A Bíblia e a África

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Personagens negros apresentados nas Escrituras oferecem lições inspiradoras à Igreja

Por Marcelo Santos

Palavra inspirada e útil para o ensino, como escreveu o apóstolo Paulo a Timóteo (2 Tm 3.16), o Livro Sagrado descreve eventos, diálogos e lições que se desenrolam em um contexto afro-asiático, em que a diversidade étnica e cultural é evidente. Moisés, que passou parte da infância no Egito, e a rainha de Sabá [cujo reino ficava na região hoje ocupada pelo Iêmen], conhecida pela sabedoria e riqueza, são referências de figuras africanas que desempenharam papéis cruciais na história do povo de Deus. A monarca, por exemplo, é descrita como uma governante poderosa que viajou longas distâncias para encontrar o rei Salomão, desafiando estereótipos e destacando a importância de outras culturas na formação da fé israelita.

O Pr. Marco Davi de Oliveira expõe que teologias pautadas na supremacia branca, que não são recentes, “incluem conceitos que contribuíram para solidificar o racismo e os estereótipos racistas, até mesmo dentro da população negra” Foto: Arquivo pessoal

No entendimento do Pr. Marco Davi de Oliveira, da Nossa Igreja Brasileira, no Centro do Rio de Janeiro (RJ), a interpretação do Texto Santo tem sido dominada por uma perspectiva eurocêntrica, ocultando, muitas vezes, a contribuição e a presença de povos africanos nas Sagradas Escrituras. Escritor, autor da obra A religião mais negra do Brasil, e doutorando em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra (Portugal), uma das mais prestigiadas e antigas do mundo, Oliveira ressalta que as teologias pautadas na supremacia branca solidificaram o racismo, tanto na mente dos brancos quanto na dos negros. “De fato, as histórias bíblicas e suas interpretações têm a liberdade de leitura e iluminação. O problema está na interpretação considerada livre”, avalia ele. “Essas teologias, que não são recentes, incluem conceitos que contribuíram para solidificar o racismo e os estereótipos racistas, até mesmo dentro da população negra”, expõe Oliveira.

O estudioso cita como exemplo a chamada maldição de Cam (um dos filhos de Noé) associada à escravidão e à inferioridade racial dos africanos. Segundo essa teoria, Cam, ao ver a nudez do pai, foi amaldiçoado a viver como escravo, e seus descendentes, identificados como africanos, teriam herdado essa maldição. Esse mito racista deturpou textos bíblicos, perpetuando a ideia de que a subjugação dos africanos era uma condição divina e inevitável, cristalizando o racismo e a discriminação.

Por muito tempo, acentua o pregador, essas interpretações foram aceitas como verdades absolutas, firmadas na supremacia branca, a qual determinava a inferioridade dos negros. Além disso, ele acredita que essas perspectivas erradas serviram para justificar a escravidão, sob a ótica de que os negros precisavam ser colonizados e escravizados para se tornarem pessoas melhores. Tal visão, assegura o pastor, foi reforçada por filósofos, como os alemães Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que descreveram os africanos como inferiores e selvagens. “A Bíblia é um livro que escreve a partir dos oprimidos. Nela, encontramos Moisés, filho de Joquebede, que era africana. Moisés não nasceu no lugar que hoje é chamado de Israel, mas na África, não é verdade? Em 400 anos de escravização, muitos libertadores nasceram nesse continente.” [Do editor: Moisés nasceu na Terra de Gósen, território mencionado na Bíblia situado no Delta oriental do Egito]

O empreendedor social Hernani Francisco da Silva destaca a importância dos personagens negros nas histórias bíblicas  – Foto: Arquivo pessoal

Personagens negros – Assim, desde os primórdios, a África está presente nas narrativas bíblicas. O empreendedor social Hernani Francisco da Silva, fundador da Missão Quilombo e da rede social Afrokut, destaca a importância dos personagens negros nas histórias bíblicas e revela alguns que foram protagonistas. “Sofonias, o profeta negro; Simão Cireneu, um homem de origem africana que vivia em Cirene (uma cidade situada no Norte da África), que foi forçado a carregar a cruz de Jesus, mas acabou se tornando um seguidor de Cristo, conforme o texto de Marcos 15.21 registra.”

Hernani ainda aponta Simeão, o Níger [o termo niger significa ‘negro’ em latim], um líder da Igreja primitiva em Jerusalém que impôs as mãos sobre Paulo para enviá-lo ao campo missionário; a africana Zípora, esposa de Moisés e filha de Jetro (Êx 2.21); a rainha Candace, cujo nome aparece quando o evangelista Filipe encontra um chefe dos tesouros da Etiópia (At 8.27). O fundador da Missão Quilombo também faz questão de citar a rainha de Sabá. “Sua fama era tal que, mil anos depois, Jesus Cristo mencionou os feitos dela. Ele disse que ela viera dos confins da Terra para ouvir a sabedoria de Salomão”, afirma, referindo-se à passagem de Mateus 12.42. Por fim, Hernani lembra que termos como etíopes e egípcios aparecem frequentemente na Palavra de Deus, evidenciando a presença africana. “Ler a Bíblia na perspectiva de um contexto afro-asiático contribuiria imensamente para a diversidade racial”, argumenta.

Vanessa Maria Barboza, coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (RMNE), afirma que é importante reconhecer e resgatar a diversidade étnica e racial do Livro Sagrado – Foto: Arquivo pessoal

Diversidade racial – Para Vanessa Maria Barboza, coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (RMNE), é importante reconhecer e resgatar a diversidade étnica e racial do Livro Sagrado. “Quando falamos sobre representação e diversidade nas Escrituras, reivindicamos a pluralidade étnica, cultural e fenotípica dos grupos retratados na Bíblia”, explica. Ela observa que, muitas vezes, as interpretações bíblicas feitas por lideranças religiosas não consideram as características físicas e culturais dos povos reportados, deixando de lado a fidelidade histórica.

Para Vanessa, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos, existe uma multiplicidade de representantes do Oriente Médio, da África e até mesmo do Mediterrâneo e do Extremo Oriente [região que abrange o Extremo Oriente Russo, a China, a Coreia do Norte, a Coreia do Sul, o Japão e Taiwan]. A pesquisadora pontua que essa ausência de reconhecimento das características dos povos bíblicos “é uma falta de respeito à história e à vivência desses grupos étnicos”. Em sua opinião, essa omissão distorce a realidade bíblica.

A coordenadora da RNME critica a forma como grupos missionários, desde o período colonial, impuseram as próprias imagens como representações das Escrituras, criando uma “falsidade” e uma “apropriação” das narrativas sagradas. Vanessa, que é doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), pensa que essa estratégia pedagógica foi usada para subordinar povos africanos escravizados e culturas indígenas, consolidando um imaginário segundo o qual o “povo escolhido de Deus” é predominantemente branco. A estudiosa lembra que a mensagem central da Bíblia é de “um Deus que acolhe e reconhece a diversidade dos povos, sem distinções”.

O Pr. Vanderlei Duarte Júnior ressalta que as comunidades de fé precisam ser espaços de acolhimento: “As igrejas têm o dever de acolher, e não de afastar, especialmente aqueles que foram historicamente marginalizados” – Foto: Arquivo pessoal

Inclusão – O Pr. Vanderlei Duarte Júnior, líder estadual da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em Sergipe, concorda com Vanessa Maria Barboza e ressalta que as comunidades de fé precisam ser espaços de acolhimento. “As igrejas têm o dever de acolher, e não de afastar, especialmente aqueles que foram historicamente marginalizados”, assevera o ministro, enfatizando o papel das congregações na promoção da inclusão racial. Vanderlei, aliás, cita a sua experiência positiva na Igreja da Graça. “Nunca me senti excluído. Pelo contrário, sempre fui bem acolhido pelos meus pastores e líderes, assim como pelo Missionário R. R. Soares. Ele confiou a mim a liderança de um estado quando eu ainda era bastante jovem, com apenas 23 anos.”

Dados do Atlas da Violência 2024, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostram que, no Brasil, o racismo e a exclusão racial continuam sendo problemas graves. Essa edição do Atlas, que compila dados reunidos em 2022, revela que, naquele ano, foram registrados mais de 63 mil casos de violência racial referentes a agressões e discriminações motivadas pela cor da pele e etnia. No estudo, o IPEA demonstrou que a população negra representava 76,5% das vítimas de homicídios.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os evangélicos representam hoje 31% da população do país, e a maioria dos crentes brasileiros (56%) se identifica como pretos ou pardos. Se, por um lado, as congregações evangélicas ainda precisam vencer alguns desafios para alcançar a equidade racial; por outro, na opinião de Vanderlei Duarte, tem havido avanços na inclusão de líderes negros. Mas ele faz um alerta: existe o risco de ocorrerem divisões dentro das igrejas se não houver atenção a esses grupos étnicos.

Entretanto, o líder observa que a exclusão racial não é apenas um problema das igrejas, mas também da sociedade em geral. “Esse estereótipo reflete a imagem projetada pela colonização e pela escravização”, defende Duarte. Ele ressalta que, se alguma igreja exclui pessoas devido à cor da pele, isso ocorre por falta de conhecimento – tal como ensina o texto de Oséias 4.6. “Se um pastor, líder de uma igreja, possui algum tipo de preconceito racial, ele não é dirigido por Deus, e sim por um espírito maligno”, atesta Vanderlei, salientando que as congregações devem se concentrar em cumprir a ordem de Jesus. “Todos, na igreja, devem estar unidos em torno do nosso maior propósito: salvar pessoas”, conclui.

Marcelo Santos é biógrafo, escritor, jornalista Freelancer e Repórter na empresa SESC SP – Revista Problemas Brasileiros.

Fonte:  Revista Show da Fé

Negros evangélicos em movimento

Reconstruir a história do Movimento Evangélico Brasileiro é uma tarefa complexa, sobretudo porque este é um processo ainda em andamento, com suas fronteiras borradas. Essa dificuldade parece ser maximizada na medida em que olhamos com maior vagar para o interior do próprio campo religioso cristão não católico, nomeado genericamente de “evangélico”. Entretanto, assim como os católicos que, apesar das divergências e das múltiplas facetas da sua militância negra, é possível observar uma espécie de fio de Ariadne que conduziu seus agentes, no campo evangélico há também uma diversidade de concepções sobre os direcionamentos das políticas voltadas para a população negra. No contexto evangélico, portanto, o combate ao racismo no interior das igrejas, em particular, e na sociedade em geral, pode ser tomado como o ponto de convergência dessas inciativas.

Pode-se falar em Movimento Negro Evangélico (MNE) na medida em que se tem como referencial um conjunto de ações desenvolvidas por grupos consolidados ou em construção cujos agentes são pessoas que se autoclassificam como “evangélicas” e negras (pretas ou pardas, de acordo com a nomenclatura adotada pelo IBGE) e os destinatários são os negros, em geral, e aqueles que participam de alguma igreja. Tais ações têm em comum o fato de serem organizadas a partir de certa orientação teológica-pastoral de inspiração protestante. Isso significa que, mais do que tratar de um grupo especifico, para compreender o MNE é preciso, antes de tudo, mapear as diversas iniciativas presentes nas várias igrejas para, em seguida, proceder a análise de suas estruturas. No mais, é importante tomá-lo como um processo em construção e não como um projeto consolidado, diferente da Pastoral Afro-brasileira, no caso católico.

Nesse texto será apresentado de maneira panorâmica o estado da arte do campo afro-evangélico, ressaltando a historiografia do MNE e alguns de seus agentes paradigmáticos. Os dados que seguem foram recolhidos durante a pesquisa de campo, que privilegiou a produção escrita dos agentes evangélicos, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut que reúne exclusivamente negros e negros evangélicos) além de conversas informais.

Reconstituir a trajetória do Movimento Negro Evangélico implica, em alguma medida retraçar a trajetória de seus agentes paradigmáticos e de algumas instituições. Metaforicamente pode-se dizer que o MNE é uma rede que interconecta tais atores. Partindo aleatoriamente de um de seus elementos tentaremos evidenciar os nós de significado que a compõe.

Hernani Francisco da Silva, paraibano de família católica, converteu-se à Igreja Congregacional (portanto pentecostal) aos quinze anos de idade, dois anos mais tarde tornou-se membro da Igreja evangélica O Brasil para Cristo (também pentecostal); Segundo entrevista concedida ao programa Análise Direta da rede RIT – Rede Internacional de Televisão, no dia 09 de dezembro de 2009, sua “segunda conversão” foi “despertar sua negritude”, a qual ocorreu durante a marcha nacional em comemoração ao centenário da abolição formal da escravidão no Brasil, realizada no dia 13 de maio de 1988. Embora tenha se deparado com ela de maneira ocasional, foi a partir desse momento que se sentiu impelido a desenvolver um trabalho voltado ao combate ao racismo no interior do campo religioso evangélico. A sua experiência como fellow na Ashoka, o capacita para atuar como empreendedor social atuando, sobretudo no campo dos direitos humanos tendo como público preferencial os negros.

Em 23 de janeiro de 1991, com o auxílio de outras pessoas fundou a Sociedade Cultural Missões Quilombo, cujo objetivo principal é “modificar a visão que as igrejas evangélicas têm da cultura negra” (SILVA, 2011, p. 45). Embora esteja localizada no âmbito de uma igreja pentecostal (O Brasil para Cristo) possui integrantes de outras denominações e tem desenvolvido ações que extrapolam por vezes o campo evangélico. Em parceria com o antropólogo norte-americano John Burdick, Hernani tem realizado um mapeamento das iniciativas desenvolvidas por evangélicos no combate ao racismo e discriminação.

De fato, a militância desenvolvida por Hernani Silva revela uma tentativa de regaste da presença negra nas raízes do cristianismo, ao mesmo tempo, em que
denuncia o que considera uma “teologia evangélica racista”, nesse sentido, várias são as ações que remetem à história do negro no Brasil de maneira geral, e especificamente, no protestantismo, tendo destaque a criação da rede de relacionamentos virtual Afrokut e a publicação do livro O movimento Negro Evangélico – um mover do Espírito Santo (pela Selo da Negritude Cristão em 2011).

Conforme fora dita acima, a pluralidade do campo protestante impede o estabelecimento de organismos que concentrem todas as ações e agentes do Movimento Negro Evangélico, diferentemente do catolicismo que, embora conte com três grandes grupos (Pastoral Afro-Brasileira, Instituto Mariama – que reúne diáconos, padres e bispos negros – e o GRENI – Grupo de Religiosos e Religiosas Negros e Indígenas) possui políticas coordenadas, já que parte significativa dos seus integrantes circulam nos três grupos, desenvolvem ações em conjunto e, sobretudo, pertencem à mesma instituição religiosa. No caso evangélico, há várias iniciativas para reunir os militantes negros, uma das primeiras delas foi o Fórum de Afrodescendentes Evangélicos criada no MSN (em 2002), dada as limitações desse serviço de mensagens e com a popularização da rede social Orkut no Brasil

muitas comunidades surgiram nesta rede social de relacionamento, as que mais se destacaram foram Negros Cristãos, com mais de cinco mil membros, o Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos – CNNC, Negros Evangélicos, Negros sim!! Somos cristãos, Movimento Negro Evangélico, Teologia Negra, entre muitas outras (SILVA, 2011, p. 15).  

Têm em comum essas “comunidades virtuais” o fato de reunirem evangélicos de várias denominações, na tentativa de estabelecer um canal de comunicação entre os vários agentes, a troca de informações e, em alguma medida, possibilitar a realização de atividades em conjunto, justamente porque a marca principal do Movimento Negro Evangélico é a descentralização de suas ações. Descentramento este fruto menos do desejo dos atores envolvidos e mais da própria configuração do campo protestantes, que se apresenta de maneira fragmentária e plural.

Com a decadência do Orkut, muitos grupos migraram para outras plataformas virtuais como o Facebook, Youtube, Twitter, Wiki etc. E no bojo desse movimento de apropriação das redes sociais, Hernani Silva cria o Afrokut em 2008.

O Afrokut reúne não apenas evangélicos negros e instituições. Como uma rede de relacionamento possibilita o intercâmbio entre seus membros, a criação de subcomunidades de acordo com interesses convergentes (inclusive a plataforma permite criar fóruns de discussões, blogs e lojas virtuais), além de possibilitar a realização de cursos, palestras e reuniões on line. Conta hoje com mais de três mil membros cadastrados, segundo o seu fundador.

Foi justamente por sua atuação à frente da Sociedade Cultural Missões Quilombos e do Afrokut, que Hernani Silva foi agraciado com o prêmio Direitos Humanos, outorgado pelo Governo Federal brasileiro (em 2000), além de outras honrarias. Entretanto, o reconhecimento de seu trabalho na articulação dos evangélicos negros nem sempre encontra respaldo na hierarquia eclesiástica, haja vista que não é sacerdote, portanto, as alianças estabelecidas com pastores e bispos, intelectuais e agentes de outras denominações são fundamentais para um maior desenvolvimento de suas ações no interior das igrejas. Tendo-se em conta que sua origem religiosa é pentecostal e a maior parte dos atores do MNE pertencem às igrejas protestantes históricas, há sempre por parte de Hernani a tentativa de dar sempre um caráter ecumênico às suas ações.

Esse esforço de congregar as várias iniciativas do MNE impulsionou Hernani Silva a publicar o livro O movimento negro evangélico, em 2011. Nessa obra, o autor procura retraçar a história do movimento. Esse exercício não é inédito no processo de resgate identitários, sobretudo, porque se cristalizou a ideia de que a “história oficial” invisibilizou esses agentes.

Nesse sentido, há também uma tentativa de reescrita da presença evangélica no Brasil. Por exemplo, enquanto a história oficial considera o início do protestantismo no país, no ano de 1858, com a fundação da Igreja Fluminense pelo revendo Roberto Kalley; em O movimento negro evangélico, a gênesis está no ano de 1841, quando o pregador negro Agostinho José Pereira, funda a Igreja do Divino Mestre. Apelidado de “Lutero Negro”, o fim desse pregador e sua igreja é desconhecidos, conta–se, porém, que ele teria sido preso e deportado (SILVA, 2011, p. 9). Mas, se o recuo histórico for maior, Hernani (SILVA, 2011) aponta que a primeira Pastoral Negra Protestante no Brasil nasce das pregações de “Mãe Maria”, uma africana nagô, nascida na África por volta de 1825, e adquirida como escrava pelo pastor Voges, em 1846, fora alfabetizada e aprendeu alemão com a senhora Elisabetha, sua proprietária. Assim, no rol das lideranças negras brasileiras, figuram membros de igrejas protestantes: João Candido (Igreja Metodista de São João de Meriti, liderou a revolta da chibata, no Rio de Janeiro, em 1910); Joao Pedro Teixeira (igreja Evangélica Presbiteriana, fundou a Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba); Solano Trindade (poeta, foi diácono na Igreja Presbiteriana), o qual “decepcionado com o distanciamento do protestantismo com as questões sociais, incluindo a discriminação contra os negros, deixou a igreja, justificando sua saída com um versículo da própria Bíblia “Se não amas a teu irmão, a quem vês, como podes amar a Deus, a quem não vês’?” (SILVA, 2011, p. 12).

Na segunda parte do livro, Hernani Silva volta-se não mais para personalidades específicas, mas iniciativas coletivas. No capitulo O Movimento Negro Evangélico Contemporâneo considera os anos 1970 e 80 como paradigmáticos, pois é nesse momento vem à luz diversas iniciativas institucionais e muitos “despertam” para sua negritude. Recorde-se que o próprio autor localiza sua “reconversão” em 1988.

Assim como ocorreu com o Movimento Negro Católico, e com os religiosos afro-brasileiros, o período de dedemocratização do Brasil, impulsionou as minorias (sobretudos negros e indígenas) a se reorganizarem para desenvolverem ações de combate as injustiças sofridas. Alguns evangélicos não ficam alheios a esse contexto político-social.

Dentre as várias iniciativas podem-se destacar as ações da Igreja Metodista, que foi a primeira a oficializar, em 1985, uma Comissão Nacional de Combate ao Racismo, que havia sido criada anos antes (1973) por iniciativa de fiéis oriundos de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. (BRANCHINI, 2011, p. 20). O reconhecimento dessa comissão só ocorreu doze anos após a sua criação, pois se temia que esse tipo de discussão provocasse um cisma na Igreja (FAUTINO, 2014). Foi sob a gestão do reverendo Antonio Olímpio Sant’Ana na Secretaria de Ação Social da Igreja Metodista que houve essa oficialização, que passou a ser chamada de Pastoral Nacional de Combate ao Racismo, cujo objetivo era

identificar linguagem racista na hinologia e na própria literatura produzida pela igreja e capacitar lideranças para atuarem nas diversas regiões eclesiásticas. Nessa mesma década, foram criadas as Pastorais Regionais de Combate ao Racismo em quase todas as regiões eclesiásticas, que desenvolveram importante trabalho de conscientização no seio das igrejas locais. Também surgiram neste período o Coral Resistência de Negros Evangélicos, em São Paulo (1988), e o Centro Ecumênico de Cultura Negra, em Porto Alegre.

Metodista natural de Rio Piracicaba (MG), o revendo Sant’Ana, em entrevista concedida à Revista Raça Brasil (FAUTINO, 2014), afirma que a “A religiosidade é a maneira de se chegar e vislumbrar o Ser Supremo. Minha religião é Metodista, mas a minha espiritualidade é negra. Antes de ser metodista e cristão, sou negro.

Esse texto é parte da Tese: A cor da fé: “identidade negra” e religião para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.

Autor: Rosenilton Silva de Oliveira.

Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em convenio de dupla-titulação com a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais (Antropologia Social).

Orientador: Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva
Co-orientadora: Prof.ª Dra. Emmanuelle K. Tall  

Para ler a Tese completa baixe o arquivo em PDF:

BAIXAR A cor da fé: “identidade negra” e religião

Produção científica sobre o Movimento Negro Evangélico

O Movimento Negro Evangélico: história, desafios e perspectivas

Hernani Francisco da Silva, no livro “O Movimento Negro Evangélico: um mover do Espírito Santo” relata que o panorama histórico do Movimento Negro Evangélico surgiu no Brasil em 1841, por iniciativa do recifense Agostinho José Pereira, defensor da liberdade física e espiritual do povo negro escravizado, considerado fundador da primeira igreja negra.

Segundo o autor, a partir 1970, inspirado na Teologia Negra, o Movimento Negro Evangélico contemporâneo começa a se formar, com a finalidade de trabalhar a questão racial nas igrejas evangélicas, buscando o resgate da identidade e consciência do negro sob uma visão cristã, enquanto indivíduo, em oposição à equivocada interpretação teológica das escrituras.

Silva (2011) revela que a partir de 2000, o movimento começa a criar forma através do surgimento de novas organizações em diversos estados brasileiros, voltadas para a temática de combate às discriminações raciais dentro das igrejas evangélicas, tais como:

Cenacora (Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao
Racismo), Grupo de Reflexão Teológica, Teólogos Negros, AGAR (Sociedade Teológica de Mulheres Negras), Coral de Resistência de Negros Evangélicos, Ministério de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, o Grupo de Combate ao Racismo da Igreja Batista (Centenário, Duque de Caxias, Rio de Janeiro). Fórum das Mulheres Cristãs Negras de São Paulo, Projeto Palmares da Igreja Batista – SPE, Sociedade Cultural Missões Quilombo, Negros Evangélicos do Rio de Janeiro, Ministério Azusa, GEVANAB – Grupo Evangélico Afro Brasileiro, Negros Evangélicos de Londrina e Movimento Negro Evangélico – RS.

De acordo com o Movimento Negro Evangélico, o “racismo teológico” disseminado pelos movimentos pentecostais e neopentecostais tem como objetivo principal justificar a ideia de que o branco é superior ao negro. Esse tipo de “teologia” nasceu no sul dos Estados Unidos, em meados do século XVIII, através das pregações e práticas desenvolvidas por missionários norte-americanos. Seu ideal era justificar a escravidão e as punições aplicadas àqueles que fugissem às normas de conduta da época. As sugestões variavam de açoites para os negros que erguessem a mão contra os brancos cristãos, à proibição de alfabetização e pregação do evangelho.

No mesmo sentido, Branchini (2013) afirma que mesmo após um século de abolição no Brasil, a inserção do negro no meio evangélico tem base na desigualdade sócio cultural. O negro evangélico enfrenta preconceitos que o impedem de desfrutar da mesma igualdade e liberdade dos fiéis brancos, assimilando um preconceito disfarçado. Apesar disso, a palavra racismo ainda é tabu que provoca reações diversas dentro das igrejas.

Segundo o autor o negro evangélico silencia o racismo sofrido por vergonha ou constrangimento. A religião como aspecto histórico é uma questão contraditória na formação individual e coletiva do negro, atuando como libertadora, ou como pode ocorrer no seguimento evangélico, uma força opressora no desapego de sua identidade africana, visto que a teologia neopentecostal desqualifica o viés espiritual da cultura negra.

Para Pacheco (2010) o racismo pentecostal tem bases nas ideias fundamentalistas. Entende-se por fundamentalismo qualquer movimento de doutrina conservadora, que exija obediência rigorosa e integral a um conjunto de princípios e essa norma única a ser seguida pode tornar-se ferramenta geradora de discriminações.

Segundo a autora, o fundamentalismo neopentecostal é radical, fazendo o crente colocar-se em sacrifício da causa e adotando uma postura servil, obediente e resignada, muito parecida com o comportamento dos negros durante o período de escravidão.

Contra os fundamentos e práticas adotadas pelas igrejas neopentecostais, o Movimento Negro Evangélico interpreta de forma diversa os fundamentos referentes à Maldição Hereditária, Teoria da Prosperidade e Batalha Espiritual (exorcismo e possessões demoníacas).

Em relação à Maldição Hereditária, o MNE combate a historicidade de que a escravidão defendida pelos missionários era plenamente justificada em nome de Deus, decorrente da maldição imposta aos filhos de Cam. Pelo Gênesis 9.18-27, Cam, filho de Noé, foi amaldiçoado a ser o mais baixo dos servos. Cam, palavra de origem hebraica significa queimado, preto; daí o porquê do filho de Noé ser considerado, por desventura, o precursor da raça negra, justificando a escravidão de seus descendentes, ou seja, africanos e negros em geral.

Essa interpretação das Escrituras, tendenciosa na visão do MNE, era tida como forma de conduzir os negros à redenção, através da subserviência incondicional e, principalmente, através do total rompimento com seu passado histórico (costumes, hábitos, cultura e tradições), como forma de livrar-se da maldição hereditária. No mesmo sentido, Oliveira (2004) relata que vários teólogos
pentecostais defendem o pensamento que estigma Caim após matar Abel, era a maldição caracterizada pela cor negra.

De acordo com Silva (2011) as igrejas neopentecostais estão alicerçadas numa teologia fortemente racista, citando como exemplo a Teologia da Prosperidade, na qual a ideia de que crentes abençoados são ricos e os crentes pobres são amaldiçoados. Através da Teoria da Prosperidade, abençoado é aquele que acumula e ostenta bens materiais aqui na Terra. Em opinião divergente, o MNE cita que em decorrência da escravidão e proibição de acesso à educação, os negros viram-se excluídos das possibilidades de ascensão social, em razão da desigualdade e preconceito racial, difundido e assimilado no senso comum da sociedade.

Para o Movimento Negro Evangélico, o maior perigo de perseguição ao negro está centrado na Batalha Espiritual preconizada pelos movimentos neopentecostais, na medida em que a cor preta é tida como negativa e os enviados de Deus, retratados por anjos brancos que devem combater o mal representado pelos anjos decaídos, negros, conforme citado em “Este Mundo Tenebroso”, de Frank E. Peretti.

Hernani Silva (2011) acrescenta que o Movimento Negro Evangélico tem empreendido esforços na construção de uma agenda comum de estratégias para os diversos grupos espalhados pelo país, mas encontra obstáculos entre seus militantes devido aos diferentes fundamentos das denominações que integram. O autor cita como exemplo o 1º Encontro Nacional de Negras e Negros Cristãos, realizado em 2007. Nesse evento ocorreu uma divisão entre seus participantes porque um grupo defendia o pan-africanismo e o afrocentrismo, outro defendia a negritude cristã e a brasilidade.

O autor destaca que o MNE mostra-se extremamente preocupado com as perseguições sofridas por práticas racistas e intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana, inclusive com agressões físicas, depredação de imagens do panteão africano e locais de culto.

Para dar corpo à prática da Batalha Espiritual, segundo denúncias do Movimento Negro Evangélico, a Igreja Universal do Reino de Deus criou o grupo de Gladiadores do Altar, formado por jovens preparados ao sistema militar, inclusive marcham, batem continência e gritam que estão “prontos para a batalha”, durante um culto realizado em Fortaleza, no início de 2015. Em sua defesa, a Igreja Universal do Reino de Deus afirma que esses grupos, vinculados à Força Jovem Universal, têm como objetivo a formação de novos pastores para a pregação da palavra de Deus e do Evangelho a toda criatura, conforme matéria publicada na revista eletrônica Carta Capital, em 6/4/2015, sob o título “Exército” da Universal preocupa religiões afro-brasileiras.

O Movimento Negro Evangélico, ao contrário da Igreja Universal do Reino de Deus, vê nesses grupos, verdadeiras milícias em defesa de um fundamentalismo religioso que ameaça não só as liberdades individuais, como também opção sexual e manifestações religiosas de matriz africana.

Uma das vitórias obtidas pelo Movimento Negro, de acordo com Silva (2011) está no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado dia 21 de janeiro, instituído em 2007 pela Lei Federal 11.635, em homenagem a Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, de Salvador. A religiosa do Candomblé enfartou após ver seu rosto estampado na primeira página da Folha Universal, jornal evangélico, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Humberto Ribeiro DuarteOs negros do “Saravá, meu Pai” para o “Amém, Jesus”: abordagem sobre questões de fé e identidade.

Artigo extraído da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Sociologia.

Os vestígios Históricos do Lutero Negro e a Gênesis do Protestantismo Brasileiro

A chegada da corte portuguesa, os processos de independências do Brasil e as primeiras leis abolicionistas marcaram significativamente a primeira metade do século XIX e deram o tom para as transformações políticas, econômicas, sociais e religiosas em solo brasileiro. E é sobre esse contexto que surge, em 1841 na cidade de Recife, Agostinho Jose Pereira pregador negro e precursor do protestantismo no Brasil, fundador da Igreja do Divino Mestre, que segundo Hernani Francisco da Silva foi a primeira igreja protestante no país.

Os vestígios históricos sobre Agostinho ainda são poucos, mas o que se pode afirmar, diante das fontes jornalísticas é que, ele sabia ler e escrever e fez de seu ministério uma possibilidade para falar sobre liberdade e o fim da escravidão e por isso ensinava os seus adeptos a ler e escrever. Ainda segundo Hernani Francisco da Silva, “As ideias de Agostinho eram avançadas e perigosas para a época onde a igreja católica era a religião oficial do Estado.” Entretanto, não foram as ideias e convicções religiosas do Pastor Negro que despertaram o descontentamento das autoridades do poder espiritual (Igreja) e as autoridades do poder temporal (Estado), mas sim suas ideias abolicionistas e seus inúmeros discursos que apontavam o Haiti como um exemplo de luta contra as formas de escravização do corpo negro.

Não podemos nos esquecer que a Revolução Haitiana, também conhecida por Revolta de São Domingos, que levou à eliminação da escravidão e à independência do Haiti, foi um dos maiores marcos históricos para a população afro-diaspórica no continente americano. As repercussões da Revolução geraram um medo eminente de revolta dos “escravizados” contra os seus “senhores”. Em sua tese de doutoramento, em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Rosenilton Silva de Oliveira aponta Agostinho como um ícone para o Movimento Negro Evangélico (MNE), pois enquanto a história oficial considera o início do protestantismo no país, no ano de 1858, com a fundação da Igreja Fluminense pelo reverendo Roberto Kalley; o MNE em uma tentativa de reescrever a presença evangélica no Brasil contextualiza o ano de 1841, quando Agostinho José Pereira funda a Igreja Divino Mestre, como a gênesis está do protestantismo brasileiro.

Segundo os vestígios históricos, apontados por Silva, “o que sabemos é que ele era um negro letrado, e que fundou a primeira igreja protestante brasileira, essa igreja era negra. Sabemos também que na sua trajetória política conheceu Sabino o líder da revolta baiana conhecida como a sabinada, também participou da confederação do Equador“. Perseguido e preso, por conta de suas ideias em prol das liberdades, sua trajetória foi se esvaindo no tempo e solapada pela história oficial. Por isso, ao pontuar Agostinho Jose Pereira na História, como líder, pregador abolicionista, não corremos o risco de uma história única que tente a invisibilizar a participação de homens e mulheres negros e negras nas narrativas oficiais.

Autor:

Babalawo Ivanir Dos Santos

O Prof°. Babalawô Ivanir dos Santos, é Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ); membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Pesquisador do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-UFRJ) e Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais pós coloniais (LEHA-UFRJ); Coordenador da Coordenadoria de Religiões Tradicionais Africanas, Afro-brasileira, Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ); Conselheiro Estratégico do Centro de Articulações de População Marginalizada (CEAP); Interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR); Conselheiro Consultivo do Cais do Valongo; Vice-presidente da América Latina no Conselho Internacional das Sociedades de Antigas Religiões de Descendentes de Africanos (ARSADIC), Nigéria. Tem experiência nas seguintes áreas ; Educação Étnico-racial e questões africanas, Direitos Humanos e Cidadania; Relações Internacionais; Religiões tradicionais da África Ocidental e Afro-brasileiras.


Referências:
http://www.espiritualidades.com.br/…/SILVA_Hernani_Francisc…

OVILEIRA, Rosenulton Silva de. A cor da fé: “identidade negra” e religião. Tese de Doutorado em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.

Fonte da foto: https://afrokut.com.br/blog/reforma-protestante-negra/



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