Colonização, quilombos: modos e significações

O livro de Antônio Bispo faz parte da coleção de obras publicadas pelo INCT de Inclusão e assinadas por mestres e mestras das comunidades tradicionais brasileiras – indígenas, afro-brasileiras, e das culturas populares. Líder quilombola pertencente a uma comunidade rural do Piauí, Bispo foi professor da disciplina Encontro de Saberes na UnB em 2012 e 2013 e pertence à rede de mestres docentes do Instituto.

Seu livro traz uma perspectiva nova no campo de ensaios de interpretação do Brasil: a visão dos quilombos, comunidades de negros que se rebelaram contra a violência do regime escravo e se tornaram historicamente um símbolo maior da luta dos povos do Novo Mundo contra a escravidão e o racismo e pela afirmação de comunidades auto-sustentáveis.

Com uma narrativa concisa, Bispo constrói um argumento denso sobre a história das resistências, rebeliões, insurgências e experiências concretas de construção de comunidades livres e auto-sustentáveis, como Palmares, Canudos, Caldeirões e Pau de Colher, projetando seus ideais para os dias de hoje. Desenvolvendo um conceito amplo de colonização, o autor contesta o atual modelo ecocida e desumano de desenvolvimento econômico ao qual o Brasil, junto com os demais países da América Latina, se rendeu completamente.

Em contraposição a esse projeto de sociedade autodestrutiva, passa a propor uma alternativa civilizatória baseada na biointeração, comum aos quilombos, aos terreiros das religiões de matriz africana e à capoeira. É com essa síntese de pensamento crítico e libertário, e uma disponibilidade de mestre ao ensinar um saber profundo e essencial para a vida (incluindo a alegria, transparente no seu ensaio) que Bispo vem somar a sua escrita quilombista à galeria da intelectualidade brasileira atual.

José Jorge de Carvalho

Nego Bispo: o pensador quilombola

Antônio Bispo dos Santos (1959-2023) nasceu no Vale do Rio Berlengas, Piauí. Formou-se pelos ensinamentos de mestras e mestres de ofício do quilombo Saco-Curtume, município de São João do Piauí; completou o ensino fundamental, tornando-se o primeiro de sua família a ter acesso à alfabetização. Nego Bispo, como também é conhecido, é autor de artigos, poemas e dos livros Quilombos, modos e significados (2007) e Colonização, Quilombos: modos e significações (2015). Como liderança quilombola, atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Destaca-se por sua atuação política e militância, que estão fortemente relacionadas à sua formação quilombola, evidenciada por uma cosmovisão a partir da qual os povos constroem, em defesa de seus territórios tradicionais, símbolos, significações e modos de vida.

O pensamento de Bispo constrói-se a partir da experiência e concepções das comunidades quilombolas e dos movimentos sociais de luta pela terra. Dessa perspectiva, desenvolveu algumas proposições epistemológicas a partir dos saberes tradicionais dos povos “afro-pindorâmicos”, segundo a sua expressão para referir-se aos descendentes africanos e indígenas/pindorâmicos em substituição às designações empregadas pelo colonizador. Seu pensamento vem despertando debates dentro e fora da academia, sobretudo a partir do conceito de “contra-colonização”, que postula uma relação entre regimes sociopolíticos e cosmológicos. O autor compreende a colonização como um processo etnocêntrico que busca substituir uma cultura pela outra, por meio de práticas de invasão, expropriação e etnocídio. Como sugere o pensador quilombola, o conceito de “contra-colonização” inscreve no processo colonial a ressignificação da matriz cultural dos povos e de suas práticas tradicionais, de modo a ancorar a enunciação e as formas de resistência à colonização.

Colonização, quilombos: modos e significações (2015) propõe um novo ponto de vista acerca dos estudos decoloniais, ainda que não dialogue diretamente com essa literatura. A obra, que traz ensaios e poemas, elabora uma perspectiva própria sobre as formações “orgânicas” – como Bispo nomeia esse regime de subjetivação – das comunidades tradicionais, retomando a história da resistência de Palmares, Canudos, Caldeirões e Pau de Colher. A crítica epistemológica que o livro apresenta é engendrada pela cosmovisão dos povos contra-colonizadores, indissociável de suas práticas. A contra-colonização localiza-se, portanto, no âmbito de um debate teórico e prático, oferecendo instrumentos para examinar os modos de resistência de povos negros e indígenas que não se permitiram colonizar. A perspectiva crítica do autor repousa na experiência “orgânica” e política do povo quilombola, de forma que o pensamento contra-colonialista mostra-se uma prática que se dá por meio da cosmovisão afro-pindorâmica.

Outro pilar que constitui o conceito de contra-colonização é a relação entre discurso e prática, permitindo o que o autor chama de “confluência”, isto é a convivência entre elementos diferentes entre si e que, ainda assim, se aproximam em suas cosmovisões. Segundo ele, a confluência é o que tem mobilizado o pensamento dos povos tradicionais, oriundo da cosmovisão pluralista dos povos politeístas. A “transfluência”, em contrapartida, rege as “relações de transformação dos elementos da natureza”, estando associada a processos, discursos e práticas derivados da concepção monista, vinculados a um pensamento eurocêntrico e monoteísta. Esses dois pontos são importantes para a compreensão do que o autor denomina “pensamento orgânico” e “pensamento sintético”: o orgânico se refere ao saber constitutivo do desenvolvimento do ser, à organicidade advinda do processo de subjetivação e potência empírica da trajetória dos povos afro-pindorâmicos; o sintético seria o saber canonizado na academia, caracterizado por uma prática colonialista, constituindo-se pela ênfase no “ter.” Enquanto o orgânico é o saber da confluência, o sintético seria o da transfluência.

O pensamento de Nego Bispo busca oferecer contribuições políticas e acadêmicas aos movimentos de luta pela terra, com destaque para as organizações político-sociais dos povos indígenas e quilombolas. Ao reforçar as manifestações coletivas e ao colocar o acento político na oralidade, vem ocupando um lugar na reestruturação conceitual dos estudos decoloniais. Impulsionando o debate acadêmico, Bispo realizou palestras, conferências e cursos, tendo participado como professor e mestre convidado do projeto Encontro de Saberes (UNB/INCT). Ministrou aulas no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Fonte: Universidade de São Paulo – PORFÍRIO, Iago & OLIVEIRA, Lucas Timoteo de. 2021. “Antônio Bispo dos Santos”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <https://ea.fflch.usp.br/autor/antonio-bispo-dos-santos>