A Bíblia e a África

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Personagens negros apresentados nas Escrituras oferecem lições inspiradoras à Igreja

Por Marcelo Santos

Palavra inspirada e útil para o ensino, como escreveu o apóstolo Paulo a Timóteo (2 Tm 3.16), o Livro Sagrado descreve eventos, diálogos e lições que se desenrolam em um contexto afro-asiático, em que a diversidade étnica e cultural é evidente. Moisés, que passou parte da infância no Egito, e a rainha de Sabá [cujo reino ficava na região hoje ocupada pelo Iêmen], conhecida pela sabedoria e riqueza, são referências de figuras africanas que desempenharam papéis cruciais na história do povo de Deus. A monarca, por exemplo, é descrita como uma governante poderosa que viajou longas distâncias para encontrar o rei Salomão, desafiando estereótipos e destacando a importância de outras culturas na formação da fé israelita.

O Pr. Marco Davi de Oliveira expõe que teologias pautadas na supremacia branca, que não são recentes, “incluem conceitos que contribuíram para solidificar o racismo e os estereótipos racistas, até mesmo dentro da população negra” Foto: Arquivo pessoal

No entendimento do Pr. Marco Davi de Oliveira, da Nossa Igreja Brasileira, no Centro do Rio de Janeiro (RJ), a interpretação do Texto Santo tem sido dominada por uma perspectiva eurocêntrica, ocultando, muitas vezes, a contribuição e a presença de povos africanos nas Sagradas Escrituras. Escritor, autor da obra A religião mais negra do Brasil, e doutorando em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra (Portugal), uma das mais prestigiadas e antigas do mundo, Oliveira ressalta que as teologias pautadas na supremacia branca solidificaram o racismo, tanto na mente dos brancos quanto na dos negros. “De fato, as histórias bíblicas e suas interpretações têm a liberdade de leitura e iluminação. O problema está na interpretação considerada livre”, avalia ele. “Essas teologias, que não são recentes, incluem conceitos que contribuíram para solidificar o racismo e os estereótipos racistas, até mesmo dentro da população negra”, expõe Oliveira.

O estudioso cita como exemplo a chamada maldição de Cam (um dos filhos de Noé) associada à escravidão e à inferioridade racial dos africanos. Segundo essa teoria, Cam, ao ver a nudez do pai, foi amaldiçoado a viver como escravo, e seus descendentes, identificados como africanos, teriam herdado essa maldição. Esse mito racista deturpou textos bíblicos, perpetuando a ideia de que a subjugação dos africanos era uma condição divina e inevitável, cristalizando o racismo e a discriminação.

Por muito tempo, acentua o pregador, essas interpretações foram aceitas como verdades absolutas, firmadas na supremacia branca, a qual determinava a inferioridade dos negros. Além disso, ele acredita que essas perspectivas erradas serviram para justificar a escravidão, sob a ótica de que os negros precisavam ser colonizados e escravizados para se tornarem pessoas melhores. Tal visão, assegura o pastor, foi reforçada por filósofos, como os alemães Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que descreveram os africanos como inferiores e selvagens. “A Bíblia é um livro que escreve a partir dos oprimidos. Nela, encontramos Moisés, filho de Joquebede, que era africana. Moisés não nasceu no lugar que hoje é chamado de Israel, mas na África, não é verdade? Em 400 anos de escravização, muitos libertadores nasceram nesse continente.” [Do editor: Moisés nasceu na Terra de Gósen, território mencionado na Bíblia situado no Delta oriental do Egito]

O empreendedor social Hernani Francisco da Silva destaca a importância dos personagens negros nas histórias bíblicas  – Foto: Arquivo pessoal

Personagens negros – Assim, desde os primórdios, a África está presente nas narrativas bíblicas. O empreendedor social Hernani Francisco da Silva, fundador da Missão Quilombo e da rede social Afrokut, destaca a importância dos personagens negros nas histórias bíblicas e revela alguns que foram protagonistas. “Sofonias, o profeta negro; Simão Cireneu, um homem de origem africana que vivia em Cirene (uma cidade situada no Norte da África), que foi forçado a carregar a cruz de Jesus, mas acabou se tornando um seguidor de Cristo, conforme o texto de Marcos 15.21 registra.”

Hernani ainda aponta Simeão, o Níger [o termo niger significa ‘negro’ em latim], um líder da Igreja primitiva em Jerusalém que impôs as mãos sobre Paulo para enviá-lo ao campo missionário; a africana Zípora, esposa de Moisés e filha de Jetro (Êx 2.21); a rainha Candace, cujo nome aparece quando o evangelista Filipe encontra um chefe dos tesouros da Etiópia (At 8.27). O fundador da Missão Quilombo também faz questão de citar a rainha de Sabá. “Sua fama era tal que, mil anos depois, Jesus Cristo mencionou os feitos dela. Ele disse que ela viera dos confins da Terra para ouvir a sabedoria de Salomão”, afirma, referindo-se à passagem de Mateus 12.42. Por fim, Hernani lembra que termos como etíopes e egípcios aparecem frequentemente na Palavra de Deus, evidenciando a presença africana. “Ler a Bíblia na perspectiva de um contexto afro-asiático contribuiria imensamente para a diversidade racial”, argumenta.

Vanessa Maria Barboza, coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (RMNE), afirma que é importante reconhecer e resgatar a diversidade étnica e racial do Livro Sagrado – Foto: Arquivo pessoal

Diversidade racial – Para Vanessa Maria Barboza, coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (RMNE), é importante reconhecer e resgatar a diversidade étnica e racial do Livro Sagrado. “Quando falamos sobre representação e diversidade nas Escrituras, reivindicamos a pluralidade étnica, cultural e fenotípica dos grupos retratados na Bíblia”, explica. Ela observa que, muitas vezes, as interpretações bíblicas feitas por lideranças religiosas não consideram as características físicas e culturais dos povos reportados, deixando de lado a fidelidade histórica.

Para Vanessa, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos, existe uma multiplicidade de representantes do Oriente Médio, da África e até mesmo do Mediterrâneo e do Extremo Oriente [região que abrange o Extremo Oriente Russo, a China, a Coreia do Norte, a Coreia do Sul, o Japão e Taiwan]. A pesquisadora pontua que essa ausência de reconhecimento das características dos povos bíblicos “é uma falta de respeito à história e à vivência desses grupos étnicos”. Em sua opinião, essa omissão distorce a realidade bíblica.

A coordenadora da RNME critica a forma como grupos missionários, desde o período colonial, impuseram as próprias imagens como representações das Escrituras, criando uma “falsidade” e uma “apropriação” das narrativas sagradas. Vanessa, que é doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), pensa que essa estratégia pedagógica foi usada para subordinar povos africanos escravizados e culturas indígenas, consolidando um imaginário segundo o qual o “povo escolhido de Deus” é predominantemente branco. A estudiosa lembra que a mensagem central da Bíblia é de “um Deus que acolhe e reconhece a diversidade dos povos, sem distinções”.

O Pr. Vanderlei Duarte Júnior ressalta que as comunidades de fé precisam ser espaços de acolhimento: “As igrejas têm o dever de acolher, e não de afastar, especialmente aqueles que foram historicamente marginalizados” – Foto: Arquivo pessoal

Inclusão – O Pr. Vanderlei Duarte Júnior, líder estadual da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em Sergipe, concorda com Vanessa Maria Barboza e ressalta que as comunidades de fé precisam ser espaços de acolhimento. “As igrejas têm o dever de acolher, e não de afastar, especialmente aqueles que foram historicamente marginalizados”, assevera o ministro, enfatizando o papel das congregações na promoção da inclusão racial. Vanderlei, aliás, cita a sua experiência positiva na Igreja da Graça. “Nunca me senti excluído. Pelo contrário, sempre fui bem acolhido pelos meus pastores e líderes, assim como pelo Missionário R. R. Soares. Ele confiou a mim a liderança de um estado quando eu ainda era bastante jovem, com apenas 23 anos.”

Dados do Atlas da Violência 2024, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostram que, no Brasil, o racismo e a exclusão racial continuam sendo problemas graves. Essa edição do Atlas, que compila dados reunidos em 2022, revela que, naquele ano, foram registrados mais de 63 mil casos de violência racial referentes a agressões e discriminações motivadas pela cor da pele e etnia. No estudo, o IPEA demonstrou que a população negra representava 76,5% das vítimas de homicídios.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os evangélicos representam hoje 31% da população do país, e a maioria dos crentes brasileiros (56%) se identifica como pretos ou pardos. Se, por um lado, as congregações evangélicas ainda precisam vencer alguns desafios para alcançar a equidade racial; por outro, na opinião de Vanderlei Duarte, tem havido avanços na inclusão de líderes negros. Mas ele faz um alerta: existe o risco de ocorrerem divisões dentro das igrejas se não houver atenção a esses grupos étnicos.

Entretanto, o líder observa que a exclusão racial não é apenas um problema das igrejas, mas também da sociedade em geral. “Esse estereótipo reflete a imagem projetada pela colonização e pela escravização”, defende Duarte. Ele ressalta que, se alguma igreja exclui pessoas devido à cor da pele, isso ocorre por falta de conhecimento – tal como ensina o texto de Oséias 4.6. “Se um pastor, líder de uma igreja, possui algum tipo de preconceito racial, ele não é dirigido por Deus, e sim por um espírito maligno”, atesta Vanderlei, salientando que as congregações devem se concentrar em cumprir a ordem de Jesus. “Todos, na igreja, devem estar unidos em torno do nosso maior propósito: salvar pessoas”, conclui.

Marcelo Santos é biógrafo, escritor, jornalista Freelancer e Repórter na empresa SESC SP – Revista Problemas Brasileiros.

Fonte:  Revista Show da Fé

O caso da Nossa Igreja Brasileira

A denominação supramencionada está localizada, atualmente, na rua da Carioca, no centro da cidade do Rio de Janeiro. O casal, Marco Davi de Oliveira e Nilza Valéria Zacarias são principais articuladores dessa igreja. O pastor Marco Davi é natural de Teresópolis/RJ, formou-se em teologia, história e ciências da religião, foi um dos fundadores do Movimento Negro Evangélico (MNE) em 2003. Publicou o livro A religião mais negra do Brasil: por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo? É o idealizador do projeto Discipulado, Justiça e Reconciliação e atualmente apresenta o programa de rádio, Papo de CrenteNilza Valéria é formada em jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Recentemente (08 de março de 2023) recebeu, pelo Senado Federal, o Diploma Bertha Lutz por sua militância a favor do Estado democrático de direito e dos direitos humanos. É fundadora e coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito (FEED), e cofundadora do MNE. Atualmente coordena o projeto de comunicação, Papo de Crente (programa radiofônico homônimo e Revista de Estudo Bíblico).

O primeiro culto da Nossa Igreja Brasileira ocorreu no dia 3 de março de 2018 em um espaço cedido pela Igreja Batista Memorial da Tijuca, localizada no bairro da Lapa, próximo ao centro da cidade. No entanto, Rosenilton Oliveira (2021) afirma que o pastor Marco Davi de Oliveira fundou o Ministério Nossa Igreja Brasileira no ano de 2014. Antes da sede atual, a igreja já realizou cultos dominicais na Casa Porto, um estabelecimento gastronômico boêmio localizado no bairro da Saúde, local conhecido como Pequena África. Nas fotos divulgadas nas redes sociais é possível ver os fiéis próximo aos engradados de cerveja, mesa de totó, arcade (ou fliperama) etc. A igreja também teve alguns encontros no Kuzinha Nem, a cozinha vegana solidária da Casa Nem (espaço de
acolhimento LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social, fundada pela militante Indeanarae Siqueira) e também nas dependências do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN).

A igreja tem como principal proposta a valorização da cultura brasileira (brasilidade) em suas múltiplas manifestações culturais. Algo que se expressa inclusive no nome e no logotipo da denominação, que faz referência as cores da bandeira do Brasil (principalmente verde e amarelo), aos pontos turísticos do Rio de Janeiro (Cristo redentor e Pão de Açúcar) e o pandeiro, um dos instrumentos de percussão mais populares do universo do samba.

A proposta de valorização da brasilidade pode ser percebida também em seu cancioneiro constituído por inúmeros ritmos musicais pertencentes as culturas populares afro-brasileira e indígena, como o sertanejo, o xote, o forró, o samba, o maxixe, a bossa nova, o frevo, o jongo entre outros.

Algumas das canções encontrada no cancioneiro trata diretamente da questão racial, como é caso de “Sorriso negro”, em que diz:

Um sorriso negro
Um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego
Fica sem sossego
Negro é a raiz de liberdade
Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio é luto
Negro é a solução
Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade

Percebe-se que a canção “Sorriso Negro” exalta positivamente a negritude, repetindo inúmeras vezes a palavra, “negro”. Em conversa com o pastor Marco Davi de Oliveira, este afirmou que muitas das canções foram compostas por ele mesmo, e isso decorreria da dificuldade de encontrar canções evangélicas que trata da questão racial e social. A maioria das canções evangélicas, de acordo com Marco Davi, seriam voltadas quase que exclusivamente para a dimensão espiritual e individual em detrimento das questões sociais e coletivas.

Um dos esforços da denominação para valorizar a “brasilidade” são as rodas de samba (com músicas seculares) organizadas no espaço da igreja. Em um dos encontros que participei, o pastor Marco Davi no púlpito afirmou que a roda de samba enquanto expressão cultural existe “para a glória de Deus” e que “ali está a graça de Deus”.

Os elementos da cultura afro-brasileira estão presentes na liturgia da igreja, em visita a uma das reuniões, comemorou-se uma festa junina, com decoração característica das festas de rua, com bandeirinhas, balão, vestimentas, paleta cores, comidas típicas (caldo de feijão, paçoca, milho cozido, bolo etc.), ritmo musical, dança e uma reflexão sobre a importância dessa tradição enquanto expressão da cultura popular brasileira, que na percepção de suas lideranças, é uma expressão, sobretudo, afro-indígena. Em certa ocasião desse encontro, o
pastor Marco Davi afirmou que a denominação tem uma “proposta decolonial”, reforçando o argumento de que o cristianismo é diverso e por isso a cultura popular deve ser valorizada, no sentido político da inversão, ou “subversão”.

Entre os argumentos defendidos pelos agentes do protestantismo negro de esquerda é a ideia de que o próprio cristianismo em si é uma religião de matriz africana ou afro-asiática. Parte-se do princípio de que o cristianismo possui uma forte herança cultural africana e que inúmeros personagens bíblicos são de origem africana. Aqui temos algo assemelhado com as propostas de “reafricanização dos espíritos” do movimento estético, filosófico e literário afrofranco-caribenho, Negritude e os pensadores africanos, Amílcar Cabral e Mario Pinto de Andrade, que também deram uma importante contribuição a esse conceito.

Ainda no início de sua formação a NIB organizava encontros semanais com grupos menores denominado de Pequenos Quilombos. Em uma publicação de 2019 na rede social Facebook definia esses grupos de “veículos de formação bíblica, teológica, cultural e política”. O grupo das Mulheres chamava-se Madalenas, o dos homens, Zé João. Esse é um exemplo de como a NIB realiza um conjunto de esforços voltados para questão étnico-racial. Preocupação essa que envolve identidade visual, seleção dos ritmos musicais, manuseio de um conjunto de terminologias específicas, detalhes nos aspectos litúrgicos, seleção e interpretação de passagens bíblicas entre outras.

Os símbolos mobilizados, resgatados, construídos e ressignificados dentro dessa dinâmica, objetivam fortalecer a ideia de uma igreja pautada na experiência negra. E neste sentido a denominação pertenceria ao movimento negro e ao movimento negro evangélico. A NIB se propõe a fazer de forma sistemática um resgate e uma valorização afirmativa e positiva das múltiplas expressões culturais negro africana e indígena. Apresentado, dessa forma, uma narrativa teológica e política contra hegemônica, na sociedade e no campo evangélico.

Rosenilton Oliveira (2021) afirma que no movimento negro evangélico a dinâmica de (re)africanização por meio de um deslocamento do “eurocentrismo” (“deseuropeizá-lo”) e uma recusa do candomblé e outras religiões de matriz africana e enquanto expressão única da africanidade (“descandombletizá-lo”). A NIB também realiza esse duplo movimento a seu modo enquanto defende o cristianismo como uma expressão religiosa afro-asiática, mas sem fazer oposição as outras religiões de matriz africana.

Wallace Cabral Ribeiro

Texto retirado do trabalho de pesquisa de  Wallace Cabral Ribeiro. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF). Realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Protestantismo negro de esquerda – Trabalho completo – Wallace Cabral Ribeiro – 48º Encontro Anual da ANPOCS – 2024

Igrejas Evangélicas, Atuação Negra e Antirracismo

Na obra “A Religião Mais Negra do Brasil”, o Pr. Marco Davi de Oliveira ressalta as transformações por que tem passado o cenário religioso brasileiro. O autor destaca forte crescimento dos evangélicos, singularmente através dos grupos pentecostais, realidade que já tem se tornado notória desde os anos 70. O autor argumenta que essa vertente protestante conseguiu alcançar a base da cultura do Brasil, provocou uma revolução o âmbito da negritude, e tem contribuído para a ressignificação de crenças presentes no contexto social.

Tem sido observado que a busca frequente pelas comunidades pentecostais por parte dos negros, tem contribuído para que o pentecostalismo figure como a religião mais negra do Brasil, e entre os fatores apontado para essa procura estão elementos ligados à forma de culto, músicas, acolhimento, interação com as pessoas, discursos, postura eclesiástica, etc.

Segundo Marco Davi de Oliveira pastor batista e coordenador do Movimento Negro Evangélico, o pentecostalismo com sua forma de culto, onde as expressões corporais, utilização de instrumentos regionais, hinos animados e participativos; propiciam a identificação da cultura negra com essa forma de protestantismo popular. Ainda segundo o escritor três aspectos da espiritualidade negra são contemplados na pentecostalidade: a espontaneidade, expansividade e a abnegação (GELEDÉS, 2009).

Marco Davi, sustenta que a igreja, especialmente a vertente chamada histórica, não deu a devida atenção às demandas raciais e sociais, e tem se mostrado indiferente ás políticas de ação afirmativa. O livro salienta, também, que essa expressividade negra dentro do pentecostalismo não significa uma participação maior em posições hierarquicamente mais elevadas dentro das igrejas e convenções.

A despeito da persistência de atitudes de demonização e inferiorização das culturas de matriz africana e afro-brasileiras e suas práticas, especialmente na esfera religiosa, a postura dos evangélicos tem alcançado mudanças ainda que não muito significativas. Tais mudanças, no entanto, representam um avanço, especialmente se considerar o histórico de resistência por parte de muitos adeptos de igrejas evangélicas, bem como a situação de exclusão e discriminação do negro na sociedade brasileira. Essa atuação evangélica tem se dado tanto no questionamento dos preconceitos, como na implementação de programas de combate ao racismo, mediante formação de frentes de resistência.

Cunha (2017), no artigo intitulado “A Superação do Racismo Também é Coisa de Evangélicos”, faz uma retrospectiva da questão do racismo no Brasil, mencionando a onda de intolerância que tem varrido o país nos últimos anos. Cunha acentua que práticas racistas se manifestam desde a existência de elevador social e elevador de serviço, até a forma agressiva com que policiais abordam “suspeitos”. Na sua visão, tais práticas são maquiadas pela ideia de uma falsa democracia racial, que insiste em negar que o racismo esteja sedimentado na sociedade brasileira. No seu discurso, Cunha se reporta aos evangélicos negros do Brasil e se reporta a vários evangélicos de tradição Metodista, Batista e Presbiteriana, reconhecendo o seu papel enquanto agentes de luta contra a desigualdade. Na sua acepção, “São fiéis que empenham suas vidas na resistência contra o racismo e na luta por justiça e igualdade, inclusive dentro das próprias igrejas e nos ensinam e inspiram” (CUNHA, 2017).

Destaco na Igreja Metodista o pastor Antônio Olímpio de Sant’Ana, fundador da Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo (CENACORA), nos anos 1980. A leiga Marilia Schuller, que serviu por 14 anos nos projetos de superação do racismo do Conselho Mundial de Igrejas, e segue em atuação. O pastor Melchias Silva, com o projeto Atitude Afro, e a busca de justiça para população negra dentro e fora das igrejas (…) As leigas Diná da Silva Branchini, Keila Guimarães e Maria da Fé Vianna, em seus esforços por ações afirmativas. As pastoras Maria do Carmo Kaká Lima e Lídia Maria de Lima, empenhadas no fazer teológico sob o olhar da mulher negra. Da tradição Batista recordo o pastor Marco Davi de Oliveira, liderança do Movimento Negro Evangélico, autor do livro “A religião mais negra do Brasil: Por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo“. Sua parceira e esposa Nilza Valéria Zacarias, jornalista que atua na Frente Evangélica pelo Estado de Direito, ao lado do pastor Ariovaldo Ramos, também disseminador da causa negra entre evangélicos. O jovem pastor Henrique Vieira, ativista na política institucional e nas mídias alternativas, com ações e apelos pela igualdade e a justiça. O teólogo Ronilso Pacheco, ativista social e autor do livro “Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão” (Editora Novos Diálogos). Entre presbiterianos, há nomes históricos, como o pastor Jovelino Ramos, perseguido pela ditadura e exilado em 1968, e o pastor Joaquim Beato, incansável propagador da busca por igualdade racial dentro das próprias igrejas. Entre os mais jovens está o pastor Eduardo Dutra, ativista do movimento negro evangélico (CUNHA, 2017).

De acordo com Santos (2015) o Movimento Negro Evangélico contemporâneo emerge nos anos70 e 80. Nesse contexto, se levantam pessoas interessadas em discutir temáticas étnico-raciais nas igrejas evangélicas. Salienta, porém, que nos anos 60 foi criada a Comissão Nacional de Combate ao Racismo e a Pastoral e a Pastoral de Combate ao Racismo, entidades criadas pela igreja Metodista. A partir daí, surgem várias instituições de combate ao racismo no seio do protestantismo, especialmente de vertente histórica.

Um dos exemplos de militância negra evangélica é o já citado Pr. Marco Davi, que lidera grupo de estudo para refletir sobre raça e evangelho, objetivando questionar e combater práticas racistas. Também foi citado anteriormente, a reconstrução de um terreiro de
candomblé no Rio de Janeiro, que contou com a doação de integrantes de igrejas evangélicas.

A iniciativa desse ato foi da pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, presidente do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado do Rio de Janeiro (CONIC-Rio).


Esse texto é parte da Dissertação:

“O que é de Deus e o que não é de Deus:”
DOCENTES EVANGÉLICOS E O ENSINO DAS CULTURAS AFRICANAS
AFRO-BRASILEIRAS NAS ESCOLAS PÚBLICAS

Autor: RENILDES DE JESUS SILVA DE OLIVEIRA

Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre.