O ativismo negro evangélico no Brasil

Muitos de nós já ouvimos algo sobre Martin Luther King Jr. e a participação das black churches na luta pelos direitos civis dos negros nos EUA. Entretanto, quando pensamos na participação política dos evangélicos ou no movimento negro no Brasil, ambos os fenômenos parecem tão distintos como água e óleo.

Haveria fenômeno semelhante no Brasil? Seria possível articular politicamente tais identidades racial e religiosa em nosso contexto, sem prejuízo de alguma delas? As respostas estão indicadas: a expansão demográfica evangélica, a onda de afirmação racial e a crescente mobilização política de minorias e segmentos historicamente discriminados têm seu desaguadouro em um ativismo negro evangélico que, embora tenha berço nos anos 1970, reemergiu publicamente com mais força e visibilidade nos últimos anos. Seus atores, coletivamente organizados, promovem o antirracismo e incidem nas igrejas e na sociedade em geral a partir de suas crenças e valores religiosos.

Para compreensão desses processos, os textos sugeridos a seguir contribuem ao desnaturalizar as identidades racial e religiosa, nos lembrando de que não são entidades fixas, mas sim posições relacionais e situacionais que devem ser consideradas historicamente. Com diferentes abordagens teórico-metodológicas, todos privilegiam os agenciamentos em suas análises e nos previnem de determinismos. Diante disso, o desafio que se abre é compreender tanto o modo como negros e evangélicos se realizam em suas experiências cotidianas, quanto suas operações no expediente das arenas públicas de que participam.

Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil

Ricardo Mariano (Loyola, 1999)

Publicado em 1999, o best-seller da sociologia da religião apresenta os resultados de uma pesquisa de mestrado concluída em 1996. O volume contém uma tipologia do pentecostalismo brasileiro, cuja evolução teria se dado por três “ondas”: a primeira, que data do início do século 20 e inclui denominações como Assembleia de Deus e Congregação Cristã no Brasil; a segunda onda, também chamada “deutero-pentecostal”, marcada pela ênfase na cura divina e pelo uso mais intensivo dos meios de comunicação, sobretudo o rádio; e a terceira onda, a “neopentecostal”, objeto central da pesquisa.

As igrejas neopentecostais, aponta o autor, apresentavam valores e práticas religiosas que, em alguma medida, eram distintivas das demais, como a valorização da teologia da prosperidade; o apelo a noções de “guerra espiritual” e a liberalização de usos e costumes. Na soma, tratava-se do diagnóstico de um processo social específico: o ascetismo contracultural que definiu os evangélicos pentecostais por décadas estava sendo reduzido; o neopentecostalismo era a ponta de lança de uma acomodação sociocultural dos evangélicos, agora cada vez mais “mundanos”.

Para além da radiografia desse segmento religioso e de suas mutações, o texto ilumina a sua expansão demográfica e crescente visibilização ao mostrar que, enquanto cresciam e se tornavam mais visíveis e mais integrados às esferas seculares de ação, os evangélicos também ampliavam sua disponibilidade política e adquiriam maior plasticidade cultural. É um livro incontornável para entender o lastro das subjetividades emergentes desse grupo religioso e como chegamos ao quadro atual em que a identidade evangélica e o ativismo político evangélico tornaram-se tão relevantes.

A queda do profeta negro: o significado ambivalente de raça no pentecostalismo

John Burdick (Comunicações do ISER, 1989)

O antropólogo estadunidense e estudioso brasilianista, John Burdick, certamente foi quem mais contribuiu para os estudos sobre a questão racial no meio evangélico. Suas pesquisas se estenderam dos anos 1980 até a década de 2010 e incluem dados e reflexões sobre a produção musical negra evangélica; as relações raciais em igrejas e o ativismo negro evangélico propriamente dito.

No artigo “A queda do profeta negro”, Burdick apresenta dados etnográficos de pesquisa realizada em uma igreja pentecostal e uma paróquia católica, ambas na Baixada Fluminense (RJ). O autor mostra como, na comunidade evangélica, as tensões raciais eram transfiguradas e expressas simbolicamente em linguagem ritual durante os cultos e reuniões dos fiéis; como carisma e identidade racial se combinavam e como a política eclesiástica, ainda que feita em termos estritamente religiosos, era atravessada pelo fator raça. Seu texto mostra a raça produzindo a religião e não o contrário, como poderíamos supor de imediato.

Why is the Black Evangelical Movement Growing in Brazil?

John Burdick (Journal of Latin American Studies, 2005)

Nesse artigo, Burdick atualiza sua agenda de pesquisa e tenta responder à pergunta: “por que o movimento negro evangélico está crescendo no Brasil?” Sua resposta é a de que o crescimento desse ativismo se deu por fatores internos como a disponibilidade de lideranças e o uso da internet para comunicação e organização coletiva a nível nacional, mas também às favoráveis estruturas de oportunidade política como a crescente problematização pública do racismo – inclusive oficialmente reconhecido pelo Estado brasileiro desde 1995. Além disso, os ativistas negros evangélicos adotavam enquadramentos em que, habilmente, incluíam o racismo sob o guarda-chuva dos “direitos humanos”, contra os quais as resistências seriam menores dentro das igrejas.

Burdick também reitera sua observação já anotada em textos anteriores de que haviam preconceitos por parte de ativistas do movimento negro tradicional contra evangélicos, o que dificultava o diálogo e a colaboração cada vez mais necessária entre os grupos, afinal os evangélicos já somavam quantias consideráveis da população negra brasileira em 2005. O texto também chamou a atenção, com notável intuição, para a presença de lideranças públicas negras evangélicas (Reginaldo Germano, Benedita da Silva, entre outros) e a possibilidade de o movimento negro capitalizar politicamente com o eleitorado evangélico.

What is the Color of the Holy Spirit? Pentecostalism and Black Identity in Brazil

John Burdick (Latin American Research Review, 1999)

Nesse artigo, John Burdick discute as experiências de negros evangélicos e o modo como articulavam marcadores raciais e religiosos no cotidiano. O autor discorda da opinião corrente entre setores do movimento negro de que a religiosidade evangélica seria demasiadamente “assimilacionista” e que, portanto, levaria seus fiéis negros a abandonar sua identidade racial em favor da fé. Com extensa pesquisa de campo e trabalho etnográfico no Rio de Janeiro, Burdick argumenta que a socialização dos negros nas igrejas pentecostais das periferias urbanas os estimulava em sua autoestima e autoaceitação. Os padrões de beleza feminina tal como estabelecidos na sociedade eram relativizados ou subvertidos em função de noções espirituais de beleza, por exemplo, assim como as dinâmicas de contração de namoro e casamento eram menos restritas para as mulheres negras em comparação com os ambientes extra-eclesiais, onde estatisticamente sua preterição era mais frequente.

Junto disso, a produção cultural dos negros nas igrejas por meio da música ou dos carismas religiosos exercidos em suas práticas individuais e comunitárias contrastava com os estigmas de que costumavam ser objetos fora da igreja, seja no trabalho, no espaço doméstico, entre outros. Em resumo, o que o antropólogo demonstra é que, ao contrário do que supunha um senso comum, a experiência racial dos negros evangélicos adquiria novos significados para esses indivíduos a partir de sua fé, de modo que as identidades se interpenetravam em composições complexas. A realização identitária do negro evangélico não estava comprometida.

Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso

Paula Montero (Religião & Sociedade, 2012)

O artigo marcou uma nova agenda para os estudos do fenômeno religioso no Brasil. Em lugar das pesquisas de viés mais antropológico, preocupadas com os componentes cosmológicos das religiões, e das abordagens sociológicas clássicas às voltas com noções estanques de secularização e modernidade, Montero propõe a abordagem das religiões como discurso. A própria esfera pública não seria mais que um fluxo de interações discursivas, um espaço de visibilidade no qual os atores articulam significados diversos e travam disputas o que, de pronto, exclui abordagens normativas e teleológicas das manifestações públicas da religião e abre espaço para estudos mais fenomenológicos. Para isso uma boa perspectiva seria a das controvérsias públicas – elas seriam momentos/situações de visibilidade pelas quais o investigador pode verificar a produção de legitimidade e de categorias pelos agentes religiosos durante as próprias interações, diga-se, sempre conflituosas. Descrever como a religião é produzida em público tornou-se o programa de pesquisa fundamental para a compreensão dos ativismos político-religiosos no Brasil contemporâneo.


Vítor Queiroz de Medeiros é cientista social e mestrando em sociologia (USP). Pesquisa o ativismo negro evangélico brasileiro e integra o projeto temático “Religião, Direito e Secularismo: a reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo” (Cebrap/Fapesp). Recebeu, em 2021, o  Prêmio Lélia Gonzalez de Manuscritos Científicos sobre Raça e Política na categoria “mestrando”.

Este texto faz parte da série de materiais que serão publicados ao longo de 2021, no Nexo Políticas Públicas, pelos vencedores da primeira edição do Prêmio Lélia Gonzalez de Manuscritos Científicos sobre Raça e Política.

Fonte: Nexo Políticas Públicas