Racismo e modernidade a partir da ideia de realidade simulada: física quântica e psicologia negra Sakhu Sheti
Um ensaio sobre a compreensão do racismo a partir da ideia de realidade simulada
O que me motivou a escrever este singelo ensaio foi a ideia de iniciar a organização de um pensamento afrocentrado, decolonial, que me facilitasse avançar na compreensão e no exercício de uma corporeidade e um “existir no mundo” sadios. Este texto também é fruto da minha preocupação com as identidades precarizadas, relacionadas em grande parte com o afastamento e abandono dos arquétipos e das memórias tradicionais africanas e afrodiaspóricas, ancestrais, tão importantes para a nossa centralidade e a percepção de “ser africano no mundo”. Percebo a incorporação de “identidades precárias de consumo” e “proto arquétipos sintéticos”, “temperadas” pelos sistemas culturais de consumo ligadas aos valores da colonialidade, da modernidade, e entendo que a noção de realidade vai sendo forjada sem agência pessoal (das pessoas pretas). Daí, entendo os porquês dos irmãos e irmãs (e toda sociedade) estarem cada vez mais ansiosos, deprimidos, inseguros, dependentes das redes sociais digitais (construindo experiências efêmeras na maioria das vezes) para a construção das suas identidades e corporeidades (subjetividades precarizadas). Daí, entendo o consumo compulsivo do “lacre” enquanto um recurso do que se entende por “empoderamento”, para um certo “existir no mundo”, a partir de um tipo de lógica de consumo disfarçado de atitude progressista. Este texto é um primeiro ensaio, na tentativa de iniciar a organização dos meus pensamentos. Um convite, portanto, ao começo desta vadiagem de significados e sentidos. Neste ano de 2020, pretendo ensaiar e girar bastante, participar de muitas rodas de trocas de saberes com os nossos, e escrever um sem número destes singelos textos para, quem sabe, chegar a um lugar de proposição de construção de subjetividades afrocentradas, construtoras de agencias pessoais enegrecidas. Convido as irmãs e irmãos para esta gira, junto! Tremendo Asè!
A ideia de que vivemos uma espécie de vida simulada, como se estivéssemos em uma realidade virtual, portanto não real da forma como acreditamos ser, ficou bastante popular com o filme Matrix, lançado em 1999. Este filme constrói um contexto pós-apocalíptico onde a realidade que conhecemos é um ambiente virtual criado por um sistema robotizado autônomo, dotado de uma inteligência artificial hiper avançada. Os seres humanos estariam em uma condição forçada de hibernação induzida, em coma, com suas mentes manipuladas a ponto de suas consciências se localizarem em um mundo virtual, em uma realidade simulada, enquanto seus corpos, conectados a cabos e em cúpulas mergulhados em uma espécie de solução que os nutre e conserva, são utilizados como baterias fornecendo energia a todo este sistema.
No filme Matrix, o personagem Morfeu é simbolicamente muito significativo, é a liderança dos seres humanos que despertaram da realidade simulada pelo sistema de inteligência artificial. Morfeu é a liderança daqueles humanos que vivem os seus próprios corpos e sentem o mundo sem a mediação de um sistema operacional dizendo o que é olfato, o que é tato, o que é palato, o que é visão, e o que é audição. Mais do que ser apenas uma liderança, ele possui ferramentas e conhecimentos capazes de libertar as pessoas da Matrix, e é o que ele faz. Morfeu é uma espécie de griot, um mais velho, um sábio que orienta, mas também um líder político, um cientista, um filósofo e psicanalista, sempre focado no despertar dos seres humanos presos a realidade virtual simulada.
É genial o recorte do filme acima, quando Morfeu provoca Neo no exercício do seu processo de conscientização sobre as realidades virtual e real. “O que é real? Como define real? Se você se refere ao que pode sentir, cheirar, provar e ver, então real são apenas sinais elétricos interpretados pelo o seu cérebro.”
Minhas preocupações e motivações para a escrita deste ensaio traduzem, em síntese, uma análise preocupante da forma como se aprende a realidade em que vivemos, da realidade específica em que nós, pretas e pretos, existimos. Estou partindo do pressuposto que a realidade é essencialmente o paradigma pelo qual construímos toda a nossa experiência de sujeitos históricos, políticos, sociais, espirituais, e que a cultura é o sistema operacional que fornece as ferramentas e os recursos para a construção da nossa apreensão do mundo, para a nossa interpretação do que é a realidade, de quem somos, e do que significa para nós existir no mundo. Desta forma, a cultura — que nos forma e nos informa desde o nosso nascimento, também é a limitadora das possibilidades de compreensão do real, da realidade a nossa volta. Se a nossa realidade é construída pela cultura ocidental, que têm como paradigmas o racismo e a colonialidade, então estes são dispositivos que simulam a realidade na qual todos estamos imersos.
A nossa rotina diária, somada aos nossos hábitos e ao nosso consumo, sobretudo considerando o consumo a informação (internet – redes sociais) criam condições cada vez mais difíceis para uma tomada de consciência crítica sobre a nossa própria realidade. Quero provocá-la(o) a pensar sobre quantas vezes no dia, na semana, no mês, e no ano, você “parou” tudo o que estava fazendo e fez uma reflexão profunda sobre quem você é, sobre como você constrói a sua própria realidade. Quais os critérios, motivações, intenções, que dirigem as suas ações no dia a dia automatizado, no percurso da sua casa para o trabalho, durante os afazeres do seu emprego, nos seus estudos? O que te move? O que te motiva? Qual é o sentido que faz construir as nossas intenções e ações diárias?
Provavelmente, a grande maioria das pessoas que se permitirem a esta reflexão chegarão a conclusão de que os nossos hábitos e comportamentos rotineiros, automatizados, não permitem que reflitamos sobre ela própria. A nossa rotina é massacrante, via de regra não temos tempo para parar e refletir exercitando tomadas de consciência. Fazemos o que fazemos, porque é necessário fazê-lo. Estudar, trabalhar, produzir, performar, em qualquer área, esta é a lógica. Aprendemos, melhoramos, e produzimos, mas não para nós mesmos. Produzimos para uma empresa, para uma instituição, para uma agenda que não é a nossa. Porém, trabalhar faz parte da nossa agenda pessoal, porque o trabalho nos permite ganhar dinheiro, e dinheiro é recurso. Até ai, tudo bem! Mas avançando um pouco mais no raciocínio, quando ganhamos nosso salário, ou no nosso dinheiro, o que ocorre? Pagamos dívidas, gastamos uma boa parte consumindo coisas que não necessariamente precisamos, investimos outra parte para consumir mais depois, e etc. E o ciclo do trabalho continua, até o próximo recebimento, e a vida segue. Qual é o significado da sua vida, da nossa vida? Trabalhar para consumir, consumir para se sentir vivo, principalmente para mostrar para as pessoas que existe, que esta vivo, e novamente trabalhar para continuar consumindo, e existindo para si e para as outras pessoas, num ciclo de vida onde consumir significa “existir no mundo”.
Se isso fizer algum sentido para você, sugiro resgatarmos a ideia de Matrix. Se o “existir no mundo” só faz sentido a partir da experiência do consumo, então poderíamos dizer que aquela condição forçada de hibernação induzida do filme é uma metáfora fiel da nossa existência. A cultura do consumo cria a realidade onde existimos. Se precisamos consumir para existir no mundo — redes sociais virtuais, fitness, shopping centers, restaurantes, aplicativos de relacionamento, aplicativos para todo fim, identidades sociais, comportamentos e tendências — então a nossa existência é artificial, e nossa percepção da realidade é uma percepção criada pelas industrias que medeiam a nossa relação com o mundo e nos faz consumidores de produtos e serviços. Nós consumimos realidades, não construímos as nossas realidades. Me parece que este é o significado de existir neste mundo Matrix que vivemos.
Por José Evaristo S. Netto – Educador, dedicado aos estudos sobre corporeidade, cultura, identidades, sociocognição, racismo e colonialidade. Mestre em Educação Física.