A Importância da Música no Movimento Negro Evangélico

A música se mostrou uma peça central na estratégia de atração e mobilização do MNE. Hernani mencionou a dificuldade em atrair grupos musicais pentecostais e neopentecostais para eventos do Movimento Negro Evangélico, mas destacou a relevância dos rappers gospel, que possuem uma forte conexão com a cultura negra. Burdick viu na música uma oportunidade de abrir uma janela para entender a visão de mundo dos evangélicos e suas expressões de negritude.

Eu refleti sobre essas questões em maio de 2002, durante uma série de conversas com Hernani da Silva, um líder do movimento negro evangélico iniciante e membro de longa data da igreja pentecostal Brasil Para Cristo. Hernani havia iniciado um site cristão negro em 1999 e havia acumulado várias dezenas de aliados virtuais e reais, mas ele precisava de mais. Onde encontrá-los? (John Burdick, 2013)

Como transformar essa pequena rede em um movimento mais amplo? Eu estava comprometido a desenvolver um projeto que pudesse ajudá-lo a fazer isso. Eu havia conceituado por algum tempo meu papel como antropólogo como co-designer de  investigações que pudessem ajudar a revelar aliados e eleitores ocultos, grupos de pessoas que compartilhavam as atitudes dos ativistas políticos sem articulá-las claramente, seja entre si ou em público.  Eu me ofereci para vir naquela primavera e começar a conceber um projeto etnográfico com Hernani que eu empreenderia ao longo dos próximos anos para ajudá-lo a expandir seu movimento (Hale 2006; Burdick 1995; Speed ​​2006).” (John Burdick, 2013)

Conversamos até tarde várias noites seguidas, lutando com questões de estratégia: onde estavam as audiências de evangélicos que poderiam simpatizar com a mensagem do movimento? Onde estavam as pessoas que poderiam ter afinidade com a noção de que o amor a Jesus e o amor à identidade negra se reforçavam mutuamente? “Precisamos de algo mais focado também, algo direcionado”, ele  me disse. Mas quem deveriam ser os alvos? (Snow e Benford 1988; Snow et  al. 1986).” (John Burdick, 2013)

Continua: Diversidade Musical e Identidade Negra

Parte do texto: A Intersecção entre Raça, Religião e Música no Movimento Negro Evangélico no Brasil na perspectiva de John Burdick 

Como fonte o livro The Color of Sound: Race, Religion, and Music in Brazil” (2013), escrito pelo antropólogo John Burdick, oferece uma análise profunda sobre as inter-relações entre raça, religião e música no Brasil. A obra, com foco no Movimento Negro Evangélico (MNE).

Do Afrokut

Principais Organizações do Movimento Negro Evangélico no Brasil

O Movimento Negro Evangélico no Brasil é composto por uma rede diversificada de organizações, grupos e coletivos que atuam em diferentes regiões do país. A atuação dessas organizações pode variar em termos de foco, abrangência e estratégias. É importante ressaltar que a dinâmica do movimento é fluida, com novas organizações surgindo e outras se consolidando ao longo do tempo.

O Movimento Negro Evangélico contemporâneo começa a se formar na década de 70 e 80, onde surgem pessoas e organizações com o propósito trabalhar a questão racial negra nas igrejas evangélicas. Em 1973 é criada a Comissão Nacional de Combate ao Racismo por iniciativa de um grupo de negros e negras metodistas de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Em 1985 a Igreja Metodista oficializa a Comissão Nacional de Combate ao Racismo e cria a Pastoral de Combate ao Racismo. Em seguida é criada a Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao RacismoCENACORA, com varias igrejas históricas. Neste mesmo ano, o pastor Rubens dos Santos, cria a Comunidade Martin Luther King, em 1986 o pastor Rubens implanta a Igreja de Deus em Cristo no Brasil, a maior igreja pentecostal negra norte-americana. Nessa década surgem várias outras organizações: a Associação Evangélica Palmares (1987), o GEVANABGrupo Evangélico Afro Brasileiro (1988), o Coral de Resistência de Negros Evangélicos (1988), a Sociedade Cultural Missões Quilombo (1988), Capoeiristas de Cristo, Negros Evangélicos de Londrina, entre outros.

A partir dos anos 2000, o movimento começa a criar forma através do surgimento de organizações em diversos estados brasileiros, voltadas para a temática de combate às discriminações raciais dentro das igrejas evangélicas, tais como:

Grupo de Reflexão Teológica, Teólogos Negros, AGAR (Sociedade Teológica de Mulheres Negras),  Ministério de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, o Grupo de Combate ao Racismo da Igreja Batista (Centenário, Duque de Caxias, Rio de Janeiro). Fórum das Mulheres Cristãs Negras de São Paulo, Projeto Palmares da Igreja Batista – SP, Negros Evangélicos do Rio de Janeiro, Ministério Azusa, ANNEB – Alianças de Negros e Negras Evangélicos do Brasil, Fórum de Lideranças Negras Evangélicas,  Fórum Afrodescendentes Evangélicos, Pastorais de Negritudes, entre outras.

Algumas dessas organizações se destacaram por sua atuação histórica e pela influência em suas comunidades, muitas delas hoje extintas.

Atualmente, o MNE está presente em 10 estados brasileiros, engajando as comunidades evangélicas em uma reflexão crítica sobre inclusão e justiça. Embora não exista uma organização jurídica centralizadora do MNE, o Movimento Negro Evangélico tem uma  Coordenação Nacional: o MNE Brasil.

Algumas das principais organizações do Movimento Negro Evangélico:

  • Rede Mulheres Negras Evangélicas: O MNE conta com a participação de mulheres negras evangélicas, a rede foi criada no 1º Encontro de Mulheres Negras Cristãs (EMNC) realizado em Agosto de 2018 pelo Movimento Negro Evangélico em Recife protagonizado pelo Comitê de Gênero e Direitos Humanos do MNE.
  • Cuxi Coletivo Negro Evangélico: a Cuxi é um movimento que luta por justiça e igualdade racial, unindo fé e igualdade. O coletivo promove diálogo e transformação, e tem como ações sociais: Leitura bíblica afrocentrada, Estética negra, Juventude negra, Educação laica.
  • Aliança de Negras e Negros Evangélicos do Brasil: a ANNEB é uma organização dedicada a promover o fortalecimento do movimento negro evangélico para comungar experiências, reflexões e propostas concretas visando à mobilização da igreja na contribuição de uma sociedade mais justa e igualitária.
  • Fórum de Negritude da Aliança de Batistas do Brasil: é um movimento atuante sobre questões relacionadas à negritude. A Aliança de Batistas do Brasil se compromete com a construção de uma sociedade justa, plural e democrática.
  • Coletivos e grupos de estudo: Existem diversos coletivos e grupos de estudo espalhados pelo país, que se reúnem para discutir temas relacionados à teologia negra, à identidade negra e à luta por justiça racial. São elas: Coletivo Reverendo Martin Luther King Jr.Coletivo Independente de Pessoas Negras da Igreja MetodistaColetivo NúbiasGrupo de Estudos Antirracista África BíblicaGT “Teologia e Negritude” da FTLPastoral de Negritude Igreja Batista do PinheiroPastoral da Negritude Rosa Parks, entre outros.
  • Afrokut: Uma das plataformas online mais conhecidas sobre o tema, o Afrokut oferece informações, artigos e debates sobre o Movimento Negro Evangélico, além de promover eventos e ações de conscientização.

Características comuns dessas organizações:

  • Foco na teologia negra: A maioria dessas organizações se baseia nos princípios da teologia negra, buscando uma interpretação da Bíblia a partir da experiência da pessoa negra.
  • Luta contra o racismo: A luta contra o racismo institucional e cultural é uma das principais bandeiras dessas organizações.
  • Promoção da identidade negra: Essas organizações trabalham para promover a valorização da identidade negra e da cultura afro-brasileira.
  • Articulação com outros movimentos sociais: O Movimento Negro Evangélico mantém estreitas relações com outros movimentos sociais, como o Movimento Negro e o Movimento Feminista.

Desafios e perspectivas:

  • Visibilidade: Apesar de sua importância, o Movimento Negro Evangélico ainda enfrenta desafios para conquistar maior visibilidade na sociedade brasileira.
  • Diversidade interna: O movimento é composto por pessoas com diferentes visões teológicas e políticas, o que pode gerar debates internos e divergências.
  • Articulação com as igrejas: Uma das grandes desafios é promover um diálogo mais profundo com as igrejas evangélicas, buscando transformar as práticas e as teologias predominantes.

As organizações do Movimento Negro Evangélico desempenham um papel fundamental na luta por justiça racial no Brasil. Ao unir fé e ativismo, elas contribuem para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Do Afrokut

 

A teologia negra: um marco fundamental para o Movimento Negro Evangélico no Brasil

A Influência da Teologia Negra no Brasil

A teologia negra desempenhou um papel fundamental na formação e no desenvolvimento do Movimento Negro Evangélico no Brasil. Originária dos Estados Unidos, essa corrente teológica, que busca interpretar a Bíblia a partir da experiência da pessoa negra, encontrou um terreno fértil em nosso país, onde as questões raciais sempre foram cruciais.

Como a teologia negra influenciou o Brasil:

  • Conscientização e Empoderamento: A teologia negra proporcionou ferramentas teóricas e espirituais para que os negros brasileiros se conscientizassem da dimensão racial de suas opressões e se empoderassem para a luta por justiça social. Ela ofereceu uma nova leitura das Escrituras, destacando os aspectos que falam de libertação e de luta contra a opressão.
  • Críticas ao Racismo Institucional: A teologia negra contribuiu para uma crítica contundente ao racismo institucionalizado na sociedade brasileira, incluindo as igrejas. Ela denunciou as formas sutis e explícitas de discriminação racial, incentivando os evangélicos negros a se posicionarem contra essas práticas.
  • Valorização da Cultura Negra: Ao valorizar a experiência negra e sua cultura, a teologia negra contribuiu para o resgate da autoestima e da identidade dos negros brasileiros. Ela incentivou a valorização das tradições afro-brasileiras e a busca por uma expressão religiosa mais autêntica e contextualizada.
  • Articulação com a Luta Social: A teologia negra impulsionou a articulação do Movimento Negro Evangélico com outros movimentos sociais, como o Movimento Negro e o movimento estudantil. Ela fortaleceu a luta por direitos civis e justiça social, inspirando muitos ativistas a se engajarem nessa causa.
  • Formação de Lideranças: A teologia negra contribuiu para a formação de lideranças negras dentro das igrejas e nos movimentos sociais. Esses líderes, inspirados pelos princípios da teologia negra, passaram a ocupar espaços de decisão e a influenciar as políticas das igrejas e da sociedade em geral.

Exemplos de aplicação da teologia negra no Brasil:

  • Criação de grupos de estudo: Muitos grupos de estudo foram criados para aprofundar o estudo da teologia negra e discutir suas implicações para a realidade brasileira.
  • Desenvolvimento de projetos sociais: Diversos projetos sociais foram desenvolvidos por negras e negros evangélicos, visando promover a inclusão social e o desenvolvimento de comunidades empobrecidas.
  • Produção de materiais didáticos: Livros, artigos e outros materiais didáticos foram produzidos para difundir os princípios da teologia negra e facilitar o acesso a essa corrente teológica.
  • Organização de eventos: Conferências, seminários e encontros foram organizados para debater as questões raciais e a teologia negra, reunindo teólogos, pastores, ativistas e outros interessados no tema.

Em suma, a teologia negra foi um marco fundamental para o Movimento Negro Evangélico no Brasil, fornecendo um arcabouço teórico e espiritual para a luta contra o racismo e a promoção da justiça social. Ao valorizar a experiência negra e a cultura afro-brasileira, a teologia negra contribuiu para o empoderamento dos negros brasileiros e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Do Afrokut

O Movimento Negro Evangélico: Uma Força pela Justiça Racial

O Movimento Negro Evangélico é uma importante expressão da luta antirracista no Brasil, que busca conciliar a fé cristã com a identidade negra. Esse movimento, que se desenvolve desde os anos 1970, reúne pessoas negras que se identificam com o protestantismo evangélico e que atuam para combater o racismo dentro e fora das igrejas.

Principais Objetivos:

  • Combater o racismo institucional e cultural: O movimento busca denunciar e combater as diversas formas de discriminação racial presentes na sociedade, inclusive dentro das próprias igrejas.
  • Promover a igualdade racial: Defende políticas públicas e ações afirmativas que garantam a igualdade de oportunidades para pessoas negras.
  • Valorizar a cultura negra: Promove a valorização da cultura negra dentro das igrejas e na sociedade em geral, buscando resgatar a história e as tradições afro-brasileiras.
  • Conscientizar sobre a teologia negra: Difunde a teologia negra, que busca interpretar a Bíblia a partir da experiência da pessoa negra, enfatizando a libertação e a justiça social.

Influências e Desafios:

  • Teologia Negra: um marco fundamental para o Movimento Negro Evangélico no Brasil. A teologia negra, desenvolvida por teólogos negros nos Estados Unidos, exerceu grande influência sobre o movimento no Brasil, inspirando a luta pela libertação e a justiça social.
  • Luta pelos direitos civis: A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, liderada por Martin Luther King Jr., também foi uma importante referência para o movimento negro evangélico brasileiro.
  • Desafios internos: O movimento enfrenta desafios internos, como o conservadorismo de algumas igrejas e a resistência à discussão sobre raça e racismo.
  • Desafios externos: O movimento também enfrenta desafios externos, como o racismo estrutural e a desvalorização da cultura negra.

Importância:

O Movimento Negro Evangélico é fundamental para a luta antirracista no Brasil, pois contribui para:

  • Diversificar o movimento negro: Amplia a luta antirracista, incluindo um público que antes era pouco representado.
  • Democratizar as igrejas: Promove a discussão sobre raça e racismo dentro das igrejas, contribuindo para a democratização desses espaços.
  • Fortalecer a luta por justiça social: Articula a fé com a luta por justiça social, inspirando outras pessoas a se engajarem nessa causa.

Portanto, o Movimento Negro Evangélico é uma força importante na luta por um Brasil mais justo e igualitário. Ao unir fé e ativismo, esse movimento contribui para a construção de uma sociedade livre de racismo e discriminação.

Do Afrokut

A gêneses do movimento negro evangélico no Brasil

Reconstruir a história do Movimento Negro Evangélico Brasileiro (MNE) é uma tarefa complexa, sobretudo porque esse é um processo ainda em andamento, com suas fronteiras borradas. Essa dificuldade parece ser maximizada na medida em que olhamos com maior vagar para o interior do próprio campo religioso cristão não católico, nomeado genericamente neste texto como “evangélicos”.2 Entretanto, é possível observar uma espécie de fio de Ariadne3 que conduz seus agentes no desenvolvimento de suas ações.

Pode-se falar em Movimento Negro Evangélico (MNE), por um lado, na medida em que se tem como referencial um conjunto de ações produzidas por grupos consolidados ou em construção, cujos agentes são pessoas que se autoclassificam como “evangélicas” e negras (pretas ou pardas, de acordo com a nomenclatura adotada pelo IBGE). Por outro, deve-se considerar que, em geral, os destinatários dessas atividades são também pessoas negras que participam de alguma igreja classificada como “evangélica”.

O combate ao racismo no interior das igrejas, em particular, e na sociedade, em geral, pode ser tomado como o elemento central a partir do qual se organizam as diversas iniciativas com temática racial empreendidas por esses grupos. Tais iniciativas têm em comum o fato de serem organizadas com base em certa orientação teológica-pastoral de inspiração protestante. Isso significa que, mais do que tratar de um grupo específico, para compreender o MNE, é preciso, antes de tudo, mapear as diversas atividades presentes nas várias igrejas para, em seguida, proceder a análise de suas estruturas.

Neste texto será apresentado de maneira panorâmica uma historiografia do MNE, a partir da atuação de alguns de seus agentes paradigmáticos. Discute-se também o modo como os símbolos da herança africana no Brasil são acionados nas ações desses grupos. Os dados que seguem foram recolhidos durante a pesquisa de campo,4 que privilegiou a produção escrita dos agentes evangélicos, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut, que reúne exclusivamente negras e negros evangélicos) além de conversas informais.

É importante ressaltar que, embora a participação das mulheres seja fundamental para a consecução do MNE, pastores e lideranças masculinas ganham proeminência na narrativa pública sobre a gênese do movimento. Em parte, esse fenômeno é justificado por alguns interlocutores5 pelo fato de que o sacerdócio no âmbito das igrejas cristãs (católicas e aquelas originárias da Reforma) é exercido quase que exclusivamente por homens, posição controversa entre os agentes. Atém mesmo entre as lideranças, o lugar que o sujeito ocupa na hierarquia religiosa impacta na atuação, como se verá mais adiante.

Partindo do princípio de que os discursos não constituem um campo separado das práticas sociais que produzem as identidades com base em sinais diacríticos da identificação étnica-racial seletivamente construídos, os grupos étnicos são “vistos como formas de organização de novas e adaptadas identidades ao “aqui e agora’” (Cunha 2009a:226). Entende-se que o campo religioso brasileiro, nas últimas décadas, tem sido um poderoso “aqui e agora” a impelir as religiões a também se posicionarem frente à diversidade étnico-cultural de seus fiéis.

Ao descrever os processos discursivos (Asad 2003) que orientam as práticas desses sujeitos, pretende-se verificar como são produzidos os conceitos em disputa (“identidade negra”, “cultura negra”, “negritude”, “herança africana”, “pan-africanismo”, “afrocentrismo” etc.), os quais põem segmentos religiosos distintos em diálogo na esfera pública. Com isso, não se imputa às categorias investigadas significados a priori – pelo contrário, queremos compreender seu processo de elaboração.

O conjunto de categorias operacionalizada pelos agentes é tomada como “nativo”, cujo significado não está apartado dos contextos e dos sujeitos que o empregam. Desse modo, importa saber como os consensos são estabelecidos por meio de discursos e como práticas ganham significados na esfera pública, põe atores em relação e promovem a efetivação de direitos. O recurso das aspas nos ajudará a colocar em suspeição esses termos, tal como fez a Manuela Carneiro da Cunha (2009b:373) ao tratar da noção de cultura e “cultura”.

Ganha relevo, neste debate, os deslocamentos de sentidos que são operados pelos agentes nas categorias de classificação “etnia” e “raça”, com base em certa noção de “cultura”. Isto é, como se verá mais adiante, a noção de raça acionada por alguns agentes em certos momentos parece apontar para o sentido de grupo étnico tal como fora definido por Fredrik Barth (1969).

Entre os anos 1970 e 1980, observa-se a gênese de duas posturas distintas frente às heranças culturais africanas no Brasil: combate e certa indiferença. Ou seja, por um lado, igrejas evangélicas neopentecostais assumem como elemento central da sua ação proselitistas a demonização das divindades, elementos e valores das religiões afro-brasileiras, inclusive daqueles presentes nos ícones da “identidade nacional”, como a capoeira, o carnaval, o samba etc. (Mariano 1999Silva 2007). Por outro lado, no âmbito das igrejas protestantes históricas emergem alguns coletivos de evangélicos negros que assumem um discurso de salvação que leva em consideração o pertencimento étnico-racial de seus fiéis sem, no entanto, ressaltar o que fora tradicionalmente evidenciado como “símbolos da cultura negra” (Burdick 2004).

Esse quadro desenhado no campo “evangélico” opõe-se ao contexto católico, pois, desde os anos de 1970, lideranças (formadas por leigas e leigos, padres e bispos) empreendem uma série de ações pastorais dentro e fora da igreja, em prol da população negra assumindo e ressignificando elementos culturais de origem africana. Tais atividades voltam-se para dentro da igreja, como a proposição de “liturgias inculturadas” (Oliveira 2016), e para fora, associando-se a outros coletivos do movimento negro (Oliveira 2017).

Neste texto, parte-se do pressuposto de que, atualmente, há um descentramento da identidade, isto é, o indivíduo não pode mais ser identificado com base em dados apriorísticos ou essencializantes. É por força da globalização que as identidades centradas e “fechadas” são deslocadas e pluralizadas. Dessa forma, a construção da identidade via interação com o grupo de origem não resulta em apenas uma definição, mas “produz uma variedade de possibilidades e novas posições de identidades… [tornando] as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixa, unificadas ou trans-históricas” (Hall 2003:87).

Nesse contexto, considerando que no jogo das identidades os sujeitos estão “constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes” (Hall 2009:328), a constituição do Movimento Negro Evangélico participa dessa disputa pela autoridade em legitimar a “identidade negra” com base em seus pressupostos doutrinários. Dessa forma, os agentes religiosos buscam autoridade para enunciar um discurso tanto na esfera pública, acerca das políticas étnico-raciais, quanto no exercício do proselitismo, uma vez que seriam as religiões também articuladoras na construção da “negritude”.

O método de coleta de dados adotado abrangeu três níveis complementares: documental, observação participante (em campo) e entrevista e/ou coleta de depoimentos dos agentes observados. A pesquisa de campo privilegiou a produção escrita de lideranças religiosas, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut, que reúne exclusivamente negras e negros evangélicos) e o acesso aos registros (entrevistas, reportagens etc.) das atividades feitas pelos próprios religiosos e divulgadas na mídia.

Este texto está dividido em duas partes: na primeira, apresenta-se o processo de configuração do MNE e, na segunda, discute-se como os símbolos da “herança africana no Brasil” são acionados por esses agentes, na conformação de suas ações pastorais.

Por Rosenilton Silva de Oliveira – Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil.
Coordenador do Fateliku – grupo de pesquisa sobre educação, relações étnico-raciais, gênero e religião. Doutor em Antropologia.


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“Hoje eu orei, Ele é negro”: a gêneses do movimento negro evangélico