O tema da identidade cultural negra sempre foi espinhoso para as igrejas evangélicas e agravou-se, nas últimas décadas, com o ataque dos neopentecostais e das igrejas de outros segmentos contra as religiões afro-brasileiras e seus símbolos.
Se, nos Estados Unidos, as igrejas protestantes negras foram um importante espaço para a tomada de consciência étnica e a luta pelos direitos civis, no Brasil, nem de longe se constituíram com esse perfil.40 Primeiro, pela própria especificidade do racismo brasileiro. Segundo, pelas dificuldades para se identificar o que pode ser definido como “heranças negras ou africanas” na chamada “cultura mestiça” brasileira. E, terceiro, pelo tipo de missão evangelizadora dessas igrejas que enfatiza a universalidade do acesso aos dons do Espírito Santo e da prática de sua fé. Não podendo haver, nesse coletivo de irmãos convertidos, ódio, diferença e discriminação por qualquer motivo, inclusive a cor da pele, a missão de conversão tornar-se-ia o principal objetivo da ação proselitista cuja consequência natural seria a constituição de uma ordem social mais justa. Essas igrejas, portanto, mesmo tendo vivido sob um regime de exceção, como o período da ditatura militar, se mantiveram, com raras exceções, impermeáveis à influência de ideologias políticas de esquerda, ao contrário da Igreja Católica, com a Teologia da Libertação e as CEBs. Na verdade, as igrejas evangélicas temiam e combatiam o comunismo por sua pregação materialista e antirreligiosa. E, mesmo em período recente, após a redemocratização, a eleição de políticos evangélicos conservadores demonstra que essa tendência se manteve no perfil das igrejas que os apoiam.
Mas a ausência de um movimento negro no campo evangélico não significa que os problemas relativos à identidade negra não sejam postos nesse campo e que ações e iniciativas não sejam tomadas por parte de lideranças e religiosos negros visando à sua organização.41
Indícios de iniciativas recentes podem ser identificados, como apontou Burdick,42 em atuações pessoais, como a de Benedita da Silva, líder negra e evangélica, que foi eleita e participou da Subcomissão dos Negros, das Populações Indígenas e Minorias da Assembleia Nacional Constituinte (1988), e coletivas, como as denúncias de racismo, ainda que eventuais, feitas nos meios de divulgação e proselitismo das igrejas evangélicas. Ou, ainda, de forma mais sistemática, na criação de grupos de reflexão e militância negra surgidos no final dos anos de 1980, por ocasião do centenário da abolição. Foi nesse período que o movimento negro procurou congregar os diversos grupos voltados para a população negra, inclusive os de confissão religiosa. Surgiram, desde então, a Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo (CENACORA), em 1985, integrada ao Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), e inúmeras outras organizações: Comunidade Martin Luther King Jr. (da Igreja Pentecostal Cristo em Deus), em 1985; Missão Quilombo (da Igreja Pentecostal Brasil para Cristo), em 1991; Pentecostais Negros do Rio de Janeiro etc.43 Atualmente, por meio de grupos dessa natureza, fóruns de discussão, sites de divulgação, redes sociais, como a Rede Afrokut, lançada em 2008, entre outras iniciativas, têm se configurado o Movimento Negro Evangélico. Entretanto, a desarticulação entre as tendências e a falta de consenso entre as diversas denominações têm sido alguns dos seus maiores desafios.
No livro O movimento negro evangélico, Hernani Francisco da Silva define a missão do movimento como sendo a de “promover a reflexão e o debate bíblico/teológico em uma perspectiva negra e combater toda forma de racismo”.44 Reconhece que as diversas denominações cristãs foram, ao longo da história e em diversos contextos, coniventes com a escravidão e o racismo, mas registra a existência de lideranças evangélicas que se opuseram ao racismo e, em referência a elas, o movimento evangélico poderia traçar sua origem ou buscar inspiração para atuar. Lembra, inclusive, que o iniciador do movimento pentecostal nos Estados Unidos, na primeira década do século XX, foi um pastor afro-americano, William Joseph Seymor, que acolheu em sua igreja brancos e negros indistintamente. Entretanto, os ensinamentos de Seymor teriam se perdido com a transformação causada pela presença de lideranças brancas. Para Silva, essas lideranças teriam sido responsáveis pela implementação, no Brasil, de um “pentecostalismo branco racista norte-americano de viés reformado”, no âmbito do qual os valores ocidentais brancos são vistos como superiores e os de outros povos não brancos são desqualificados teologicamente e demonizados: “Os valores e a cultura ocidental são divinos modelos para todos os povos e as outras culturas não são de Deus, são do diabo, como a cultura afro”.45
E mais, as igrejas neopentecostais reforçariam o viés racista ao introduzir pontos teológicos, como a teoria da prosperidade, maldições heréticas e batalha espiritual.
Na Doutrina da Prosperidade se mede o crente abençoado por seus bens, onde de uma maneira simplista se faz um diagnóstico da situação do povo negro: “é pobre porque é pecador e é oriundo de um continente idólatra e praticante da bruxaria”. Segundo as maldições heréticas, o povo negro é considerado uma raça maldita e para que o negro se livre desta maldição (aceitar Jesus não é suficiente) é necessário que ele faça uma espécie de cura interior se desvinculando de todos os seus antepassados, ou seja, não sendo mais negro. […] A Batalha Espiritual reforça a demonização do povo negro: se olharmos cuidadosamente nos livros que tratam do assunto […] veremos que no exército de Deus são todos brancos e louros e no exército do diabo são todos pretos e negros. (grifos meus).46
Um ponto de dissenso é exatamente o lugar atribuído às heranças africanas, principalmente às religiões afro-brasileiras, na agenda de luta do movimento negro evangélico. Ainda segundo o pastor Hernani, para muitos, a questão da demonização impede o diálogo entre igrejas e terreiros, diálogo que poderia ser uma ferramenta útil para a superação do racismo e da intolerância religiosa.47
40 Para uma comparação entre pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos, cf. Marcia Contins, “Tornando-se pentecostal: um estudo comparativo sobre pentecostais negros nos EUA e no Brasil” (Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995); Marcia Contins, “Pentecostalismo e umbanda: identidade étnica e religião entre pentecostais negros no Rio de Janeiro”, Interseções, n. 2 (2002), pp. 83-98; Marcia Contins, “Convivendo com o inimigo. Pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos”, Caminhos, v. 1, n. 2 (2003).
41 Mesmo porque os grupos evangélicos têm na população pobre (e, portanto, negra) sua maior base de apoio.
42 John Burdick, “Pentecostalismo e identidade negra no Brasil: mistura possível?”, in Yvonne Maggie e Claudia Barcellos Rezende (orgs.), Raça como retórica. A construção da diferença (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), p. 189.
43 Burdick, “Pentencostalismo”; Hernani Francisco da Silva, O movimento negro evangélico. Um mover do Espírito Santo, São Paulo: Negritude Cristã, 2011.
44 Silva, O movimento, p. 16.
45 Silva, O movimento, p. 23.
46 Silva, O movimento, p. 25.
47 Silva, O movimento, p. 26.
Imagem: Uma mulher levanta as mãos durante um culto inter-religioso na Igreja Batista Ebenezer, a igreja onde o reverendo Martin Luther King Jr. costumava pregar. David Goldman / AP