Manifesto “Escravidão: E a igreja com isso?”

Nós, pessoas antirracistas evangélicas, através deste documento fazemos um apelo público à igreja protestante e evangélica deste país. Há 136 anos, o povo negro no Brasil recebeu um documento oficial de abandono do Estado brasileiro, depois de 388 anos de sistema escravocrata, os poderosos decidiram abolir a escravidão sem nenhum tipo de reparação para o povo que gerou a riqueza de um dos países mais ricos da atualidade. Mais de 130 anos depois da abolição da escravidão, alguns silêncios permanecem. Apesar dos esforços de estudiosos dedicados a compreender esse período, ainda existe uma demanda historiográfica e informacional que contribui para a manutenção de narrativas únicas que omitem em muito as vozes dos silenciados e violentados que foram a base para a consolidação dessas instituições no Brasil. 

Entendemos que a escravidão colonial, foi um dos maiores crimes da história da humanidade e por isso precisamos dizer que é urgente: Reconhecer a escravidão como crime humanitário, incentivar a preservação e resgate da memória da história de comunidades e pessoas negras que foram apagadas, responsabilizar as instituições que lucraram e se beneficiaram do sistema escravocrata e defender a reparação dos povos escravizados como um direito fundamental para conseguirmos construir um país mais justo e igualitário que tem um compromisso radical com a justiça social.

Através deste manifesto afirmamos que a luta contra o legado da escravidão não é somente responsabilidade do povo negro ou indígena, mas sim de todo o país. É um dever ético reconhecer que o debate da escravidão precisa ser de cunho civilizatório, estamos literalmente discutindo que tipo de nação queremos ser, e se todo o sofrimento causado ao povo negro durante séculos continuará sem respostas, ou se iremos assumir um compromisso como povo de tocarmos em uma ferida ainda aberta que se chama: Escravidão.

Nós reconhecemos que o debate sobre memória e verdade para reparação já tem sido levantado desde a Conferência da ONU em Durban em 2001, onde se estabeleceu a importância de políticas e práticas para a ampliação do acesso à memória como passo crucial para alcançarmos políticas de reparação. Importante dizer que pastores, redes e coletivos negros evangélicos já lançaram manifestos que cobravam das igrejas uma posição sobre a escravidão: Em 2003 tivemos o Manifesto do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas, em 2008 tivemos o Manifesto “O perdão, os 120 anos da abolição inacabada e as igrejas históricas“, em 2020 tivemos o Manifesto de Negras e Negros Evangélicos e em 2022 tivemos o Manifesto Negro Protestante Brasileiro. Todos estes documentos foram elaborados por pessoas negras evangélicas, em sua maioria lideranças pastorais e teológicas, e de alguma maneira alertavam a igreja brasileira sobre um pecado em que ela historicamente contribuiu e muitas vezes ficou em silêncio.

Nós insistimos de maneira repetida no amor. Acreditamos firmemente que somente o caráter revolucionário do amor pode dar espaço para uma realidade de justiça plena para todas as pessoas. Neste contexto, fazemos um apelo público as igrejas históricas, primeiro por um pedido de perdão oficial ao povo negro brasileiro, e segundo, solicitamos que atuem no sentido de reescrever a história da igreja não só facilitando o acesso aos registros e documentos oficiais das instituições eclesiásticas que já estavam no Brasil naquele período mas trabalhando para que se estabeleça a verdade. 

Portanto reiteramos: Irmãs e irmãos, liberem e facilitem o acesso aos seus arquivos da época da escravidão, queremos entender melhor qual era a relação das igrejas protestantes históricas com a escravidão. Queremos saber: E a igreja com isso?

ASSINE O MANIFESTO “ESCRAVIDÃO: 

Manifesto de negras e negros evangélicos

Precisamos de uma igreja antirracista, que construa e promova a justiça

“Ai dos que promulgam leis iníquas, os que elaboram escritos de opressão, para suprimir os direitos dos fracos, e privar de justiça os pobres do meu povo.” Isaías 10:1-2.

Nós, negras e negros evangélicos brasileiros, nos manifestamos para clamar a urgência de a igreja se posicionar a denunciar o racismo como pecado, e pecado estrutural.

Quantas irmãs de nossas igrejas já perderam os filhos assassinados? Quantos jovens de nossas igrejas já foram mortos? Quantas irmãs oram por seus filhos presos? Queremos vida, mas as oportunidades são negadas, as portas de empregos cada vez mais são fechadas, o acesso à educação e ao sonho da universidade ainda não é para todos. Na maioria das vezes, nos falta o básico, nos faltam casa, alimento e água.

Quantos irmãos e irmãs estão morrendo nas filas dos hospitais e tantos outros nem conseguiram ter atendimento quando foram buscar a cura? É hora de reconhecer que muitas destas tragédias não são respondidas e explicadas pela “desigualdade” pura e simplesmente. Elas revelam o racismo da sociedade e o legado do descaso com vidas negras desde a era colonial do Brasil.

João Pedro e George Floyd eram negros e evangélicos. Aqui e nos Estados Unidos, estes irmãos foram vítimas de um sistema racista legislado por um Estado impregnado pelo racismo estrutural que sufoca, fuzila, desumaniza e silencia negros e negras. O caso de Miguel Otávio, menino negro de cinco anos —de família evangélica— que caiu do nono andar de um prédio em Recife, também denuncia as condições de trabalho do povo negro nesse sistema que violenta diretamente as famílias negras brasileiras. Em especial as mulheres negras, que desde a escravidão são submetidas a posições de servidão, negação de direitos e da própria humanidade.

Diante de estruturas de morte como estas, é necessária uma igreja que se levante e denuncie. Precisamos de uma igreja antirracista, que persegue, constrói e promove a justiça para todas e todos, e que olha em especial para os órfãos e viúvas de nossa época.

Infelizmente, parte dos líderes evangélicos de grandes igrejas —que possuem todo tipo de mídia nas mãos— estão comprometidos com o interesse dos poderosos e só pensam em armas e em tramar nossas mortes. Eles colocam o dinheiro e o poder acima da vida. Uma outra parte das lideranças decidiu ficar em silêncio, e isso também é escolher o lado do opressor.

Precisamos de uma igreja antirracista, que persegue, que constrói e que promove a justiça. Sabemos que todos os que odeiam e se levantam contra as obras de justiça que trazem vida ao povo negro amam a morte, amam o sistema racista e tudo que nele existe. No entanto, acreditamos no que o nosso irmão Martin Luther King Jr. afirma:

“A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar”.

Na crença e no clamor, convocamos irmãs e irmãos em oração para agir. O racismo é um projeto do inimigo, um projeto de morte, assim como a política de Herodes, que exterminava crianças, que colonizava territórios e que usava da religião para controlar os povos. Por isso, cabe a nós lutar pela libertação do nosso povo enquanto não houver igualdade, levantar nossa voz profética e denunciar o racismo. Pois sem justiça e sem vida plena e abundante para a favela, não é possível falar de paz.

Jackson Augusto é um jovem batista que integra a Coordenação Nacional do Movimento Negro Evangélico do Brasil. É membro do Colegiado Nacional do Miqueias Brasil, articulador social no Usina de Valores, produtor de conteúdo no projeto Afrocrente e ativista da teologia negra no Brasil.

Luciana Petersen é uma jovem batista estudante de jornalismo, feminista negra, editora e podcaster no Projeto Redomas.

Wesley Teixeira é um jovem negro membro da Igreja Evangélica Projeto Além do Nosso Olhar, militante da Frente de Evangélicos Pelo Estado Democrático de Direitos e do Coletivo Esperançar. Filiado ao MNU (Movimento Negro Unificado), que compõe a Coalizão Negra por Direitos.

Ronilso Pacheco é teólogo pela PUC-Rio, negro e nascido em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. É ativista, escritor e mestrando em teologia no Union Theological Seminary (Columbia University), em Nova York.

PerifaConnection

PerifaConnection é uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Nina da Hora, Salvino Oliveira e Jefferson Barbosa.

Fonte: Folha de São Paulo


Manifesto 2020 – Rede de Mulheres Negras Evangélicas do Brasil