por uma filosofia de software livre. De fato, como visa a difundir e a levar os benefícios do software para todas as partes do mundo, a filosofia ubuntu expressa pela Linux enfoca a liberdade, a liberdade de “baixar, rodar, copiar, distribuir, estudar, compartilhar, mudar e melhorar seu software para qualquer propósito, sem pagar taxas de licenciamento”; de “usar seu software na língua de sua escolha”; e de “usar softwares mesmo que trabalhem sob uma deficiência” .

A compreensão popular apresentada pelo software da Linux dificilmente constitui a concepção robusta que Tutu tem do ubuntu. Sua teologia se concentra não na liberdade de indivíduos, mas na interconexidade desses indivíduos ou, como eu disse acima, na “liberdade indivisível”. É isso que me atrai tanto no conceito, no seu potencial: o fato de compreender a liberdade em relação a certo tipo de unidade, um tipo de unidade cuja possibilidade não reside na mesmidade, mas na justiça. É isso que Tutu diz em Hope and Suffering (p. 23): “Para que haja unidade, ela deve se basear, em última análise, no valor da justiça”.
Agora, o ubuntu avança rumo à justiça, não à vingança; ele se dirige rumo à restauração, não à retaliação. A teologia de Tutu entrelaça o ubuntu no tecido da história cristã, afirmando que Deus criou a humanidade indissoluvelmente interconectada. A declaração do ubuntu é a declaração de uma esperança transformadora, uma esperança por reconciliação e sua concretização em meio à vida humana, que está fragmentada e repleta de injustiça.

IHU On-Line – Para o senhor, “a teologia do ubuntu de Tutu é desafiadora para a compreensão dominante da teologia ocidental”. Por quê?

Charles Haws – O ubuntu se distingue tanto do individualismo cartesiano quanto do coletivismo homogêneo da submissão à “vontade geral” de Rousseau . Em A democracia na América, De Tocqueville  compara o pai da filosofia moderna, Descartes , com o pai do protestantismo, Lutero , satirizando: “Quem não percebe que Lutero, Descartes e Voltaire  empregaram o mesmo método?”. Seu método comum de dependência de si mesmo, expresso em uma desconsideração geral pela comunidade e tradição, passou a ser uma parte central não só da ideologia americana, na qual De Tocqueville se concentrou, mas também da teologia ocidental. A esse individualismo do Ocidente, contrapõe-se a ideia da “vontade geral” de Rousseau: o indivíduo se submete à república aderindo ao contrato social, e o contrato social representa a conformação ou homogeneização dos interesses individuais em interesses coletivos. O indivíduo transfere seus direitos à comunidade para suprimir a anarquia e alcançar segurança da vida e da propriedade; seu propósito é formar uma sociedade a que ele se submeteria completamente.

De acordo com o ubuntu, nenhuma dessas opções combina satisfatoriamente a liberdade e a autonomia do indivíduo com sua responsabilidade pelos outros; nenhuma das opções o chama a assumir o fato de ser livre somente na medida em que está interconectado, e que sua liberdade é inseparável de sua busca por justiça. De fato, a compreensão teológica do ubuntu por parte de Tutu afirma que Deus criou a humanidade indissoluvelmente interconectada. Mas o individualismo prolifera em muitas teologias ocidentais, tanto acadêmicas quanto eclesiais: elas tendem a centralizar o indivíduo em termos de experiência religiosa – o indivíduo tem uma revelação pessoal, muitas vezes inexplicável – ou em termos de autoridade religiosa – o crente individual é responsável diante de Deus por sua aceitação ou rejeição do evangelho. O ubuntu enfoca não só a divisão de indivíduos, mas também a divisão de grupos, a confrontação de grupo contra grupo.
Tutu acreditava que esse era o caso da Igreja sul-africana branca na questão do apartheid, cuja cumplicidade se refletiu fortemente nas convicções teológicas da Igreja. Se a Igreja sul-africana branca não se considerava responsável por intervir, por condenar a sistemática segregação do apartheid, então ela não tinha qualquer percepção de sua conexidade com os negros.

IHU On-Line – A partir da ética do mundo, como é possível compreender a importância e o sentido da reconciliação e da justiça?

Charles Haws – Citando Derrida , poderíamos dizer que a afirmação da conexidade em meio ao apartheid por parte de Tutu – que os africânderes  não estavam livres dos povos xhosa ou zulu (ou vice-versa) – era efetivamente desobediência civil, “não desafio da lei, mas desobediência com relação a alguma disposição legislativa em nome de uma lei melhor ou superior” . A lei superior do ubuntu é a justiça em um sentido total e restaurador, não parcial ou retributivo. A “ética” ubuntu pressupõe a reconciliação na medida em que define justiça em termos de socialidade, de relação com o Outro; para alcançar a justiça, especialmente em contextos repletos de divisões, é necessário restaurar as relações entre o meu próprio “eu” e o meu próprio Outro. A justiça definida dessa maneira equivale à lei superior que o ubuntu quer continuamente nos trazer à lembrança.
Assim, em uma era de terrorismo globalizado, da exploração de sociedades abertas e da tentativa de afirmar (embora de maneiras calculadas) as regras da lei democrática e dos direitos humanos, o que o ubuntu busca? Como professor visitante do programa “Semester at Sea”, durante a primavera de 2007, Tutu discutiu o clima de medo existente nos EUA depois do 11 de setembro – uma terrível atmosfera de insegurança. Mas Tutu tinha a esperança de que os norte-americanos veriam sua segurança vinculada com a segurança de todos os demais. Lembro de assistir aos acontecimentos do dia 11 de setembro na televisão da sala de aula, estupefato e atônito, junto com todos os meus colegas, praticamente sem entender o que estava acontecendo. Qualquer que tenha sido a justificativa para começar a Guerra no Iraque, a presença norte-americana no Oriente Médio se concentra agora no “terrorismo”, em desmantelar suas raízes para que seus ramos não alcancem as praias norte-americanas de novo.
Não faço parte da geração de norte-americanos que seguiu Bush para o Iraque. Mas faço parte da geração de norte-americanos que precisam lidar com suas consequências, a herança do 11 de setembro e de um clima internacional de radicalização e antecipação. Se o ubuntu realmente é um conceito robusto, devo perguntar qual é seu papel nesse contexto. Como os “interesses nacionais” do “meu” país se relacionam com o ubuntu? Com que Outro os EUA estão relacionados e por quem são responsáveis? O que significaria se, olhando pela ótica do ubuntu, os EUA “não se sentissem ameaçados pelo fato de outros serem capazes e bons” e “se situassem em um todo maior e fossem diminuídos quando outros são humilhados ou diminuídos, quando outros são torturados ou oprimidos” ?

A autonomia luterano-cartesiana mencionada anteriormente impregna o sujeito humanista, pois, como “o ser humano é a medida de todas as coisas”, ele é o autor de todos os sentidos e tem o domínio sobre si mesmo e seu mundo. Heidegger  questiona essa tradição no Ocidente: “Pelo fato de estarmos falando contra o ‘humanismo’, as pessoas temem uma defesa do desumano e uma glorificação da brutalidade bárbara. Pois, o que é mais ‘lógico’ do que isto: quem nega o humanismo, não lhe resta senão afirmar a desumanidade? (…) Deveria estar mais claro agora que a oposição ao ‘humanismo’ de forma alguma implica na defesa do desumano, mas, ao contrário, abre outras perspectivas”. 

De fato, o apartheid seria a brutalidade desumana e bárbara a ser denunciada, e o ubuntu ofereceria um “humanismo” alternativo ao sabor do apartheid, de gosto amargo. O ubuntu criticaria o sujeito humanista como dominador e autônomo – no caso do apartheid sul-africano, o africânder como superior – definindo o “sujeito”, pelo contrário, como relacional… Junto com a obra de Lévinas , Derrida, Nancy  e outros, o que eu encontro no ubuntu é um tipo de movimento duplo que “não converte a relação anárquica e assimétrica com o Outro na visão sinótica da totalidade social, nem institui um novo princípio de justiça baseado no ideal comunitário dos valores morais compartilhados” . 

Voltando a Heidegger, uma das percepções mais importantes e temáticas centrais de Jean-Luc Nancy é que os indivíduos de forma alguma estão fundamentalmente separados um do outro, o que é muitíssimo semelhante à concepção de Heidegger a respeito de Mitsein [“ser-com”] em Ser e tempo (1929). Apesar da radical dissolução da comunidade na era pós-moderna, Nancy amplia sua perspicácia filosófica para nos lembrar de nossa existência singular-plural – que sempre-já existimos em relação uns com os outros. Não existe um eu singular que preexista a nossas relações com os outros; sempre existimos tanto no singular quanto no plural; seres singulares existem apenas em uma “socialidade” original. Essa é a ideia do conceito de compearance – que considero muito semelhante ao ubuntu em sua acepção mais básica – que aparece em The Inoperative Community (1991) de Nancy, no ensaio em Political Theory intitulado La Comparution/The Compearance (1992) e em Being Singular Plural. Ou, nas palavras de Derrida, já estamos envolvidos na “relação com o Outro antes de qualquer socius organizado” . E, no entanto, embora existamos em uma “socialidade” original, não devemos conceber “o ‘comum’ [commun]” como “o como-um [comme-un]” , pois a própria “respiração de toda ‘comunidade’”, explica Derrida, é “um certo desenredamento interruptor (…) do ‘vínculo social’” .

IHU On-Line – Qual o valor e o significado do ser humano e da vida humana para o ubuntu?

Charles Haws –

IHU On-Line – Como o ubuntu pode nos ajudar a entender a noção de “comunidade cristã”? Podemos dizer que Jesus também viveu o ethos do ubuntu?

Charles Haws – Como escreve o biógrafo Anthony Sampson , Mandela  foi educado com a noção africana da fraternidade humana, ou ubuntu, que descrevia uma qualidade de responsabilidade e compaixão mútuas.  Mandela contava histórias sobre uma pessoa que viajava por um país e parava em um vilarejo para pedir água e comida. O que levava os habitantes da aldeia a dar aquilo de que o estrangeiro necessitava era o ubuntu, diz ele. Esse certamente parece ser o ethos cultivado pelas histórias de Jesus em que ele anda pelo mundo greco-romano somente com uma túnica e sandálias. Certamente concordo que certos aspectos das histórias que os cristãos contam sobre Jesus ilustram o ubuntu, mas considero, em última análise, que o ubuntu transcende, inclusive ultrapassa, as fronteiras do cristianismo.
De fato, o ubuntu é tanto humanista quanto religioso (talvez sem afirmar uma dicotomia entre ambos os aspectos). Eu diria que ele cultiva uma religião humanista ou um humanismo religioso que milita contra sua própria colonização. Considerando que as comunidades tendem a neutralizar as diferenças, tratando todos os membros da mesma forma (por exemplo, o outro pertence à minha comunidade somente na medida em que é igual a mim), e a definir a si mesmas segundo uma lógica de oposição (por exemplo, excluindo o outro que não é como eu) – que são fatores muito atuantes no cristianismo –, o ubuntu nos devolve à interconexidade dos seres humanos sem a presunção de semelhança. 

Além disso, eu identificaria, com Nancy, “a essência do cristianismo como abertura: uma abertura do ‘eu’ e do ‘eu’ como abertura” . Assim, eu diria que o ubuntu nos ajuda a compreender a noção de “comunidade cristã” lembrando-nos de um tipo de kenosis  na busca da justiça que não espera para perguntar a quem você reza (ou não reza).

IHU On-Line – O senhor afirma que, à luz do ubuntu, “o perdão (…) deve se mostrar mais profundamente quando toda a esperança está perdida”. Em sociedades com forte violência e pobreza, como as africanas e as latino-americanas, qual a contribuição do ubuntu para a construção de uma sociedade mais justa?

Charles Haws – Escrevi em um artigo anterior que, para Tutu, “Deus, em Jesus Cristo, reconcilia a humanidade com o divino, afirmando a particularidade humana na particularidade de Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que também conecta a humanidade à bondade universal de Deus”.  Essa ideia de reconciliação e de perdão é essencial ao cristianismo. O perdão da humanidade por Deus em Cristo e a formação da comunidade sobre esse fundamento caracteriza o cristianismo por excelência. Ter fé na possibilidade da reconciliação e do perdão segue e dá esperança quando toda a esperança está perdida. Tutu compreende que o perdão não é decorrência de mérito, que a reconciliação procede da convicção ubuntu – a percepção da interconexidade.
 O perdão, mesmo em sociedades marcadas por violência e pobreza, efetiva-se, de acordo com o ubuntu, ao buscar a reconciliação, ao recusar perpetuar ciclos de sujeição à retaliação ou de responsabilização do tipo “toma lá, dá cá”. O ubuntu nos coloca estas perguntas: cremos que pertencemos a um todo maior e somos diminuídos quando outros são humilhados ou diminuídos, e, parafraseando Mandela, vamos perdoar, procurar a reconciliação – viver de acordo com o ubuntu – a fim de possibilitar que as comunidades ao nosso redor sejam capazes de melhorar?

IHU On-Line – A partir do ethos do ubuntu, qual a compreensão da nossa relação com a natureza e da proteção das vidas de seres não humanos?

Charles Haws – Se compreendemos corretamente que “a humanidade de cada indivíduo se expressa em termos ideais na relação com outros” ou que “eu sou eu mesmo somente em relação com outros”, temos de perguntar até que ponto este “eu” – assim como esse “outro” – está limitado ao gênero homo. De fato, as questões sobre o que constitui a “humanidade” e qual será o legado do “humanismo” se renovam, pois a própria ideia de uma “humanidade” compartilhada – algo que o ubuntu defenderia – sofre sob o peso da história e capenga em crise. Para que o ubuntu não se associe ao mito da predominância da humanidade sobre a natureza ou l’animot (como escreve Derrida), ele não pode se limitar a dizer que o humano só pode se sentir plenamente humano em relação com a humanidade apenas. Repetindo: o que é o “humano” e de que forma ele se difere do “animal”?

Na busca do ubuntu por cultivar comunidade, responsabilidade e justiça nos seres humanos, ele certamente se opõe à exploração, presumivelmente também à exploração da natureza. Mesmo assim, a concepção científica ocidental da natureza, que provém do humanismo renascentista e glorifica a capacidade humana de explorar e controlar a natureza, vendo a natureza agora como uma distribuição probabilística de energia com uma tendência à entropia, não facilita um senso de justiça mais do que humano. Talvez os recentes desastres ambientais e suas devastações façam essa questão voltar à mesa de discussão.

Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

Via Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Imagem: Afrokut


O que é Ubuntu?

“Eu só existo porque nós existimos”: a ética Ubuntu

Para o teólogo congolês e doutor em sociologia Bas’Ilele Malomalo, toda existência é sagrada para os africanos, ou seja, há um pouco do divino em tudo o que existe. Por isso, “o Ubuntu retrata a cosmovisão do mundo negro-africano”

“Sou porque nós somos”: em uma frase, esse seria o resumo da ética ubuntu. Porém, é na construção histórica e cultural dessa ética que nasce na África, que se encontra a sua riqueza. Para o filósofo e teólogo congolês Bas’Ilele Malomalo, toda existência é sagrada para os africanos, ou seja, há um pouco do divino em tudo o que existe. Por isso, “o ubuntu retrata a cosmovisão do mundo negro-africano”.
É por isso que o suposto antropocentrismo que poderia estar por trás do ubuntu é “relativista”, segundo Malomalo, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “O ser humano africano sabe que nem tudo depende da sua vontade”, afirma. “Esta depende também da vontade dos ancestrais, dos orixás”, em suma, do sagrado.

Por outro lado, ubuntu e felicidade são conceitos que andam juntos: “Na África, a felicidade é concebida como aquilo que faz bem a toda coletividade ou ao outro”. E quem é o meu “outro”? “São meus orixás, ancestrais, minha família, minha aldeia, os elementos não humanos e não divinos, como a nossa roça, nossos rios, nossas florestas, nossas rochas”. Dessa forma, resume Malomalo, para a filosofia africana, “o ser humano tem uma grande responsabilidade para a manutenção do equilíbrio cósmico”.

Bas’Ilele Malomalo é natural do Congo, África, e possui graduação em Filosofia pelo Grand Seminaire Fraçois Xavier – Filosoficum e em teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores – Itesp. É mestre em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e é doutorando em sociologia pela Universidade Estadual Paulista – Araraquara. Atualmente é pesquisador do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Cladin-Unesp. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é e quais as origens do ubuntu?

Bas’Ilele Malomalo – Etimologicamente, ubuntu vem de duas línguas do povo banto, zulu e xhona, que habitam o território da República da África do Sul, o país do Mandela . Do ponto de vista filosófico e antropológico, o ubuntu retrata a cosmovisão do mundo negro-africano. É o elemento central da filosofia africana, que concebe o mundo como uma teia de relações entre o divino (Oludumaré/Nzambi/Deus, Ancestrais/Orixás), a comunidade (mundo dos seres humanos) e a natureza (composta de seres animados e inanimados). Esse pensamento é vivenciado por todos os povos da África negra tradicional e é traduzido em todas as suas línguas.
A origem do ubuntu está na nossa constituição antropológica. Pelo fato de a África ser o berço da humanidade e das civilizações, bem cedo nossos ancestrais humanos desenvolveram a consciência ecológica, entendida como pertencimento aos três mundos apontados: dos deuses e antepassados, dos humanos e da natureza.

Com as migrações intercontinentais e a emergência de outras civilizações em outros espaços geográficos, essa mesma noção vai se expressar em outros povos que pertencem às sociedades ditas pré-capitalistas ou pré-modernas. É dessa forma que se pode afirmar que essa forma de conceber o mundo, na sua complexidade, é um patrimônio de todos os povos tradicionais ou pré-modernos. Cada um expressa isso através de suas línguas, mitos, religiões, filosofias e manifestações artísticas.

Como elemento da tradição africana, o ubuntu é reinterpretado ao longo da história política e cultural pelos africanos e suas diásporas. Nos anos que vão de 1910-1960, ele aparece em termos do panafricanismo e da negritude. São esses dois movimentos filosóficos que ajudaram a África a lutar contra o colonialismo e a obter suas independências. Após as independências, estará presente na práxis filosófica do Ujama de Julius Nyerere , na Tanzânia; na filosofia da bisoité ou bisoidade (palavra que vem da língua lingala, e traduzida significa “nós”) de Tshiamalenga Ntumba; nas práticas políticas que apontam para as reconciliações nacionais nos anos de 1990 na África do Sul e outros países africanos em processo da democratização. 

A tradução da ideia filosófica que veicula depende de um contexto cultural a outro, e do contexto da filosofia política de cada agente. Na República Democrática do Congo, aprendi que ubuntu pode ser traduzido nestes termos: “Eu só existo porque nós existimos”. E é a partir dessa tradução que busco estabelecer minhas reflexões filosóficas sobre a existência. Muitos outros intelectuais africanos vêm se servindo da mesma noção para falar da “liderança coletiva” na gestão da política e da vida social.

IHU On-Line – Como um princípio ético nascido na África, que manifestações do ubuntu podemos encontrar na cultura brasileira ou afro-brasileira, tão marcada por raízes africanas?

Bas’Ilele Malomalo – É preciso voltar à história para capturar as manifestações do ubuntu em suas diásporas transatlânticas. No Brasil, a noção do ubuntu chega com os escravizados africanos a partir do século XVI. Estes trouxeram a sua cultura nos seus corpos, e ela foi reinventada a partir do novo contexto da escravidão. Por isso, falar de ubuntu no Brasil é falar de solidariedade e resistência. Como outros registros histórico-antropológicos que expressam o “ubuntu afro-brasileiro”, podemos citar os quilombos, as religiões afro-brasileiras, irmandades negras, movimentos negros, congadas, moçambique, imprensas negras.

IHU On-Line – Como podemos compreender a religião ou o sagrado por meio do ubuntu? De que forma ele tenciona a noção religioso-transcendental?

Bas’Ilele Malomalo – Para os africanos e seus descendentes, toda existência é sagrada, quer dizer, há um pouco do divino em tudo o que existe. A religião, como instituição social e sistema simbólico, apresenta-se como o espaço privilegiado de alimentação da “consciência ubuntuística”. Através de seus ritos, seus sacerdotes e adeptos a reatualizam. Os mitos, as celebrações, os cantos e encantamentos desempenham essa função de nos religar com nossos deuses, antepassados, com a comunidade, conosco mesmos, com o cosmos e a natureza. Além dos ritos sagrados, os profanos também desempenham a mesma função mística. Na África, os ritos de iniciação, de entronização dos reis ou rainhas estão sempre conectados com a ancestralidade.

IHU On-Line – Dentro da ética ubuntu, qual é o papel do ser humano e da comunidade?

Bas’Ilele Malomalo – A concepção africana do mundo é antropocêntrica. Não no sentido absolutista da filosofia iluminista ocidental, que pensa que o ser humano é o centro do mundo e que ele pode tudo e pode fazer tudo o que quiser. O antropocentrismo africano é “relativista”. Quer dizer, o ser humano africano sabe que nem tudo depende da sua vontade. Esta depende também da vontade dos ancestrais, dos orixás. Se estes revelarem, através de um sonho, de um Ifá, de um sacerdote, do seu pai ou da sua mãe, um acontecimento, será preciso prestar atenção.
Por outro lado, o antropocentrismo africano entende que uma boa prática religiosa só existe naquela que traz a felicidade para o ser humano. Como este não pode ser concebido fora das relações sociais, na África, a felicidade é concebida como aquilo que faz bem a toda coletividade ou ao outro. Os outros são meus orixás, ancestrais, minha família, minha aldeia, os elementos não humanos e não divinos, como a nossa roça, nossos rios, nossas florestas, nossas rochas. Dessa forma, para a filosofia africana, o ser humano tem uma grande responsabilidade para a manutenção do equilíbrio cósmico.

IHU On-Line – Em uma época de crise ecológica e ambiental, como o ubuntu pode nos ajudar a desenvolver uma nova relação com os demais seres não humanos?

Bas’Ilele Malomalo – Do ponto de vista filosófico, a crise planetária atual encontra suas raízes na expansão ocidental desde a Idade Média até o surgimento da modernidade. A hegemonia da “razão indolente” (Boaventura de Sousa Santos ) nas suas manifestações através do colonialismo, positivismo, racismo científico, capitalismo selvagem, tem sido o instrumento de aprofundamento dos males da nossa civilização. Esse pensamento absolutizou tanto o homem que este voltou-se contra suas divindades, contra a natureza e contra seus semelhantes. O seu “antropocentrismo absolutista” criou as condições de destruição da sua própria espécie e das espécies não humanas.

Qual é a saída que os pensamentos alternativos têm sugerido? Boaventura de Sousa Santos alega que é preciso acionar a “razão cosmopolita”; Edgar Morin  sugere o uso de uma epistemologia da complexidade; Leonardo Boff  tem sugerido a espiritualidade ecológica. É na busca da união umbilical, afirma Boff, que se encontraria a salvação da humanidade, a superação da crise ecológica atual.
Na filosofia africana, Tshiamalenga Ntumba tem interpretado o ubuntu em termos de Bisoidade. Tal prática se caracterizaria pela abertura ao diferente, encará-lo como parte de nós. Nessa direção, o mundo da fé, das divindades, dos orixás, dos ancestrais deve dialogar com o mundo dos seres humanos e não humanos (natureza/cosmos). Esse conceito vislumbra o encontro ético e político do “Nós”. Trata-se do “nós ecológico”. Para esse filósofo congolês, a existência significa uma interação entre as três dimensões da cosmovisão africana. As crises políticas, econômicas, culturais e sociais que têm afetado o continente africano, para ele, ocorrem porque o ser humano se esqueceu de cuidar do “biso” ou do “nós ecológico”.

Dessa forma, antes dos humanos cuidarem dos não humanos, precisam cuidar da sua casa. Quer dizer, rever suas práticas filosóficas e científicas dentro dos parâmetros éticos. Uma vez feito isso, poderiam ter condições de cuidar do meio em que vivem. Insisto nisso, porque há um certo pensamento ambientalista ligado à razão indolente. Muitos falam do meio ambiente para lucrar. Essa opção leva esses ativistas e cientistas a ocultar as misérias humanas. O ubuntu é uma crítica à visão simplista e interesseira. Pensar o desenvolvimento ambiental nessa perspectiva é perceber, como Boff, que deve se levar as coisas no contexto da dialética da complexidade, na qual o teológico, o antropológico e o cosmológico-ambiental dialogam sabiamente. Somos nós, os humanos, que devemos procurar o estabelecimento desse equilíbrio planetário. As responsabilidades têm que ser apuradas, e evitar o discurso da hipocrisia burguesa.

IHU On-Line – Como interpretar nossa memória, nosso passado, nossa ancestralidade a partir do ubuntu?

Bas’Ilele Malomalo – Na filosofia negro-africana, a ancestralidade é eixo do entendimento da nossa existência. É tudo aquilo que nos proporciona a vivência do nosso presente (sasa, em swahili) e nosso futuro (lobi, em lingala), tendo aqueles que pertencem ao passado (zamani, em swahili), os que nos antecederam, divindades, orixás e antepassados como ponto de leitura das duas primeiras dimensões da existência.
A vontade das divindades, geralmente, concretizam-se pelas vontade dos orixás e ancestrais presentes na sabedoria popular, nos mitos. Os sacerdotes e pessoas mais velhas vivas têm o papel de interpretá-la através dos ritos e práticas do cotidiano.

Desse ponto de vista, os mitos e ritos africanos têm por função pedagógica lembrar aos vivos o seu parentesco com os seres do mundo invisível e visível (seres humanos e seres não humanos). Todos os mitos africanos se pautam nessa lógica. Como os mitos judaicos, os mitos africanos nos informam que os seres humanos têm um pouco de divino; cada um é filho de um orixá; e um pouco da natureza. Conta um mito da criação que Oludumaré (Deus supremo) deu ao orixá Obatalá a missão de criar o ser humano, e este o fez a partir do barro (elemento da natureza). Eis a nossa irmandade planetária. A cosmovisão africana do mundo tem uma importância no sentido de contribuir para o pensamento ecológico contemporâneo.

IHU On-Line – Em uma sociedade embasada em valores ocidentais e modernos como a nossa, que questionamentos políticos, econômicos e sociais o ubuntu pode fomentar?

Bas’Ilele Malomalo – O ubuntu pertence ao pensamento alternativo, que cogita o mundo a partir da complexidade. E é oportuno reafirmar que toda filosofia carrega valores e antivalores. Para a filosofia de ubuntu, não se pode falar de economia e política sem levar em consideração os valores da comunidade cósmica. Os profissionais de todos os campos da teologia, das ciências sociais e da natureza, políticos, o homem e a mulher comuns, todos devem ser ouvidos. O ubuntu luta contra os reducionismos impostos pela razão indolente no fazer política e economia. A democracia participativa em todos os campos é tida como um valor. A economia não se reduz ao crescimento. Este tem a ver também com o social e com o cultural. O valor de solidariedade é também importante.

IHU On-Line – Diante da violência e das desigualdades, que significado têm o perdão, a reconciliação e a compaixão para a ética ubuntu?

Bas’Ilele Malomalo – É preciso dizer, primeiro, que as vítimas da violência e das desigualdades são aquelas que compõem a classe dos excluídos por motivos raciais, de gênero, de opção sexual ou religiosa. Os seres não humanos também pertencem a essa classe dos dominados pelo fato de interagir com as classes dominantes, agentes da razão indolente, de uma forma desigual. Com isso, estou querendo afirmar a historicidade da violência e das desigualdades.

Olhando para a história africana e da sua diáspora brasileira, quero citar alguns casos em que o ubuntu se materializou ou foi tensionado para ser traduzido em termos de perdão, reconciliação e compaixão.
A África do Sul, após a libertação de Mandela e o fim do apartheid, colocou-se como o exemplo histórico da tradução do ubuntu no projeto político multicultural. Esse país, através de suas lideranças políticas, religiosas e sociais, soube fazer uso dos princípios éticos dessa filosofia através do estabelecimento da Comissão da Verdade e Reconciliação. Tratava-se da recriação de um espaço de diálogo da comunidade de inspiração nos “palabres africanos”. Palabre é uma palavra francesa, que se refere aos espaços de mediação de conflitos da comunidade, que contam com a habilidade do uso da palavra por parte dos mais velhos ou sábios. Não se tratava de um espaço de condenação dos torturadores ou racistas, mas sim de um encontro do povo sul-africano consigo mesmo, com seus problemas do passado, com o seu presente e com o seu futuro a ser construído. Um encontro com a sua memória de dor, sofrimento e de esperança. Após esse processo, esse país se define hoje como uma Nova África do Sul, que se reconhece como um país multicultural, onde brancos e negros podem conviver juntos. Dessa forma, o zamani [passado] de sofrimento se transformou num sasa-lobi [presente-futuro] de esperança.

Em 2001, com a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata (31 de agosto a 8 de setembro de 2001), em Durban, na África do Sul, as vítimas do escravismo colonial europeu, africanos e seus descendentes, exigiram aos Estados europeus, americanos e africanos um pedido de perdão pelos atos cometidos. Os Estados africanos através do representante da União Africana o fizeram, mas da parte dos dirigentes dos outros Estados houve resistência. Pois muitos não queriam assumir a sua responsabilidade histórica. Afinal de contas, a conferência condenou a escravidão como crime contra a humanidade.

Esses dois exemplos devem inspirar todas as sociedades multiculturais que pretendem propiciar um destino melhor para todos os seus cidadãos. Os países africanos que ainda brigam por causa da hegemonia política ou da gestão dos recursos naturais; os países da América Latina, como o caso do Brasil, onde as sequelas do escravismo e do racismo dividem, proporcionando aos seus cidadãos o acesso aos direitos políticos, econômicos, sociais e culturais de forma diferenciada, devem se servir dos exemplos citados, para que o ubuntu se torne uma profecia da esperança cumprida.
No caso dos países africanos em situação das ditaduras militares, da democracia de fachada ou da democracia fraca e do pós-conflito, cabe apelar ao ubuntu como uma nova forma de se pensar e fazer política. Governar, nesse sentido, significa ouvir os opositores, presentes em outros partidos políticos, nas organizações da sociedade civil, nas aldeias para a elaboração de um projeto nacional coletivo. Perdoar significa também fazer justiça em relação às mulheres vítimas de estupros, de genocídios, de matanças por razões de egoísmo dos senhores de guerras africanas. Reconciliação, nesse contexto, significa esclarecimento perante a comunidade dos problemas que afetam as nações, e a partilha das responsabilidades. É uma volta à memória ancestral, aos valores africanos do passado, mas atualizados no presente, e o seu uso no exercício de fazer a política na modernidade. Nesse aspecto, a legitimidade dos dirigentes se fundamenta na prática da lealdade, na busca do bem-estar do povo, e não o contrário.

IHU On-Line – Em um contexto social como o brasileiro, como a ética ubuntu pode contribuir na situação contemporânea?

Bas’Ilele Malomalo – Uma coisa que o ubuntu tem para nos ensinar, nesse momento histórico de experimentação de políticas públicas de ações afirmativas e cotas, é a consideração dos elementos de perdão, reconciliação e compaixão. Para mim, perdoar significa antes de tudo a identificação das causas de nossos males. Os males, que justificam a situação do subdesenvolvimento da população negra quando comparada com a branca, têm nomes: o nosso passado escravista e o racismo contemporâneo. Há outros fatores, mas esses dois são suficientes. Para a teologia afro-brasileira, eles são identificados aos pecados.
As instituições e as pessoas reprodutoras dessas práticas têm que assumir suas responsabilidades perante Deus e a humanidade. Num país de maioria cristã como o Brasil, exercer a compaixão significa colocar-se no lugar do outro. As Igrejas cristãs como parte da sociedade civil brasileira devem exercer o seu papel profético ao lado das igrejas, comunidades, pastorais negras, em vez de ficar “em cima do muro”. A Igreja latino-americana dos anos 1970 precisa voltar. O grito de Maranata aqui significa que as comunidades religiosas têm o dever ético de fazer ouvir a sua voz e interagir no debate atual sobre as políticas públicas para negros e indígenas.

Reconciliação na perspectiva do ubuntu, no Brasil atual, é um encontro entre nós mesmos, com o nosso passado de dor, resistência e esperança. É um encontro entre nós mesmos como povo brasileiro. Um povo marcado pela miscigenação emancipatória e não um falso discurso de miscigenação colonialista. A diferença é que o primeiro discurso assume a pluralidade como valor, já o segundo o nega e o encara como uma ameaça.

Por Moisés Sbardelotto

Via Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Imagem: Afrokut


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Ubuntu “a filosofia do ‘Nós’”

A importância vital do “Nós”

Segundo o filósofo sul-africano Mogobe Ramose, para a filosofia ubuntu, “a comunidade é lógica e historicamente anterior ao indivíduo” e por isso tem a primazia sobre este. Essa comunidade, explica, é uma “entidade dinâmica” entre três esferas: a dos vivos, a dos mortos-vivos e a dos ainda não nascidos.

Se o ubuntu pode ser compreendido como uma ontologia, uma epistemologia e uma ética, sua noção mais fundamental é “a filosofia do ‘Nós’”, segundo o filósofo sul-africano Mogobe Bernard Ramose. Em termos coletivos, o ubuntu se manifesta nos princípios da partilha, da preocupação e do cuidado mútuos, assim como da solidariedade.

Por isso, Ramose, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, explicou que, na filosofia ubuntu, “a comunidade é lógica e historicamente anterior ao indivíduo. Com base nisso, a primazia é atribuída à comunidade, e não ao indivíduo”. Essa comunidade é definida como uma “entidade dinâmica” entre três esferas: a dos vivos, a dos mortos-vivos (“ancestrais”) e a dos ainda não nascidos. 

Entretanto, afirma, dentro desse contexto, o indivíduo não perde sua identidade pessoal e sua autonomia. “A luta contra a colonização na África se baseia justamente no reconhecimento da autonomia individual. No caso da colonização, essa luta se manifesta como um povo que defende e reafirma seu direito como grupo à autonomia ou à liberdade”, explica.

Segundo Ramose, sua luta atual é que o ubuntu tenha uma “presença real e visível” na Constituição sul-africana, a exemplo do que aconteceu no Equador e na Bolívia com relação aos princípios do sumak kawsay . Nesse sentido, para outras culturas, o ubuntu pode “enfatizar a importância vital de levar o ‘Nós’ a sério”. Ou seja, na prática, um polílogo entre culturas e tradições para uma melhor compreensão mútua e a defesa da vida humana.

Mogobe Bernard Ramose é professor de filosofia da Universidade da África do Sul – Unisa e diretor do Centro de Aprendizagem Regional da Unisa, em Adis Abeba, na Etiópia. Doutor em filosofia pela Katholieke Universiteit Leuven, da Bélgica, desenvolve sua pesquisa nos campos da filosofia africana e da filosofia da política, direito e relações internacionais. Trabalhou na Universidade do Zimbábue e de Venda, na África, assim como na Tilburgh University, na Holanda. É autor, dentre outros, de African philosophy through ubuntu (Mond Books, 1999).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o significado de ubuntu?

Mogobe Ramose – Ubuntu é um termo que se encontra em várias línguas banto. Trata-se de duas palavras em uma, a saber: “ubu” e “ntu” no grupo nguni de línguas; botho, “bo” e “tho”, no grupo sotho de línguas; e hunhu, “hu” e “nhu” em xona.

É um conceito filosófico no sentido comum da filosofia como amor à sabedoria. Mas é também um conceito filosófico no sentido estreito da filosofia como disciplina acadêmica. Nesta última acepção, o ubuntu tem três sentidos inter-relacionados básicos: como uma 1) ontologia, 2) epistemologia e 3) ética.

IHU On-Line – Quais são as origens culturais e históricas do ubuntu?

Mogobe Ramose – A linguagem e o pensamento andam de mãos dadas. O pensamento é o instrumento para o cultivo e a construção da cultura. Assim, a linguagem – na acepção ampla de fala, ação e escrita – é a fonte do ubuntu. É comum pensar que as culturas da África indígena ao sul do deserto do Saara são principalmente orais, isto é, desprovidas de escrita. Mas essa concepção é questionável, porque tem uma acepção restrita do significado da escrita e também porque não se aplica à totalidade da África subsaariana, já que a Etiópia, por exemplo, tem sua própria língua escrita, o amárico. A persistência dessa concepção questionável tornou a “tradição oral” como uma das fontes da filosofia ubuntu. Através do veículo da “tradição oral”, a cultura ubuntu e a história dos povos de língua banto continuam sendo transmitidas de uma geração a outra.

É importante lembrar que o nome “África” não foi dado ao continente pelos povos indígenas que vivem nele desde tempos imemoriais. É como um nome de batismo imposto aos povos do Norte do continente primeiro pelos antigos gregos e romanos e, subsequentemente, a todo o continente pelos colonizadores. A divisão da África em duas partes com base no deserto do Saara também é uma imposição. Por conseguinte, é crucial reconhecer que quem nomeia ou batiza faz isso a partir de uma posição de poder. A partir disso, não surpreende constatar que alguns intelectuais indígenas do continente rejeitam o nome “África” como uma forma de expressar resistência ao poder do nomeador que nomeia.

IHU On-Line – Quais são os conceitos centrais envolvidos na ética e na filosofia ubuntu?

Mogobe Ramose – É muito importante notar que, de acordo com a ontologia do ubuntu, be-ing [em inglês, o verbo “ser”], diferentemente de being [o substantivo “ser”], não tem um centro. Assim falamos das noções duradouras que até agora têm sido as marcas de autenticidade do ubuntu. A noção fundamental da epistemologia e ética ubuntu é – tomando o termo emprestado de Tshiamalenga  – a filosofia do “Nós”. Nos termos dessa filosofia, os princípios da partilha, da preocupação e do cuidado mútuos, assim como da solidariedade, constituem coletivamente a ética do ubuntu.

IHU On-Line – Qual a relação existente entre a ética ubuntu e a noção africana de comunidade, autonomia e colonização?

Mogobe Ramose – A noção de comunidade na filosofia ubuntu provém da premissa ontológica de que a comunidade é lógica e historicamente anterior ao indivíduo. Com base nisso, a primazia é atribuída à comunidade, e não ao indivíduo. Entretanto, disso não se segue que o indivíduo perca a identidade pessoal e a autonomia. O indivíduo é considerado autônomo e, portanto, responsável por suas ações. De outra forma, toda a teoria e a prática do lekgotla – um fórum para a resolução de disputas entre indivíduos, assim como entre o indivíduo e a comunidade – não teriam sentido justamente porque a pressuposição da autonomia individual não se aplicaria.

A luta contra a colonização na África se baseia justamente no reconhecimento da autonomia individual. No caso da colonização, essa luta se manifesta como um povo que defende e reafirma seu direito como grupo à autonomia ou à liberdade.

IHU On-Line – Em que aspectos o ubuntu ajudou a forjar a sociedade e a política da África do Sul? Nesse sentido, em sua opinião, que pontos ainda precisam ser mais desenvolvidos?

Mogobe Ramose – A primeira fase da transição para a “nova” África do Sul foi parcialmente impulsionada pelo ubuntu na medida em que esse conceito foi usado para dar sentido à constituição interina de 1993. Ironicamente, mas por razões bastante táticas, o ubuntu está completamente ausente da Constituição final de 1996.
Apesar disso, o ubuntu foi usado, de maneira bastante discutível, para justificar a abolição da pena de morte e para dar credibilidade ao projeto Verdade e Reconciliação . No tocante a este último projeto, alguns clérigos cristãos assumiram a vanguarda na justificação da Comissão da Verdade e Reconciliação a partir da base teológica de que o “Deus” cristão endossou a reconciliação ao assumir a carne humana (a encarnação) como meio e método para restaurar a relação rompida entre “Deus” e Adão e Eva, alienados por causa da queda. 
 O problema dessa justificação é que o mesmo “Deus” até agora não tem disposição nem capacidade para restaurar a relação rompida entre Ele e Lúcifer, que O ofendeu com o pecado da soberba. Mesmo sem esse questionamento da justificação teológica da reconciliação, fato é que a sociedade sul-africana contemporânea continua em grande parte irreconciliada, na medida em que o abismo entre ricos e pobres aumenta, e os pobres se afundam em um abissal buraco negro. Há um imperativo ético de se corrigir isso urgentemente. O ubuntu pode ajudar nesse sentido, insistindo no reconhecimento, no respeito, na proteção e na promoção de sua máxima ética, expressada pelo provérbio “feta kgomo o tshware motho” – se a pessoa está em uma situação em que precisa optar entre proteger e salvaguardar a riqueza ou preservar a vida humana, ela deve então optar pela preservação da vida humana.

IHU On-Line – Como o ubuntu concebe a lei, o direito e a justiça?

Mogobe Ramose – A concepção ubuntu do direito é parte integrante da filosofia do “Nós” que define a comunidade como uma entidade dinâmica com três esferas, a saber: a dos vivos, a dos mortos-vivos (“ancestrais”) e a dos ainda não nascidos. A justiça é a efetivação e a preservação de relações harmoniosas em todas as três esferas da comunidade, e o direito é o instrumento para alcançar esse fim.

IHU On-Line – Na América Latina, alguns países incluíram a ética “sumak kawsay” (bem viver) em suas Constituições, como o Equador e a Bolívia. E o senhor defende que “não há uma razão a priori pela qual o ubuntu não deveria ser a filosofia básica para a democracia constitucional na África do Sul”. Por quê?

Mogobe Ramose – Eu gostaria de saber mais sobre “sumak kawsay”. Em uma resposta anterior, fiz referência ao fato de que, por alguma ironia e certamente por razões táticas, o ubuntu ficou de fora da Constituição final de 1996. A exclusão do ubuntu dessa Constituição é o que estou contestando, porque ela significa: 1) a rejeição de uma filosofia e de um modo de vida que têm sustentado e continuam sustentando os povos indígenas vencidos nas guerras injustas de colonização da África do Sul; 2) a integração forçada desses povos em um paradigma constitucional que não é deles, na medida em que descartou deliberadamente a sua filosofia; 3) a mudança tática do princípio da supremacia (soberania) parlamentar para a supremacia constitucional é a transmutação da injustiça da colonização e de suas consequências na justiça e, portanto, a negação da justiça para os povos indígenas vencidos da África do Sul.

Para a filosofia ubuntu, o tempo não muda a verdade, nem tem o poder de transformar uma injustiça em justiça. É por essa razão que eu defendo a presença real e visível do ubuntu na Constituição sul-africana ainda a ser acordada.

IHU On-Line – O que o ubuntu pode ensinar a outras tradições, culturas e ética não africanas?

Mogobe Ramose – Para outras culturas, o ubuntu pode enfatizar a importância vital de levar o “Nós” a sério. Na prática, isso significaria um ‘polílogo’ [ou polidiálogo] de culturas e tradições que promova a filosofia intercultural para a melhoria da compreensão mútua e a defesa da vida humana.

Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

Via Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Imagem: Afrokut


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