A gêneses do movimento negro evangélico no Brasil

Reconstruir a história do Movimento Negro Evangélico Brasileiro (MNE) é uma tarefa complexa, sobretudo porque esse é um processo ainda em andamento, com suas fronteiras borradas. Essa dificuldade parece ser maximizada na medida em que olhamos com maior vagar para o interior do próprio campo religioso cristão não católico, nomeado genericamente neste texto como “evangélicos”.2 Entretanto, é possível observar uma espécie de fio de Ariadne3 que conduz seus agentes no desenvolvimento de suas ações.

Pode-se falar em Movimento Negro Evangélico (MNE), por um lado, na medida em que se tem como referencial um conjunto de ações produzidas por grupos consolidados ou em construção, cujos agentes são pessoas que se autoclassificam como “evangélicas” e negras (pretas ou pardas, de acordo com a nomenclatura adotada pelo IBGE). Por outro, deve-se considerar que, em geral, os destinatários dessas atividades são também pessoas negras que participam de alguma igreja classificada como “evangélica”.

O combate ao racismo no interior das igrejas, em particular, e na sociedade, em geral, pode ser tomado como o elemento central a partir do qual se organizam as diversas iniciativas com temática racial empreendidas por esses grupos. Tais iniciativas têm em comum o fato de serem organizadas com base em certa orientação teológica-pastoral de inspiração protestante. Isso significa que, mais do que tratar de um grupo específico, para compreender o MNE, é preciso, antes de tudo, mapear as diversas atividades presentes nas várias igrejas para, em seguida, proceder a análise de suas estruturas.

Neste texto será apresentado de maneira panorâmica uma historiografia do MNE, a partir da atuação de alguns de seus agentes paradigmáticos. Discute-se também o modo como os símbolos da herança africana no Brasil são acionados nas ações desses grupos. Os dados que seguem foram recolhidos durante a pesquisa de campo,4 que privilegiou a produção escrita dos agentes evangélicos, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut, que reúne exclusivamente negras e negros evangélicos) além de conversas informais.

É importante ressaltar que, embora a participação das mulheres seja fundamental para a consecução do MNE, pastores e lideranças masculinas ganham proeminência na narrativa pública sobre a gênese do movimento. Em parte, esse fenômeno é justificado por alguns interlocutores5 pelo fato de que o sacerdócio no âmbito das igrejas cristãs (católicas e aquelas originárias da Reforma) é exercido quase que exclusivamente por homens, posição controversa entre os agentes. Atém mesmo entre as lideranças, o lugar que o sujeito ocupa na hierarquia religiosa impacta na atuação, como se verá mais adiante.

Partindo do princípio de que os discursos não constituem um campo separado das práticas sociais que produzem as identidades com base em sinais diacríticos da identificação étnica-racial seletivamente construídos, os grupos étnicos são “vistos como formas de organização de novas e adaptadas identidades ao “aqui e agora’” (Cunha 2009a:226). Entende-se que o campo religioso brasileiro, nas últimas décadas, tem sido um poderoso “aqui e agora” a impelir as religiões a também se posicionarem frente à diversidade étnico-cultural de seus fiéis.

Ao descrever os processos discursivos (Asad 2003) que orientam as práticas desses sujeitos, pretende-se verificar como são produzidos os conceitos em disputa (“identidade negra”, “cultura negra”, “negritude”, “herança africana”, “pan-africanismo”, “afrocentrismo” etc.), os quais põem segmentos religiosos distintos em diálogo na esfera pública. Com isso, não se imputa às categorias investigadas significados a priori – pelo contrário, queremos compreender seu processo de elaboração.

O conjunto de categorias operacionalizada pelos agentes é tomada como “nativo”, cujo significado não está apartado dos contextos e dos sujeitos que o empregam. Desse modo, importa saber como os consensos são estabelecidos por meio de discursos e como práticas ganham significados na esfera pública, põe atores em relação e promovem a efetivação de direitos. O recurso das aspas nos ajudará a colocar em suspeição esses termos, tal como fez a Manuela Carneiro da Cunha (2009b:373) ao tratar da noção de cultura e “cultura”.

Ganha relevo, neste debate, os deslocamentos de sentidos que são operados pelos agentes nas categorias de classificação “etnia” e “raça”, com base em certa noção de “cultura”. Isto é, como se verá mais adiante, a noção de raça acionada por alguns agentes em certos momentos parece apontar para o sentido de grupo étnico tal como fora definido por Fredrik Barth (1969).

Entre os anos 1970 e 1980, observa-se a gênese de duas posturas distintas frente às heranças culturais africanas no Brasil: combate e certa indiferença. Ou seja, por um lado, igrejas evangélicas neopentecostais assumem como elemento central da sua ação proselitistas a demonização das divindades, elementos e valores das religiões afro-brasileiras, inclusive daqueles presentes nos ícones da “identidade nacional”, como a capoeira, o carnaval, o samba etc. (Mariano 1999Silva 2007). Por outro lado, no âmbito das igrejas protestantes históricas emergem alguns coletivos de evangélicos negros que assumem um discurso de salvação que leva em consideração o pertencimento étnico-racial de seus fiéis sem, no entanto, ressaltar o que fora tradicionalmente evidenciado como “símbolos da cultura negra” (Burdick 2004).

Esse quadro desenhado no campo “evangélico” opõe-se ao contexto católico, pois, desde os anos de 1970, lideranças (formadas por leigas e leigos, padres e bispos) empreendem uma série de ações pastorais dentro e fora da igreja, em prol da população negra assumindo e ressignificando elementos culturais de origem africana. Tais atividades voltam-se para dentro da igreja, como a proposição de “liturgias inculturadas” (Oliveira 2016), e para fora, associando-se a outros coletivos do movimento negro (Oliveira 2017).

Neste texto, parte-se do pressuposto de que, atualmente, há um descentramento da identidade, isto é, o indivíduo não pode mais ser identificado com base em dados apriorísticos ou essencializantes. É por força da globalização que as identidades centradas e “fechadas” são deslocadas e pluralizadas. Dessa forma, a construção da identidade via interação com o grupo de origem não resulta em apenas uma definição, mas “produz uma variedade de possibilidades e novas posições de identidades… [tornando] as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixa, unificadas ou trans-históricas” (Hall 2003:87).

Nesse contexto, considerando que no jogo das identidades os sujeitos estão “constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes” (Hall 2009:328), a constituição do Movimento Negro Evangélico participa dessa disputa pela autoridade em legitimar a “identidade negra” com base em seus pressupostos doutrinários. Dessa forma, os agentes religiosos buscam autoridade para enunciar um discurso tanto na esfera pública, acerca das políticas étnico-raciais, quanto no exercício do proselitismo, uma vez que seriam as religiões também articuladoras na construção da “negritude”.

O método de coleta de dados adotado abrangeu três níveis complementares: documental, observação participante (em campo) e entrevista e/ou coleta de depoimentos dos agentes observados. A pesquisa de campo privilegiou a produção escrita de lideranças religiosas, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut, que reúne exclusivamente negras e negros evangélicos) e o acesso aos registros (entrevistas, reportagens etc.) das atividades feitas pelos próprios religiosos e divulgadas na mídia.

Este texto está dividido em duas partes: na primeira, apresenta-se o processo de configuração do MNE e, na segunda, discute-se como os símbolos da “herança africana no Brasil” são acionados por esses agentes, na conformação de suas ações pastorais.

Por Rosenilton Silva de Oliveira – Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil.
Coordenador do Fateliku – grupo de pesquisa sobre educação, relações étnico-raciais, gênero e religião. Doutor em Antropologia.


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“Hoje eu orei, Ele é negro”: a gêneses do movimento negro evangélico

Frases de Lélia Gonzalez

Lélia Gonzalez, nasceu em Belo Horizonte, em 1935, foi filósofa, antropóloga, professora, escritora, intelectual, militante do movimento negro e feminista. Ao longo de quase três décadas, Lélia percorreu um número significativo de temas, valendo-se das matrizes do pensamento ocidental e africano. Tendo uma atuação de pioneirismo e liderança no movimento negro brasileiro, com importantes debates sobre o racismo e o sexismo.

Lélia Gonzalez desenvolveu um pensamento próprio do negro brasileiro explorando teorias distintas como afrocentrismo, marxismo, existencialismo. Conheça algumas Frases de Lélia Gonzalez:

Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas. Portanto, nosso lema deve ser: organização já!

 

A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos etc.”

É importante ressaltar que emoção, a subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam na renúncia à razão, mas, ao contrário, num modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão.

Estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar, não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles.

Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial.

No momento em que começamos a falar do racismo e suas práticas em termos de mulher negra, já não houve mais unanimidade. Nossa fala foi acusada de emocional por umas e até mesmo de revanchista por outras; todavia, as representantes de regiões mais pobres nos entenderam perfeitamente (eram mestiças em sua maioria).

Você tem uma gama enorme de classificação, e nada mais que um estilhaçamento da identidade da etnia subordinada. Isto é, você estabelece um continuum de cor e quanto “mais clarinho” você for, mais próximo está do poder.

O nosso herói nacional foi liquidado pela traição das forças colonialistas. O grande líder do primeiro estado livre de todas as Américas, coisa que não se ensina nas escolas para as nossas crianças. E quando eu falo de nossas crianças, estou falando das crianças negras, brancas e amarelas que não sabem que o primeiro Estado livre de todo o continente americano surgiu no Brasil e foi criado pelos negros que resistiram à escravidão e se dirigiram para o sul da capitania de Pernambuco, atual estado de Alagoas, a fim de criar uma sociedade livre e igualitária. Uma sociedade alternativa, onde negros e brancos viviam com maior respeito, proprietários da terra e senhores do produto de seu trabalho. Palmares é um exemplo livre e físico de uma nacionalidade brasileira, uma nacionalidade que está por se constituir. Nacionalidade esta em que negros, brancos e índios lutam para que este país se transforme efetivamente numa democracia.

O discurso pedagógico internalizado por nossas crianças, afirmam que a história do nosso povo é um modelo de soluções pacíficas para todas as tensões e conflitos que nela tenham surgido. Por aí pode-se imaginar o tipo de estereótipos difundidos a respeito do negro: passividade, infantilidade, incapacidade intelectual, aceitação tranquila da escravidão etc. (…) Assim como a história do povo brasileiro foi outra, o mesmo acontece com o povo negro, especialmente. Ele sempre buscou formas de resistência contra a situação sub-humana em que foi lançado.

 

A questão do etnocentrismo está presente em qualquer cultura. Na medida em que você é socializado, você recebeu uma carga cultural (classificação, valores, significações, etc) muito grande, e você vai olhar o mundo através dessa perspectiva crítica. Mas há “etnocentrismos” e “etnocentrismo”, mas no nosso caso, no caso negro, vemos o seguinte: as nossas instituições sempre estiveram abertas aos brancos e a recíproca não é verdadeira.

Com informações do: Afrokut, Pensador e Revista CULT

Imagem: Afrokut


 

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