O ubuntu como cuidado e partilha

Para o ethos do ubuntu, uma pessoa não só é uma pessoa por meio de outras pessoas, mas também por meio de todos os seres do universo. Cuidar “do outro”, portanto, também implica o cuidado para com a natureza (o meio ambiente) e os seres não humanos, afirma o filósofo e psicólogo sul-africano Dirk Louw.

Não apenas ser porque tu és, mas também ser por meio de ti: essa é, em resumo, a ética ubuntu, segundo Dirk Louw, psicólogo e filósofo da África do Sul. Por isso, afirma, “ser humano significa ser por meio de outros”, sejam estes vivos ou mortos, humanos ou não.

Em um sentido mais geral, ubuntu também “significa simplesmente compaixão, calor humano, compreensão, respeito, cuidado, partilha, humanitarismo ou, em uma só palavra, amor”, explica Louw, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Por isso, para Louw, os recentes episódios políticos da sociedade sul-africana, como a superação do apartheid, foi primordialmente “o resultado do surgimento de um ethos de solidariedade, um compromisso com a coexistência pacífica entre sul-africanos comuns a despeito de suas diferenças”. 

Louw indica ainda que “o ubuntu é resilientemente religioso”, já que “não só os vivos devem compartilhar e cuidar uns dos outros, mas os vivos e os mortos dependem uns dos outros”. Nesse sentido, afirma, “o conceito africano de comunidade inclui toda a humanidade. Todos nós (isto é, os vivos e os mortos-vivos ou ancestrais) somos família”. E não só: por ter nascido em um pensamento holístico como o africano, o ethos do ubuntu afirma que uma pessoa não só é uma pessoa por meio de outras pessoas, mas também é uma pessoa por meio de todos os seres do universo, incluindo a natureza e os seres não humanos, explica Louw.
Dirk J. Louw é psicólogo clínico da província de Limpopo e ex-professor de filosofia da University of the North, na África do Sul. Estudou na Universidade de Utrecht, na Holanda, na Universidade da África do Sul e na Stellenbosch University, também na África do Sul. É pesquisador da pesquisador da Universidade de Joanesburgo e do Centro de Ética Aplicada da Stellenbosch University e membro do Institute of Transpersonal Psychology. É membro fundador da South African Philosopher Consultants Association, ex-membro do comitê executivo da Sociedade Filosófica da África do Sul e ex-editor do South African Journal of Philosophy. Entre suas publicações, destacamos seu livro Ubuntu and the Challenges of Multiculturalism in Post-apartheid South Africa (Center for Southern Africa, Utrecht University, 2001) e seu artigo Ubuntu: An African Assessment of the Religious Other. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que significa ubuntu? Quais são as noções centrais para essa filosofia e estilo de vida?

Dirk Louw – O sentido de ubuntu está resumido no tradicional aforismo africano “umuntu ngumuntu ngabantu” (na versão zulu desse aforismo), que significa: “Uma pessoa é uma pessoa por meio de outras pessoas”, ou “eu sou porque nós somos”. Ser humano significa ser por meio de outros. Qualquer outra forma de ser seria “des-umana” no duplo sentido da palavra, isto é, “não humano” e “desrespeitoso ou até cruel para com os outros”. Essa é, grosso modo, a forma como a ética ubuntu africana descreve e também prescreve o ser humano.
Em um sentido estritamente tradicional ou, se se preferir, religioso, ubuntu significa que só nos tornamos uma pessoa ao ser introduzidos ou iniciados em uma tribo ou em um clã específicos. Nesse sentido, “tornar-se uma pessoa por meio de outras pessoas” implica em passar por vários estágios, cerimônias e rituais de iniciação prescritos pela comunidade.
Entretanto, em um sentido comum ou, se se preferir, secular, ubuntu significa simplesmente compaixão, calor humano, compreensão, respeito, cuidado, partilha, humanitarismo ou, em uma só palavra, amor.

IHU On-Line – Como o ubuntu se relaciona com a história e a cultura africanas? Quais são as suas fontes?

Dirk Louw – As questões referentes às fontes do ubuntu e à sua relação com a história e a cultura africanas são controversas. Alguns pesquisadores sustentam que o ubuntu tem sido comunicado por meio de histórias de geração a geração desde tempos imemoriais, e que as articulações africanas dos valores do cuidado e da partilha são muito mais antigas do que suas articulações ocidentais – ou até que as articulações ocidentais têm suas raízes nas articulações africanas. Outros pesquisadores parecem sugerir que o ubuntu não passa de uma cortina de fumaça autofabricada para as atrocidades cometidas por africanos no passado e no presente.
 Então, o ubuntu existe? Os africanos de fato seguem o ubuntu? Essa pergunta merece mais atenção do que é possível aqui. Entretanto, ao menos quatro observações parecem apropriadas. Em primeiro lugar, afirmar que o ubuntu existe não significa necessariamente sustentar que a compaixão que ele expressa prevalece ou prevaleceu sempre e em toda parte nas sociedades africanas. É claro que não prevaleceu nem prevalece. Contudo, depois que se conseguir olhar para além das manchetes populares, podem-se detectar os mais anônimos atos de compaixão entre os africanos. Para citar apenas um exemplo: a transição relativamente não violenta da sociedade sul-africana, que passou de um Estado totalitário para uma democracia multipartidária, não foi meramente o resultado das negociações transigentes de políticos. Ela foi também – e talvez primordialmente – o resultado do surgimento de um ethos de solidariedade, um compromisso com a coexistência pacífica entre sul-africanos comuns a despeito de suas diferenças. 
Em segundo lugar, embora talvez se duvide da existência do ubuntu como uma realidade plenamente vivida, dificilmente se pode negar a sua existência como um conceito, narrativa ou mito proeminente na África e certamente no sul da África. Chamar a ética ubuntu de “mito” não significa negar sua “verdade factual” – embora o termo seja muitas vezes usado neste sentido. A palavra “mito”, da forma como é usada aqui, descreve a ética ubuntu como uma história duradoura que – independentemente de sua “verdade factual” – inspira moralmente e revela o sentido (isto é, a relevância ou importância) da vida para as pessoas que participam dela, ou seja, que contribuem para contá-la e recontá-la. 

Em terceiro lugar (ou formulando as duas primeiras observações de forma diferente), antes de começar a negar ou afirmar a existência de algo, seria de bom alvitre se envolver em análises conceituais relevantes. O que exatamente está sendo negado ou reafirmado? Neste caso: o que exatamente se quer dizer com “ubuntu” ou “existe”? Finalmente, mesmo afirmando a existência do ubuntu, deve-se cuidar para não exagerar a influência normativa da ética africana tradicional nas comunidades africanas.

IHU On-Line – Qual a relação entre o ubuntu e a religião? Como a ética ubuntu pode ajudar a melhor desenvolver um verdadeiro diálogo inter-religioso?

Dirk Louw – O ubuntu é resilientemente religioso. Para um ocidental, a máxima “Uma pessoa é uma pessoa por meio de outras pessoas” não tem conotações religiosas óbvias. Ele provavelmente a interpretará apenas como um apelo geral para tratar as outras pessoas com respeito e decência.

Na tradição africana, entretanto, essa máxima tem um sentido profundamente religioso. A pessoa que devemos nos tornar “por meio de outras pessoas” é, em última análise, um ancestral. E, da mesma forma, essas “outras pessoas” incluem os ancestrais. Os ancestrais são a família extensa. Morrer é um último voltar para casa. Por conseguinte, não só os vivos devem compartilhar e cuidar uns dos outros, mas os vivos e os mortos dependem uns dos outros. 

A ética ubuntu ajuda a melhor desenvolver um diálogo inter-religioso verdadeiro condensando precondições vitais para esse diálogo. Essas precondições incluem um respeito pela religiosidade, individualidade, particularidade e historicidade ou natureza processual dos outros, assim como a valorização do consenso ou do acordo.

IHU On-Line – O que o ethos do ubuntu tem a ensinar às outras tradições, culturas e religiões não africanas? Que aspectos o ubuntu pode ajudar a aprimorar na ética ocidental?

Dirk Louw – Permita-me reformular ligeiramente essas perguntas: o ethos do ubuntu é unicamente africano? O ubuntu só faz parte da herança cultural africana? Seria etnocêntrico e absurdo sugerir que a ética ubuntu de cuidado e partilha é unicamente africana. Afinal de contas, os valores que o ubuntu procura promover também podem ser identificados em várias filosofias da Eurásia. Isso não significa negar a intensidade com que esses valores são expressos pelos africanos. Mas o mero fato de serem expressos intensamente por africanos não torna, por si só, esses valores exclusivamente africanos.

Entretanto, embora a compaixão, o calor humano, a compreensão, o cuidado, a partilha, o humanitarismo etc. sejam sublinhados por todas as principais cosmovisões, ideologias e religiões do mundo, eu gostaria, no entanto, de sugerir que o ubuntu atua como uma justificação distintivamente africana dessas formas de se relacionar com os outros. O conceito de ubuntu dá um sentido distintivamente africano e uma razão ou motivação distintivamente africanas para uma atitude amorosa para com o outro.

O que, então, o ethos do ubuntu tem a “ensinar” às tradições, culturas e religiões não africanas (incluindo as ocidentais)? Ele pode servir como um importante incentivo para reavaliar o “ser por meio de outros” em tradições, culturas e religiões não africanas, para reenfatizar os imperativos do cuidado e da partilha com os outros.

IHU On-Line – Qual a importância da comunidade e da família para a ética ubuntu?

Dirk Louw – É lógico que a comunidade/família é muito importante para a ética ubuntu. Afinal, o ubuntu significa “ser por meio de outros”. Mas o que exatamente “a comunidade/família” significa nesse contexto? Espera-se que uma ética da compaixão seja inclusiva, e não exclusiva, isto é, que ela inclua, e não exclua; que abra espaço, e não aliene. Mas quão inclusiva é a comunidade que o ubuntu descreve e prescreve? Às vezes, é difícil evitar a impressão de que o ubuntu não pretende ser exatamente uma “lei universal do amor”. Por exemplo: o sentido dos ritos de iniciação em sociedades africanas tradicionais parece implicar que o ubuntu funcionava (e ainda funciona) como uma ética vinculativa exclusivamente dentro dos limites de um clã específico. Essa compreensão exclusiva da comunidade que é o ubuntu combina com o óbvio potencial do ubuntu de desencadear conflitos étnicos. Ela (ou uma versão dela) também parece constituir a base da forma pela qual alguns negros sul-africanos tendem a ver o ubuntu como “a” diferença definitiva entre eles próprios como africanos e os não africanos (incluindo as chamadas “pessoas de cor”, asiáticos e brancos).

Ser membro da comunidade que é o ubuntu não parece, portanto, ser fácil para os não africanos ou, ao menos, para os africanos não negros. Os defensores do ubuntu parecem estar divididos no tocante a isso. Em termos gerais, todos eles enfatizam sua inclusividade. Entretanto, alguns proponentes do ubuntu dão a impressão de que, embora a comunidade que é o ubuntu transcenda os limites de um clã específico, ela só inclui aqueles cujas origens estão na África. Outros salientam que a comunidade que é o ubuntu também inclui “estranhos”, isto é, pessoas que não estão relacionadas por sangue, parentesco ou casamento. Por fim, para alguns autores, o conceito africano de comunidade, em seu mais pleno sentido, inclui toda a humanidade. Todos nós (isto é, os vivos e os mortos-vivos ou ancestrais) somos família – ninguém está excluído.

IHU On-Line – O senhor afirma que “a ênfase do ubuntu sobre o respeito pela particularidade é vital para a sobrevivência da África do Sul pós-apartheid”. Nesse sentido, que aspectos o ubuntu ajudou a forjar na sociedade e política sul-africanas? O que poderia ser ainda aprimorado?

Dirk Louw – O desafio da sociedade e da política da África do Sul é o desafio de afirmar a unidade ao mesmo tempo em que valoriza a diversidade, isto é, de forjar a unidade na diversidade e, igualmente, a diversidade na unidade. O ubuntu ajudou a forjar a unidade na diversidade por meio de sua ênfase na comunidade, expressada por palavras como simunye (“nós somos um”, isto é, “unidade é força”) e slogans como “um dano causado a um é um dano causado a todos”.
Ele também forjou a diversidade na unidade através de reavaliações criativas desse conceito, que acentuam a importância da alteridade no ethos do ubuntu. Essas reavaliações operam com conceitos de consenso ou de solidariedade que condizem com um regime democrático em comunidades políticas africanas. Talvez seja necessário trabalhar mais nesse sentido. Uma compreensão emancipatória da democracia ubuntu (democracia comunitária) poderá, por exemplo, exigir que os indivíduos recebam tanta oportunidade quanto possível para fazer mudanças e decidir por si mesmos como são governados.

IHU On-Line – O ubuntu também está relacionado ao respeito pela particularidade do outro e ao respeito pela individualidade. Assim, como o ubuntu vê a noção de “outro”? Em um mundo globalizado, o que o ubuntu pode oferecer para que se ultrapassem as diferenças culturais, políticas, econômicas e religiosas entre os povos?

Dirk Louw – É importante que ninguém seja um estranho em termos do suposto alcance da comunidade que é o ubuntu, dado o potencial do ubuntu para degenerar em um comunitarismo totalitário – isto é, dada a sua tendência de excluir, e não de incluir, como se esperaria de uma ética do cuidado e da partilha. Como uma ética excludente, um ubuntu desvirtuado representa a fortificação e a preservação de uma identidade dada por meio da limitação e da segregação. Nos termos dessa ética, o slogan simunye (“nós somos um”) sinaliza, ironicamente, a pureza de classe, cultura ou etnia; racismo e xenofobia – um fenômeno com o qual os (sul) africanos estão por demais familiarizados.
 O verdadeiro ubuntu se opõe a tendências totalitárias levando a pluralidade a sério. Ao mesmo tempo em que constitui o “ser pessoa” por meio de outras pessoas, ele valoriza o fato de que “outras pessoas” sejam assim chamadas, justamente porque, em última análise, nunca podemos “ficar inteiramente na pele delas” ou “enxergar completamente o mundo através de seus olhos”. Portanto, quando o “ubuntuísta” lê “solidariedade” e “consenso”, ele também lê “alteridade”, “autonomia” e “cooperação” (observe: não “cooptação”).

IHU On-Line – Como o ethos do ubuntu compreende a nossa relação com a natureza e a proteção das vidas não humanas?

Dirk Louw – O pensamento africano é holístico. Como tal, ele reconhece a íntima interconectividade e, mais precisamente, a interdependência de tudo. De acordo com o ethos do ubuntu, uma pessoa não só é uma pessoa por meio de outras pessoas (isto é, da comunidade em sentido abrangente: os demais seres humanos assim como os ancestrais), mas uma pessoa é uma pessoa por meio de todos os seres do universo, incluindo a natureza e os seres não humanos. Cuidar “do outro” (e, com isso, de si mesmo), portanto, também implica o cuidado para com a natureza (o meio ambiente) e os seres não humanos.

Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

Via Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Imagem: Afrokut


https://afrokut.com.br/blog/o-que-e-ubuntu/

O ubuntu é ‘liberdade indivisível’

Para me envolver com o Outro como sujeito, como indivíduo livre como eu mesmo, como outro ser humano, eu também tenho de me tornar sujeito, reconhecendo nossa sujeição comum à história, à contingência e ao destino, explica o teólogo norte-americano Charles Haws

A partir da ótica do ubuntu, a liberdade e a autonomia do indivíduo andam de mãos dadas com a responsabilidade pelos outros. É por isso que “ubuntu significa principalmente a interconexidade dos seres humanos”, ou seja, seres fundamentalmente livres em relação – uma liberdade indivisível.

Para o teólogo norte-americano Charles Graham Haws, essa relação entre sujeitos livres ocorre a partir do momento em que eles reconhecem sua “sujeição comum à história, à contingência e ao destino”. “Não existe um eu singular que preexista a nossas relações com os outros. Sempre existimos tanto no singular quanto no plural”, sintetiza.

Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-LineHaws também aborda as relações entre o ubuntu e o cristianismo. Para ele, “o ubuntu nos ajuda a compreender a noção de ‘comunidade cristã’, lembrando-nos de um tipo de kenosis na busca da justiça”, explica.

Além disso, o ubuntu nos ajuda também a compreender nossas relações com outros “sujeitos” não humanos. SegundoHaws, “para que o ubuntu não se associe ao mito da predominância da humanidade sobre a natureza ou l’animot (como escreve Derrida), ele não pode se limitar a dizer que o humano só pode se sentir plenamente humano em relação com a humanidade apenas”. 

Charles Graham Haws é formado em filosofia e ciências religiosas pelo Carson-Newman College, no Tennessee, dos EUA. Também é mestre em teologia pela McAfee School of Theology, da Mercer University, de Atlanta, nos EUA, com a dissertação Re/writing Tradition and the Tradition of Re/writing: The Crucified God as the Foundation and Criticism of Christian Theology. É membro da American Academy of Religion e da Society of Biblical Literature. Dentre outros, é autor do artigo Suffering, Hope, and Forgiveness: The Ubuntu Theology of Desmond Tutu, publicado no Scottish Journal of Theology.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as noções centrais para se compreender o ethos do ubuntu?

Charles Haws – Ubuntu significa principalmente a interconexidade dos seres humanos, que é uma determinação da compreensão dos seres humanos como seres fundamentalmente livres – livres, por exemplo, de qualquer limitação fora da pessoa individual. Como o traduz a proverbial expressão xhosa, ubuntu ungamntu ngabanye abantu, “a humanidade de cada indivíduo está idealmente expressa na relação com outros” ou, se me é permitido parafrasear Tutu, o ubuntu é “liberdade indivisível”. É justamente essa tensão que me intriga em relação ao ubuntu e que chama a minha atenção, algo que também Robert Orsi  comunica no último Harvard Divinity Bulletin. Para me envolver com o outro como sujeito, como um indivíduo livre como eu mesmo, como outros seres humanos, eu “também tenho de me tornar sujeito” através do “reconhecimento de nossa sujeição comum à história, à contingência e ao destino” . Eu tenho de reconhecer minha própria liberdade indivisível, de que eu sou quem eu sou em relação com outros. Envolvemo-nos com o mundo, continua Orsi, através das circunstâncias dentro das quais nos encontramos junto com eles – é assim que eu compreendo o ubuntu.
Também é importante reconhecer que o ubuntu é um termo sul-africano que representa um ethos africano polissêmico humanista e religioso. Variações do conceito proliferam nas línguas banto, que se multiplicam na África central, oriental e meridional. Elas geralmente expressam comunitariedade, respeito, dignidade e generosidade.

IHU On-Line – Qual a contribuição da teologia do reverendo Tutu  para a compreensão do ubuntu?

Charles Haws – Uma compreensão popular do ubuntu em evidência hoje deriva do uso do conceito como nome de um sistema operacional de código-fonte aberto desenvolvido pela Linux  . O sistema é movido por uma filosofia de software livre. De fato, como visa a difundir e a levar os benefícios do software para todas as partes do mundo, a filosofia ubuntu expressa pela Linux enfoca a liberdade, a liberdade de “baixar, rodar, copiar, distribuir, estudar, compartilhar, mudar e melhorar seu software para qualquer propósito, sem pagar taxas de licenciamento”; de “usar seu software na língua de sua escolha”; e de “usar softwares mesmo que trabalhem sob uma deficiência” .

A compreensão popular apresentada pelo software da Linux dificilmente constitui a concepção robusta que Tutu tem do ubuntu. Sua teologia se concentra não na liberdade de indivíduos, mas na interconexidade desses indivíduos ou, como eu disse acima, na “liberdade indivisível”. É isso que me atrai tanto no conceito, no seu potencial: o fato de compreender a liberdade em relação a certo tipo de unidade, um tipo de unidade cuja possibilidade não reside na mesmidade, mas na justiça. É isso que Tutu diz em Hope and Suffering (p. 23): “Para que haja unidade, ela deve se basear, em última análise, no valor da justiça”.
Agora, o ubuntu avança rumo à justiça, não à vingança; ele se dirige rumo à restauração, não à retaliação. A teologia de Tutu entrelaça o ubuntu no tecido da história cristã, afirmando que Deus criou a humanidade indissoluvelmente interconectada. A declaração do ubuntu é a declaração de uma esperança transformadora, uma esperança por reconciliação e sua concretização em meio à vida humana, que está fragmentada e repleta de injustiça.

IHU On-Line – Para o senhor, “a teologia do ubuntu de Tutu é desafiadora para a compreensão dominante da teologia ocidental”. Por quê?

Charles Haws – O ubuntu se distingue tanto do individualismo cartesiano quanto do coletivismo homogêneo da submissão à “vontade geral” de Rousseau . Em A democracia na América, De Tocqueville  compara o pai da filosofia moderna, Descartes , com o pai do protestantismo, Lutero , satirizando: “Quem não percebe que Lutero, Descartes e Voltaire  empregaram o mesmo método?”. Seu método comum de dependência de si mesmo, expresso em uma desconsideração geral pela comunidade e tradição, passou a ser uma parte central não só da ideologia americana, na qual De Tocqueville se concentrou, mas também da teologia ocidental. A esse individualismo do Ocidente, contrapõe-se a ideia da “vontade geral” de Rousseau: o indivíduo se submete à república aderindo ao contrato social, e o contrato social representa a conformação ou homogeneização dos interesses individuais em interesses coletivos. O indivíduo transfere seus direitos à comunidade para suprimir a anarquia e alcançar segurança da vida e da propriedade; seu propósito é formar uma sociedade a que ele se submeteria completamente.

De acordo com o ubuntu, nenhuma dessas opções combina satisfatoriamente a liberdade e a autonomia do indivíduo com sua responsabilidade pelos outros; nenhuma das opções o chama a assumir o fato de ser livre somente na medida em que está interconectado, e que sua liberdade é inseparável de sua busca por justiça. De fato, a compreensão teológica do ubuntu por parte de Tutu afirma que Deus criou a humanidade indissoluvelmente interconectada. Mas o individualismo prolifera em muitas teologias ocidentais, tanto acadêmicas quanto eclesiais: elas tendem a centralizar o indivíduo em termos de experiência religiosa – o indivíduo tem uma revelação pessoal, muitas vezes inexplicável – ou em termos de autoridade religiosa – o crente individual é responsável diante de Deus por sua aceitação ou rejeição do evangelho. O ubuntu enfoca não só a divisão de indivíduos, mas também a divisão de grupos, a confrontação de grupo contra grupo.
Tutu acreditava que esse era o caso da Igreja sul-africana branca na questão do apartheid, cuja cumplicidade se refletiu fortemente nas convicções teológicas da Igreja. Se a Igreja sul-africana branca não se considerava responsável por intervir, por condenar a sistemática segregação do apartheid, então ela não tinha qualquer percepção de sua conexidade com os negros.

IHU On-Line – A partir da ética do mundo, como é possível compreender a importância e o sentido da reconciliação e da justiça?

Charles Haws – Citando Derrida , poderíamos dizer que a afirmação da conexidade em meio ao apartheid por parte de Tutu – que os africânderes  não estavam livres dos povos xhosa ou zulu (ou vice-versa) – era efetivamente desobediência civil, “não desafio da lei, mas desobediência com relação a alguma disposição legislativa em nome de uma lei melhor ou superior” . A lei superior do ubuntu é a justiça em um sentido total e restaurador, não parcial ou retributivo. A “ética” ubuntu pressupõe a reconciliação na medida em que define justiça em termos de socialidade, de relação com o Outro; para alcançar a justiça, especialmente em contextos repletos de divisões, é necessário restaurar as relações entre o meu próprio “eu” e o meu próprio Outro. A justiça definida dessa maneira equivale à lei superior que o ubuntu quer continuamente nos trazer à lembrança.
Assim, em uma era de terrorismo globalizado, da exploração de sociedades abertas e da tentativa de afirmar (embora de maneiras calculadas) as regras da lei democrática e dos direitos humanos, o que o ubuntu busca? Como professor visitante do programa “Semester at Sea”, durante a primavera de 2007, Tutu discutiu o clima de medo existente nos EUA depois do 11 de setembro – uma terrível atmosfera de insegurança. Mas Tutu tinha a esperança de que os norte-americanos veriam sua segurança vinculada com a segurança de todos os demais. Lembro de assistir aos acontecimentos do dia 11 de setembro na televisão da sala de aula, estupefato e atônito, junto com todos os meus colegas, praticamente sem entender o que estava acontecendo. Qualquer que tenha sido a justificativa para começar a Guerra no Iraque, a presença norte-americana no Oriente Médio se concentra agora no “terrorismo”, em desmantelar suas raízes para que seus ramos não alcancem as praias norte-americanas de novo.
Não faço parte da geração de norte-americanos que seguiu Bush para o Iraque. Mas faço parte da geração de norte-americanos que precisam lidar com suas consequências, a herança do 11 de setembro e de um clima internacional de radicalização e antecipação. Se o ubuntu realmente é um conceito robusto, devo perguntar qual é seu papel nesse contexto. Como os “interesses nacionais” do “meu” país se relacionam com o ubuntu? Com que Outro os EUA estão relacionados e por quem são responsáveis? O que significaria se, olhando pela ótica do ubuntu, os EUA “não se sentissem ameaçados pelo fato de outros serem capazes e bons” e “se situassem em um todo maior e fossem diminuídos quando outros são humilhados ou diminuídos, quando outros são torturados ou oprimidos” ?

A autonomia luterano-cartesiana mencionada anteriormente impregna o sujeito humanista, pois, como “o ser humano é a medida de todas as coisas”, ele é o autor de todos os sentidos e tem o domínio sobre si mesmo e seu mundo. Heidegger  questiona essa tradição no Ocidente: “Pelo fato de estarmos falando contra o ‘humanismo’, as pessoas temem uma defesa do desumano e uma glorificação da brutalidade bárbara. Pois, o que é mais ‘lógico’ do que isto: quem nega o humanismo, não lhe resta senão afirmar a desumanidade? (…) Deveria estar mais claro agora que a oposição ao ‘humanismo’ de forma alguma implica na defesa do desumano, mas, ao contrário, abre outras perspectivas”. 

De fato, o apartheid seria a brutalidade desumana e bárbara a ser denunciada, e o ubuntu ofereceria um “humanismo” alternativo ao sabor do apartheid, de gosto amargo. O ubuntu criticaria o sujeito humanista como dominador e autônomo – no caso do apartheid sul-africano, o africânder como superior – definindo o “sujeito”, pelo contrário, como relacional… Junto com a obra de Lévinas , Derrida, Nancy  e outros, o que eu encontro no ubuntu é um tipo de movimento duplo que “não converte a relação anárquica e assimétrica com o Outro na visão sinótica da totalidade social, nem institui um novo princípio de justiça baseado no ideal comunitário dos valores morais compartilhados” . 

Voltando a Heidegger, uma das percepções mais importantes e temáticas centrais de Jean-Luc Nancy é que os indivíduos de forma alguma estão fundamentalmente separados um do outro, o que é muitíssimo semelhante à concepção de Heidegger a respeito de Mitsein [“ser-com”] em Ser e tempo (1929). Apesar da radical dissolução da comunidade na era pós-moderna, Nancy amplia sua perspicácia filosófica para nos lembrar de nossa existência singular-plural – que sempre-já existimos em relação uns com os outros. Não existe um eu singular que preexista a nossas relações com os outros; sempre existimos tanto no singular quanto no plural; seres singulares existem apenas em uma “socialidade” original. Essa é a ideia do conceito de compearance – que considero muito semelhante ao ubuntu em sua acepção mais básica – que aparece em The Inoperative Community (1991) de Nancy, no ensaio em Political Theory intitulado La Comparution/The Compearance (1992) e em Being Singular Plural. Ou, nas palavras de Derrida, já estamos envolvidos na “relação com o Outro antes de qualquer socius organizado” . E, no entanto, embora existamos em uma “socialidade” original, não devemos conceber “o ‘comum’ [commun]” como “o como-um [comme-un]” , pois a própria “respiração de toda ‘comunidade’”, explica Derrida, é “um certo desenredamento interruptor (…) do ‘vínculo social’” .

IHU On-Line – Qual o valor e o significado do ser humano e da vida humana para o ubuntu?

Charles Haws –

IHU On-Line – Como o ubuntu pode nos ajudar a entender a noção de “comunidade cristã”? Podemos dizer que Jesus também viveu o ethos do ubuntu?

Charles Haws – Como escreve o biógrafo Anthony Sampson , Mandela  foi educado com a noção africana da fraternidade humana, ou ubuntu, que descrevia uma qualidade de responsabilidade e compaixão mútuas.  Mandela contava histórias sobre uma pessoa que viajava por um país e parava em um vilarejo para pedir água e comida. O que levava os habitantes da aldeia a dar aquilo de que o estrangeiro necessitava era o ubuntu, diz ele. Esse certamente parece ser o ethos cultivado pelas histórias de Jesus em que ele anda pelo mundo greco-romano somente com uma túnica e sandálias. Certamente concordo que certos aspectos das histórias que os cristãos contam sobre Jesus ilustram o ubuntu, mas considero, em última análise, que o ubuntu transcende, inclusive ultrapassa, as fronteiras do cristianismo.
De fato, o ubuntu é tanto humanista quanto religioso (talvez sem afirmar uma dicotomia entre ambos os aspectos). Eu diria que ele cultiva uma religião humanista ou um humanismo religioso que milita contra sua própria colonização. Considerando que as comunidades tendem a neutralizar as diferenças, tratando todos os membros da mesma forma (por exemplo, o outro pertence à minha comunidade somente na medida em que é igual a mim), e a definir a si mesmas segundo uma lógica de oposição (por exemplo, excluindo o outro que não é como eu) – que são fatores muito atuantes no cristianismo –, o ubuntu nos devolve à interconexidade dos seres humanos sem a presunção de semelhança. 

Além disso, eu identificaria, com Nancy, “a essência do cristianismo como abertura: uma abertura do ‘eu’ e do ‘eu’ como abertura” . Assim, eu diria que o ubuntu nos ajuda a compreender a noção de “comunidade cristã” lembrando-nos de um tipo de kenosis  na busca da justiça que não espera para perguntar a quem você reza (ou não reza).

IHU On-Line – O senhor afirma que, à luz do ubuntu, “o perdão (…) deve se mostrar mais profundamente quando toda a esperança está perdida”. Em sociedades com forte violência e pobreza, como as africanas e as latino-americanas, qual a contribuição do ubuntu para a construção de uma sociedade mais justa?

Charles Haws – Escrevi em um artigo anterior que, para Tutu, “Deus, em Jesus Cristo, reconcilia a humanidade com o divino, afirmando a particularidade humana na particularidade de Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que também conecta a humanidade à bondade universal de Deus”.  Essa ideia de reconciliação e de perdão é essencial ao cristianismo. O perdão da humanidade por Deus em Cristo e a formação da comunidade sobre esse fundamento caracteriza o cristianismo por excelência. Ter fé na possibilidade da reconciliação e do perdão segue e dá esperança quando toda a esperança está perdida. Tutu compreende que o perdão não é decorrência de mérito, que a reconciliação procede da convicção ubuntu – a percepção da interconexidade.
 O perdão, mesmo em sociedades marcadas por violência e pobreza, efetiva-se, de acordo com o ubuntu, ao buscar a reconciliação, ao recusar perpetuar ciclos de sujeição à retaliação ou de responsabilização do tipo “toma lá, dá cá”. O ubuntu nos coloca estas perguntas: cremos que pertencemos a um todo maior e somos diminuídos quando outros são humilhados ou diminuídos, e, parafraseando Mandela, vamos perdoar, procurar a reconciliação – viver de acordo com o ubuntu – a fim de possibilitar que as comunidades ao nosso redor sejam capazes de melhorar?

IHU On-Line – A partir do ethos do ubuntu, qual a compreensão da nossa relação com a natureza e da proteção das vidas de seres não humanos?

Charles Haws – Se compreendemos corretamente que “a humanidade de cada indivíduo se expressa em termos ideais na relação com outros” ou que “eu sou eu mesmo somente em relação com outros”, temos de perguntar até que ponto este “eu” – assim como esse “outro” – está limitado ao gênero homo. De fato, as questões sobre o que constitui a “humanidade” e qual será o legado do “humanismo” se renovam, pois a própria ideia de uma “humanidade” compartilhada – algo que o ubuntu defenderia – sofre sob o peso da história e capenga em crise. Para que o ubuntu não se associe ao mito da predominância da humanidade sobre a natureza ou l’animot (como escreve Derrida), ele não pode se limitar a dizer que o humano só pode se sentir plenamente humano em relação com a humanidade apenas. Repetindo: o que é o “humano” e de que forma ele se difere do “animal”?

Na busca do ubuntu por cultivar comunidade, responsabilidade e justiça nos seres humanos, ele certamente se opõe à exploração, presumivelmente também à exploração da natureza. Mesmo assim, a concepção científica ocidental da natureza, que provém do humanismo renascentista e glorifica a capacidade humana de explorar e controlar a natureza, vendo a natureza agora como uma distribuição probabilística de energia com uma tendência à entropia, não facilita um senso de justiça mais do que humano. Talvez os recentes desastres ambientais e suas devastações façam essa questão voltar à mesa de discussão.

Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander

Via Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Imagem: Afrokut


O que é Ubuntu?