A Consciência é a base de todo o ser

Wade W. Nobles. Professor emérito do Departamento de Estudos da Africana da Universidade Estadual de São Francisco.

Racismo e modernidade a partir da ideia de realidade simulada: física quântica e psicologia negra Sakhu Sheti

Um ensaio sobre a compreensão do racismo a partir da ideia de realidade simulada – Por José Evaristo S. Netto

A Consciência é a base de todo o ser, afirma Amit Goswami!

No mundo que conhecemos hoje, realidade em que fazemos parte, é muito difícil imaginar uma rotina diária que favorecesse um “existir no mundo” onde possamos praticar o acesso aos nossos ancestrais, aos nossos antepassados, a partir da consciência não-local (da água da piscina). No paradigma ocidental da colonialidade e do racismo, estas formas de existir no mundo são tidas como inferiores, são exotizadas, rotuladas por serem práticas de matrizes africanas, e por isso tidas como não racionais, inferiores, primárias, tribais. O racismo e a colonialidade reelaboraram estas formas de existir no mundo criando o rótulo da cultura negra, da cultura africana, a cultura do Outro. E o Outro não é universal, nem sequer é civilizado e desenvolvido à altura da cultura europeia/ocidental. Aqui, acredito que a física quântica de Amit Goswami trás de volta a possibilidade de um existir no mundo diferente do que é imposto pelo racismo e pela modernidade ocidental.

Parece possível construir pontes entre o conhecimento sobre a consciência não-local da física quântica, com a construção da realidade a partir dos seus colapsos em eventos reais, e as formas de existir no mundo dos nossos antepassados do continente africano. O campo de estudos afrocentrados de psicologia negra Sakhu Sheti do dr. Wade W. Nobles contribui fundamentalmente para este percurso.

Em seu artigo Sakhu Sheti: Retomando e Reapropriando Um Foco Psicológico AfrocentradoWade W. Nobles afirma que o problema fundamental que todos nós sofremos, africanos em diáspora, em decorrência do racismo e da colonialidade que teve início da escravidão negra produzida pela Europa, é que nos foi alterado o senso de consciência de ser africano, e do que é ser africano. É preciso portanto voltar ao passado para compreender como os nossos antepassados lidam/lidaram com a sua humanidade, e o que resultou destes traumas, e das resistências e lutas contra a desumanização. Assim, é possível criar experiências que elaborem formas de existir afrocentradas, ou seja, fortalecedoras do nosso senso de consciência de ser africano.

Voltar ao passado para reaprender a lidar com a nossa humanidade, a partir dos conhecimentos e práticas dos nossos antepassados, dos nossos ancestrais. Como? Como fazer isso? Parece fantasioso, mas não é! Aqui esta um dos meus insights para a escrita deste singelo texto:

Acredito que a incorporação de práticas cotidianas suficientemente potentes para ressignificar a nossa percepção de existir no mundo, fortalecendo a nossa centralidade africana, seja o caminho para superarmos o controle da “colonialidade do saber” que domina as nossas mentes e produz esta realidade simulada pela lógica do consumo, na qual todos interagimos. Vivemos numa realidade simulada pelo racismo, pela colonialidade, pela lógica do consumo onde consumir significa existir no mundo. Na verdade, como no filme Matrix, estamos em coma induzido, consumindo, sustentando industrias, governos, sem darmos conta de quem somos, sem elaborarmos minimamente a nossa própria agência pessoal.

Vou me arriscar bastante com um exemplo:
Acredito que a fé em orixá seja um caminho, e uma experiência muito forte de ressignificação da nossa percepção de existir no mundo, capaz de nos fortalecer a ponto de superarmos o controle da colonialidade do saber que constrói esta a realidade simulada que domina as nossas mentes. A fé em orixá nos coloca num lugar onde desenvolvemos ferramentas e movimentamos recursos não para consumir almejando mostrar que existe para si mesmo e para outras pessoas, mas sim para acessar as memórias imateriais, os corpos sutis, que são, eles próprios, os nossos antepassados, energia que se configura naquilo que Amit Goswami chama de consciência não-local. Aqui cabe um adendo importante, isso não é uma explicação técnica de fenômenos espirituais do Candomblé, longe disso, mas apenas uma perspectiva que pode, e deve, motivar e estimular as pessoas a uma reflexão, ajudando na compreensão de um existir no mundo que fortaleça a sua humanidade. Compreendendo a perspectiva de existir no mundo da lógica ioruba como trouxe o psicólogo Wade W. Nobles, onde somos formados pela divindade Orisa-nla, pela força espiritual emi, a essência ou espírito individual Ori inu, e pelo alma-coração dos nossos ancestrais okan, e comparando-a com a compreensão de existir no mundo oferecida pela colonialidade através do paradigma do “consumo, logo existo”, não há como não percebermos que o racismo e a colonialidade provoca uma profunda precarização do sentido de existência. Talvez por isso, consciente ou inconscientemente muitas pessoas têm procurado as religiões de matrizes africanas e as “ciências tradicionais/ancestrais africanas”, para o auxílio das suas demandas pessoais nestas últimas décadas.

Aníbal Quijano é um sociólogo e pensador humanista peruano que se debruçou sobre a ideia central de que o racismo foi, e é, elemento fundamental da racionalidade moderna, eurocêntrica. Na obra Colonialidade do poder, eurocentrismo e America Latina (capitulo do livro A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas), ele trabalha com esta tese:

“A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo a sua racionalidade específica, o eurocentrismo.”

Anibal Quijano é conhecido por ter desenvolvido o conceito de “colonialidade do poder”, trabalhando com a ideia de que a colonialidade é, antes de qualquer coisa uma construção mental, uma racionalidade que parte da classificação social da população a partir da ideia de raça. Desta forma, o racismo se torna o eixo paradigmático desta nova racionalidade que vai estruturar as sociedades modernas, desde o século XV e XVI. De lá para cá o racismo foi se complexificando, assumindo os contornos culturais das épocas subsequentes, até imbricar-se com a lógica do consumo, paradigma vigente nos dias atuais. Acredito que Wade W. Nobles avança neste entendimento, contribuindo com a explicação sobre o impacto desta construção mental racista (colonialidade) na precarização do senso de consciência do que é ser africano no mundo, fazendo com que percamos a nossa centralidade, referencial e perspectiva para prática da nossa própria agência pessoal.

Viver experiências significativas e positivas é fundamental para todo e qualquer processo de conscientização e reforço da humanidade. Considerando que vivemos uma realidade simulada onde o racismo e a colonialidade são os algoritmos deste sistema operacional, desta Matrix, a produção de espaços de convivência que possibilitem vivências a partir de referenciais que possibilitem em “um retorno à África” como traz o Dr. Wade Nobles, ou uma prospecção quântica que nos possibilite contato com a memória imaterial dos nossas ancestrais e antepassados como traz Amit Goswami, pode auxiliar na construção de “subjetividades hackeadoras” da lógica racista e automatizadora da colonialidade.

O racismo, desde a escravização dos povos africanos até agora, se complexificou a ponto de se imbricar nas estruturas computantes do “Ser Humano”. Desta maneira, o racismo estaria no bojo da produção cultural, ou, de outra forma, influenciando dentro da produção de conhecimento e, ao mesmo tempo, se alimentando dela. Cheikh Anta Diop, argumenta que nos mais de 500 anos deste mundo ocidental, o papel da África na história humana têm sido sumariamente negada e, mais ainda, todas as formas de viver e se relacionar com o mundo foram ajustadas socioculturalmente para contemplar, legitimar e naturalizar a escravidão, o racismo e a dominação racial. Marimba Ani, antropóloga, ao se debruçar sobre o evento da escravidão negra, cunhou o conceito maafa, definido como o grande desastre contra as sociedades africanas, morte, sofrimento e destruição desmedidos, além da compreensão humana. Wade W. Nobles acrescenta:

“… a característica básica do maafa é a negação da humanidade dos africanos, acompanhada do desprezo e do desrespeito, coletivos e contínuos, ao seu direito de existir. O maafa autoriza a perpetuação de um processo sistemático de destruição física e espiritual dos africanos, individual e coletivamente.”

Quando reconhecemos o maafa, a partir do percurso histórico, passamos a considerar o fato de que os nossos antepassados tiveram que diversificar e reelaborar muito profundamente o significado de “ser e existir no mundo”, a ponto de, num dado momento, ocorrer cisalhamentos na própria percepção de realidade a partir do desligamento de arquétipos basilares à organização natural de “ser quem você é”, tamanha foi a violência voltada a nossa desumanização. A violência imediata, física, sem precedentes, dos europeus contra os africanos na escravidão foi acompanhada da construção pelas instituições europeias, de um sistema sociocultural, filosófico e científico, que tinha (e ainda tem) como agenda forjar um “modo de ser no mundo” circunscrito à experiência do europeu, e da pessoa branca. Mais do que isso, objetivamente, esta agenda geopolítica e econômica construiu uma nova realidade às pessoas no planeta, a que chamamos modernidade, ou a era moderna, onde novas regras sociais, valores, éticas, jurisprudências, governos, diplomacias, foram impostas, sob o argumento do desenvolvimento civilizatório das nações do mundo pela Europa. O racismo foi, e é, o elemento estruturador desta nova realidade geopolítica, sociocultural, e econômica no mundo. A Matrix estava completa e produzindo esta realidade simulada.

Considerando esta nova ordem social, Nobles contribui enormemente no entendimento do impacto que o processo de dominação colonial causou à consciência de “ser africano no mundo” da população africana e seus descendentes, até os dias atuais. A partir do conceito de descarrilhamento, ele elabora o entendimento chave de que o povo africano, escravizado e submetido a todo tipo de desumanidade, desviou-se do seu caminho natural de desenvolvimento.

CONTINUA…:

 

Por José Evaristo S. Netto – Educador, dedicado aos estudos sobre corporeidade, cultura, identidades, sociocognição, racismo e colonialidade. Mestre em Educação Física.

Consumir significa existir no mundo!

Amit Goswami. Professor aposentado de Física Teórica da Universidade de Oregon, bem como estudioso da Parapsicologia e defensor de uma linha de pensamento pseudocientífico conhecida como misticismo quântico.

Racismo e modernidade a partir da ideia de realidade simulada: física quântica e psicologia negra Sakhu Sheti

Um ensaio sobre a compreensão do racismo a partir da ideia de realidade simulada – Por José Evaristo S. Netto

Nós consumimos realidades construídas por outros, ao invés de construímos as nossas próprias realidades!

De fato, a realidade é cada vez mais discutida por teóricos e pensadores de diferentes áreas do conhecimento, que buscam compreensões para suas diferentes facetas observadas, sejam estas psicológicas, socioafetivas, físicas, biológicas, espirituais, ou facetas da realidade observadas a partir da perspectiva de qualquer outro campo do saber. No campo da física teórica, importantes pesquisadores têm oferecido perspectivas epistemológicas e até cosmovisões não ocidentais super relevantes para a compreensão do mundo, do universo, e consequentemente da realidade, do tempo e do espaço.

O físico quântico indiano Amit Goswami, em seu livro O Universo Autoconsciente, trabalha com a ideia de que a unidade formadora de tudo, inclusive da realidade, não é a matéria como a física clássica (newtoniana) argumenta, mas antes a consciência. Goswami demonstra que o universo é matematicamente inconsistente sem a presença de uma “consciência reguladora do cosmos”, e que a Consciência é a base de todo o ser. Parece complicado, e de fato é (((hahaha))) mas vamos tentar destrinchar um pouco essa perspectiva. Para superar os paradoxos teóricos intransponíveis quando utilizado somente os pressupostos da física newtoniana, as teorias científicas de Goswami respeitam e incorporam os conhecimentos das culturais tradicionais africanas, orientais e ameríndias, não ocidentalizadas e/ou colonizadas. Ou seja, Goswami produz uma ciência decolonial, que traz a possibilidade de compreensão do mundo e da realidade a partir de outros referenciais culturais que não são apenas ocidentais, e que não são regulados pelo racismo e a colonialidade.

Como exemplo, quando perguntado o que é a morte (programa Roda Viva, 2007, link abaixo) ele responde (entrevista: 2min53seg até 4min28seg):

“Há morte quando a consciência pára de causar o colapso das possibilidades quânticas em eventos reais da experiência. Esta é a definição técnica da morte. Então, isto é interessante pois na física quântica todos os objetos são possibilidades. Na verdade, momento após momento, incluindo nosso corpo e nosso cérebro, momento após momento nós causamos o colapso dessas possibilidades em eventos reais que experimentamos, com o nosso corpo e o nosso cérebro. Quando perdemos esta capacidade de convertem as possibilidades em eventos reais, nós morremos. Mas perceba o que está acontecendo. As possibilidades permanecem. É claro que algumas dessas possibilidades são possibilidades materiais. Essas possibilidades vão se desintegrar, no sentido do desaparecimento gradativo da estrutura, do desaparecimento gradativo da memória. Os corpos se desintegram. Mas, além do material, temos também os componentes sutis, como a nossa mente, como o vital, como os nossos arquétipos supra mentais, que vão além da mente e do vital, que também definem o nosso ser. Estes corpos são sutis. Eles não têm estrutura nenhuma. Eles podem continuar para além da nossa morte. Este é o conceito de sobrevivência após a morte.”

O entendimento de vida e morte a partir da física quântica de Amit Goswami traz muitas semelhanças com a compreensão de “ser no mundo” a partir da lógica ioruba, segundo o entendimento de que as pessoas possuem um corpo e um espírito, como o psicólogo Wade W. Nobles descreve:

O corpo, ou ara, é formado pela divindade Orisa-nla. É por meio do ara que a pessoa interage com o meio ambiente; é essa a parte da pessoa que se pode tocar e sentir. O arapode sofrer danos e se desintegra após a morte. Entretanto, o componente “essencial” da pessoa é o espírito, a “força espiritual” ou a espiritualidade (emi). O emidá vida a pessoa. É seu elemento divino e a vincula diretamente a Deus. Depois que a pessoa morre, o emiretorna ao Elemi(o dono do espirito, Deus) e continua a viver. Como pessoa, o individuo também possui a cabeça interior, ou ori inu. Oludumaré (o ser supremo) dá essa cabeça diretamente. Ela constitui o “espírito” particular da pessoa. Ori inu é o guardião do eu; carrega o nosso destino e influencia a personalidade. Além de emi (essência divina) e ori inu (essência pessoal), a pessoa tem okan. Essa palavra significa coração, mas, como aspecto constituinte da pessoa, representa o elemento imaterial (essência) que é a sede da inteligência, do pensamento e da ação. Assim, por vezes é chamado de “alma-coração” da pessoa. Acredita-se que a okanexista antes mesmo de a pessoa nascer. É a okandos ancestrais que reencarna no recém-nascido. Para ser uma pessoa, os iorubas também acreditam que se deve ter um ori e um ejeOri governa, controla e orienta a vida da pessoa e de fato a ativa. Ori é o portador do destino e ajuda a pessoa a realizar aquilo que veio fazer na Terra. Ori é ao mesmo tempo e “essência da pessoa” e seu guardião e protetor. Está intimamente ligado a emiEje é o sangue, expressão física da energia eletroquimicomagnética que constitui a força (essência) que guarnece e anima a vida. Os iorubas também acreditam que o iye é um componente da pessoa. O Iye é o elemento imaterial às vezes referido como a mente. (Nobles, 2009. Sakhu Sheti: retomando e reapropriando um foco psicológico afrocentrado. No livro: Afrocentricidade: Uma Abordagem Epistemológica Inovadora)

Voltando a Goswami,ele se baseia em uma análise da realidade a partir do paradigma Monista Idealista, porém não descarta o Realismo Materialismo e a mecânica newtoniana do entendimento das leis universais na natureza. Ele nos convida objetivamente a ampliarmos a nossa visão para a além do que imediatamente ouvimos, tocamos, sentimos e enxergamos, apontando que em dimensões mais sutis da existência, porém não menos importantes, a realidade se faz em eventos reais de colapsos — impactos, produzidos por uma consciência não-local que escolhe o que vai acontecer dentre as possibilidades quânticas que se apresentam. Isso significa que os fenômenos observados nos experimentos da física quântica não são produzidos pelo ego manifesto das pessoas, e sim por uma consciência maior, que não esta em mim, nem em você, mas que atravessa a todos nós, portanto uma consciência não-local. Goswami trabalha com a ideia de uma consciência do cosmos, como se estivéssemos mergulhados nela, como uma piscina onde a água representasse esta consciência não-local. A aguá esta em todo lugar, a água é o próprio meio que nos circunda. Toscamente falando, esta é a consciência enquanto unidade formadora de todo ser, na mecânica de não-localidade quântica do físico Amit Goswami.

Esta consciência não-local é que define (escolhe) os eventos reais — a realidade quântica. Ela é a que organiza as possibilidades dos eventos acontecerem ou não, de qual forma, e por quais caminhos. Voltando a metáfora da piscina sendo a água a consciência não-local, compreendemos que não somos a água, mas estamos em contato com ela. Se houver uma descarga elétrica dentro da piscina, todos nós seremos eletrocutados, porque a água conduzirá a corrente elétrica para todas as pessoas. A consciência não-local, considerando a mecânica quântica de Goswami, têm um comportamento parecido. Ela não conduz eletricidade, mas arquétipos supra mentais, memórias imateriais, corpos sutis, produzidos por nós, pelos nossos antepassados, pelos nossos ancestrais, que são dados, informações, sentimentos que podem ser acessados, processados, e viabilizados por qualquer um de nós, desde que tenhamos as ferramentas necessárias para esta espécie de “prospecção quântica” da consciência não-local.

CONTINUA…:

 

Por José Evaristo S. Netto – Educador, dedicado aos estudos sobre corporeidade, cultura, identidades, sociocognição, racismo e colonialidade. Mestre em Educação Física.