O que é Teologia Negra?

Durante toda a minha adolescência na igreja e todo o período de graduação em teologia, nunca tinha ouvido ou lido qualquer coisa a respeito deste assunto. Este tema se tornou familiar somente anos depois. Como é possível alguém que estudou quatro anos em um curso teológico não tenha tido nenhum contato com este assunto?

Na faculdade de teologia, tínhamos o “cânon” dos textos e autores considerados ortodoxos, conservadores e aqueles que não faziam parte
daquele cânon não eram dignos de qualquer menção. Qualquer teologia destoante daquela tida como a “boa teologia”, a “teologia sadia” e “ortodoxa” era intensamente rechaçada e lançada no lixão herético. A Teologia Negra era uma dessas senhoras irreverentes, indigna de participar do conselho da “ortodoxia conservadora”.

Vamos entender o contexto desse movimento. Afinal, nenhuma construção de ideias se faz no vácuo, todo pensamento é tecido na concretude de um chão contextual. Com esse movimento não foi diferente.

Breve panorama histórico

A Teologia Negra surgiu como uma resposta ao racismo e à segregação racial nos Estados Unidos, na década de 60. De maneira mais específica, a Teologia Negra foi uma resposta, ou melhor, um grito dos cristãos negros americanos contra a dominação física, econômica, política, psicológica, religiosa, cultural, social da classe branca.

Essa dominação era tamanha que nem mesmo as igrejas, que deveriam ser quarteis de preparação do povo de Deus para o combate a essa malignidade, se levantavam para se opor a essa engenharia maligna. Mas, pior que isso, não apenas mantinham o silêncio do consentimento, mas muitas igrejas apoiavam o racismo e a segregação, e como se já não fosse grave o bastante, legitimavam isso usando a Bíblia.

Esse mal estava tão entranhado no intestino da sociedade americana que, para muitos negros, aquele status quo se tornou natural e assimilado como algo cultural. Luiz André Ramos comenta que era “um cenário de indiferença, tanto das igrejas negras quanto brancas, e do silêncio dos teólogos brancos”. Os afro-americanos eram vistos como coisas, propriedades, “uma raça inferior inapta a manter relações e políticas com a raça branca”.

Três elementos foram cruciais para o surgimento da Teologia Negra. O primeiro foi o movimento dos Direitos Civis (nas décadas de 50 e 60). Esse foi um movimento popular conduzido pelos afro-americanos, com o objetivo de conseguirem os plenos direitos como cidadãos, desafi ando muitas das leis que permitiam a discriminação de maneira explícita. Esse movimento foi liderado pelo famoso pastor Martin Luther King Jr.

O segundo elemento está relacionado a diversas publicações, especialmente a publicação do livro “Religião Negra”, de Joseph Washington (1964). Nesse livro, o autor argumenta a favor de uma religião negra distinta do Protestantismo branco e todas outras expressões do Cristianismo. Ele disse ainda no livro que as igrejas negras daquele período não eram igrejas genuínas. A Teologia Negra foi também uma resposta às críticas de Joseph Washington.

O terceiro elemento foi, o movimento “Poder Negro”. Esse grupo resultou da insatisfação e decepção de muitos negros apoiadores do movimento dos Direitos Civis liderado pelo Rev. Martin Luther King Jr. Eles abandonaram seu compromisso com a não violência e tomaram o controle político e econômico das suas comunidades.

Por ISAAC LESSA


Este texto é parte do artigo “FUNDAMENTOS BÍBLICO-TEOLÓGICOS DA TEOLOGIA NEGRA“, de Isaac Lessa, presente na REVISTA DE EDUCAÇÃO CRISTÃ PARA ADULTOS com o tema “POR UMA FÉ CONTRA O RACISMO“. A revista com a temática especial “racismo”, foi organizada pelo Rev. Robson de Oliveira, que conta com a contribuição de várias autoras e autores, um material didático para pastoral de combate ao racismo.


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Como a igreja pode, de fato, se inserir em uma luta antirracista

Neste cenário difícil e desigual, que é efeito dos longos anos de escravização no Brasil, o que podemos fazer, enquanto igreja, para uma sociedade que não seja racista?

Angela Davis, socióloga norte-americana e militante do movimento social negro nos EUA, dizia que: “Não basta não ser racista, tem que ser antirracista”.

Neste ponto, nossos irmãos estudiosos da Teologia Negra têm muito a nos ensinar, como, por exemplo, o Lutero Negro (sec. XIX), Agostinho José Pereira. Homem negro alforriado da escravização que se converteu ao protestantismo e fundou uma igreja cujo o objetivo era comprar a alforria de mulheres negras e homens negros, e ensiná-los a ler a bíblia. Ele alcançou mais de 300 pessoas com esse lindo projeto! 

É exatamente isso que a Teologia Negra, que será apresentada no decorrer desta revista, representa. Ela faz uma leitura da Bíblia na perspectiva do povo oprimido. O Lutero Negro entendeu que essas pessoas precisavam de Jesus, e precisavam também de liberdade. Entendeu que precisavam saber mais de Deus, e precisavam aprender a ler para terem uma vida digna.

Temos, também, o Rev. Martin Luther King que usou o seu púlpito para denunciar o racismo nos EUA. Ou Rosa Parks, mulher batista que, com uma atitude, marcou a luta antirracista nos EUA (ela não se levantou de um assento reservado para “brancos” em um ônibus). Recentemente, faleceu o Rev. James Cone que juntou a espiritualidade e a ação – ambas baseadas na Bíblia – para combater o racismo! Ou Soujourner Truth (A Peregrina da Verdade), ex-escravizada que viajou pelos EUA falando de Jesus e lutando contra o racismo, além de ser a primeira mulher negra nos EUA a vencer um processo judicial contra um senhor de escravos.

Por SIMONY DOS ANJOS


Este texto é parte do artigo “RACISMO ESTRUTURAL: UM PROBLEMA DE TODOS E TODAS“, de Simony dos Anjos, presente na REVISTA DE EDUCAÇÃO CRISTÃ PARA ADULTOS com o tema “POR UMA FÉ CONTRA O RACISMO“. A revista com a temática especial “racismo”, foi organizada pelo Rev. Robson de Oliveira, que conta com a contribuição de várias autoras e autores, um material didático para pastoral de combate ao racismo.


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O Movimento Negro Evangélico: história, desafios e perspectivas

Hernani Francisco da Silva, no livro “O Movimento Negro Evangélico: um mover do Espírito Santo” relata que o panorama histórico do Movimento Negro Evangélico surgiu no Brasil em 1841, por iniciativa do recifense Agostinho José Pereira, defensor da liberdade física e espiritual do povo negro escravizado, considerado fundador da primeira igreja negra.

Segundo o autor, a partir 1970, inspirado na Teologia Negra, o Movimento Negro Evangélico contemporâneo começa a se formar, com a finalidade de trabalhar a questão racial nas igrejas evangélicas, buscando o resgate da identidade e consciência do negro sob uma visão cristã, enquanto indivíduo, em oposição à equivocada interpretação teológica das escrituras.

Silva (2011) revela que a partir de 2000, o movimento começa a criar forma através do surgimento de novas organizações em diversos estados brasileiros, voltadas para a temática de combate às discriminações raciais dentro das igrejas evangélicas, tais como:

Cenacora (Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao
Racismo), Grupo de Reflexão Teológica, Teólogos Negros, AGAR (Sociedade Teológica de Mulheres Negras), Coral de Resistência de Negros Evangélicos, Ministério de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, o Grupo de Combate ao Racismo da Igreja Batista (Centenário, Duque de Caxias, Rio de Janeiro). Fórum das Mulheres Cristãs Negras de São Paulo, Projeto Palmares da Igreja Batista – SPE, Sociedade Cultural Missões Quilombo, Negros Evangélicos do Rio de Janeiro, Ministério Azusa, GEVANAB – Grupo Evangélico Afro Brasileiro, Negros Evangélicos de Londrina e Movimento Negro Evangélico – RS.

De acordo com o Movimento Negro Evangélico, o “racismo teológico” disseminado pelos movimentos pentecostais e neopentecostais tem como objetivo principal justificar a ideia de que o branco é superior ao negro. Esse tipo de “teologia” nasceu no sul dos Estados Unidos, em meados do século XVIII, através das pregações e práticas desenvolvidas por missionários norte-americanos. Seu ideal era justificar a escravidão e as punições aplicadas àqueles que fugissem às normas de conduta da época. As sugestões variavam de açoites para os negros que erguessem a mão contra os brancos cristãos, à proibição de alfabetização e pregação do evangelho.

No mesmo sentido, Branchini (2013) afirma que mesmo após um século de abolição no Brasil, a inserção do negro no meio evangélico tem base na desigualdade sócio cultural. O negro evangélico enfrenta preconceitos que o impedem de desfrutar da mesma igualdade e liberdade dos fiéis brancos, assimilando um preconceito disfarçado. Apesar disso, a palavra racismo ainda é tabu que provoca reações diversas dentro das igrejas.

Segundo o autor o negro evangélico silencia o racismo sofrido por vergonha ou constrangimento. A religião como aspecto histórico é uma questão contraditória na formação individual e coletiva do negro, atuando como libertadora, ou como pode ocorrer no seguimento evangélico, uma força opressora no desapego de sua identidade africana, visto que a teologia neopentecostal desqualifica o viés espiritual da cultura negra.

Para Pacheco (2010) o racismo pentecostal tem bases nas ideias fundamentalistas. Entende-se por fundamentalismo qualquer movimento de doutrina conservadora, que exija obediência rigorosa e integral a um conjunto de princípios e essa norma única a ser seguida pode tornar-se ferramenta geradora de discriminações.

Segundo a autora, o fundamentalismo neopentecostal é radical, fazendo o crente colocar-se em sacrifício da causa e adotando uma postura servil, obediente e resignada, muito parecida com o comportamento dos negros durante o período de escravidão.

Contra os fundamentos e práticas adotadas pelas igrejas neopentecostais, o Movimento Negro Evangélico interpreta de forma diversa os fundamentos referentes à Maldição Hereditária, Teoria da Prosperidade e Batalha Espiritual (exorcismo e possessões demoníacas).

Em relação à Maldição Hereditária, o MNE combate a historicidade de que a escravidão defendida pelos missionários era plenamente justificada em nome de Deus, decorrente da maldição imposta aos filhos de Cam. Pelo Gênesis 9.18-27, Cam, filho de Noé, foi amaldiçoado a ser o mais baixo dos servos. Cam, palavra de origem hebraica significa queimado, preto; daí o porquê do filho de Noé ser considerado, por desventura, o precursor da raça negra, justificando a escravidão de seus descendentes, ou seja, africanos e negros em geral.

Essa interpretação das Escrituras, tendenciosa na visão do MNE, era tida como forma de conduzir os negros à redenção, através da subserviência incondicional e, principalmente, através do total rompimento com seu passado histórico (costumes, hábitos, cultura e tradições), como forma de livrar-se da maldição hereditária. No mesmo sentido, Oliveira (2004) relata que vários teólogos
pentecostais defendem o pensamento que estigma Caim após matar Abel, era a maldição caracterizada pela cor negra.

De acordo com Silva (2011) as igrejas neopentecostais estão alicerçadas numa teologia fortemente racista, citando como exemplo a Teologia da Prosperidade, na qual a ideia de que crentes abençoados são ricos e os crentes pobres são amaldiçoados. Através da Teoria da Prosperidade, abençoado é aquele que acumula e ostenta bens materiais aqui na Terra. Em opinião divergente, o MNE cita que em decorrência da escravidão e proibição de acesso à educação, os negros viram-se excluídos das possibilidades de ascensão social, em razão da desigualdade e preconceito racial, difundido e assimilado no senso comum da sociedade.

Para o Movimento Negro Evangélico, o maior perigo de perseguição ao negro está centrado na Batalha Espiritual preconizada pelos movimentos neopentecostais, na medida em que a cor preta é tida como negativa e os enviados de Deus, retratados por anjos brancos que devem combater o mal representado pelos anjos decaídos, negros, conforme citado em “Este Mundo Tenebroso”, de Frank E. Peretti.

Hernani Silva (2011) acrescenta que o Movimento Negro Evangélico tem empreendido esforços na construção de uma agenda comum de estratégias para os diversos grupos espalhados pelo país, mas encontra obstáculos entre seus militantes devido aos diferentes fundamentos das denominações que integram. O autor cita como exemplo o 1º Encontro Nacional de Negras e Negros Cristãos, realizado em 2007. Nesse evento ocorreu uma divisão entre seus participantes porque um grupo defendia o pan-africanismo e o afrocentrismo, outro defendia a negritude cristã e a brasilidade.

O autor destaca que o MNE mostra-se extremamente preocupado com as perseguições sofridas por práticas racistas e intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana, inclusive com agressões físicas, depredação de imagens do panteão africano e locais de culto.

Para dar corpo à prática da Batalha Espiritual, segundo denúncias do Movimento Negro Evangélico, a Igreja Universal do Reino de Deus criou o grupo de Gladiadores do Altar, formado por jovens preparados ao sistema militar, inclusive marcham, batem continência e gritam que estão “prontos para a batalha”, durante um culto realizado em Fortaleza, no início de 2015. Em sua defesa, a Igreja Universal do Reino de Deus afirma que esses grupos, vinculados à Força Jovem Universal, têm como objetivo a formação de novos pastores para a pregação da palavra de Deus e do Evangelho a toda criatura, conforme matéria publicada na revista eletrônica Carta Capital, em 6/4/2015, sob o título “Exército” da Universal preocupa religiões afro-brasileiras.

O Movimento Negro Evangélico, ao contrário da Igreja Universal do Reino de Deus, vê nesses grupos, verdadeiras milícias em defesa de um fundamentalismo religioso que ameaça não só as liberdades individuais, como também opção sexual e manifestações religiosas de matriz africana.

Uma das vitórias obtidas pelo Movimento Negro, de acordo com Silva (2011) está no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado dia 21 de janeiro, instituído em 2007 pela Lei Federal 11.635, em homenagem a Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, de Salvador. A religiosa do Candomblé enfartou após ver seu rosto estampado na primeira página da Folha Universal, jornal evangélico, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Humberto Ribeiro DuarteOs negros do “Saravá, meu Pai” para o “Amém, Jesus”: abordagem sobre questões de fé e identidade.

Artigo extraído da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Sociologia.

Corpos negros e a morte de Cristo

Estamos no tempo da quaresma, período que antecedem a festa ápice do cristianismo, onde os cristãos concentram a sua atenção sobre a morte e ressurreição de Jesus Cristo. Uma morte na cruz, Cristo poderia ter morrido de inúmeras maneiras, mas a cruz era uma humilhante exposição pública: escarnecido, espancado e morto desumanamente. Sim, a morte é a parte mais importante da Cruz, mas na morte encontramos a finalidade da cruz – os negros e negras tem experimentado o mesmo destino que o Cristo crucificado.

Para entender o que a cruz significa para nós negros cristãos, precisamos dar uma boa olhada na historia dos negros e negras desta nação, do sofrimento e da humilhação da população negra durante a escravidão, que prossegui vivo nas estruturas contemporâneas da nossa sociedade.

Hoje os cristãos não conseguem ver o evangelho da cruz de Jesus revelado através de corpos negros vítimas de um processo genocida instalado pela política de segurança pública. Onde a Paixão de Cristo se revela hoje? Quem são os corpos negros crucificado hoje?

Os corpos de negros assassinados, baleados, esquartejados todos os dias, a juventude negra é uma das principais vítimas, mas não são as únicas. O genocídio não está só relacionado à morte por bala, tem outras questões que dizem respeito a esse processo. Pode-se matar uma pessoa sem uma arma. Mas sempre que a sociedade trata o povo como se eles não têm direitos ou dignidade ou valor. Sempre que são negados empregos, saúde, habitação e as necessidades básicas da vida, essas pessoas estão sendo mortas. Há muitas maneiras de se matar um povo. Sempre que um povo clama a ser reconhecido como seres humanos e são ignorados pela sociedade, eles estão sendo mortos.

O teólogo negro James H. Cone, no seu ultimo livro “he Cross and the Lynching Tree” ( A Cruz e a Árvore do linchamento) apresenta muito bem essa questão. A traçar a relação da cruz cristã e linchamento dos negros na sociedade americana. Cone faz um paralelo com a história de linchamento dos negros nos Estados Unidos com a crucificação de Cristo:

“A cruz e a árvore do linchamento: ambos eram espetáculos públicos, normalmente reservada para criminosos perigosos, escravos rebeldes, que se rebelava contra o Estado romano e falsamente acusado de militantes negros que eram muitas vezes chamados de bestas negras” e “Monstros em forma humana” pela a sua audácia de desafiar a supremacia branca nos Estados Unidos. Qualquer teologia genuína e qualquer pregação autêntica deve ser medido em relação ao teste do escândalo da cruz e a árvore do linchamento”.

Para Cone a crucificação era um linchamento do primeiro século:

“A cruz pode resgatar a árvore de linchamento e, assim, conceder-corpos negros linchados um sentido escatológico para a sua existência final”.

“A cruz também pode resgatar linchadores brancos e seus descendentes, também, mas não sem custo profundo, não sem a revelação da ira e a justiça de Deus, que executa o julgamento divino, com a demanda para o arrependimento e reparação, como pressuposto da divina misericórdia e perdão. A maioria dos brancos quer misericórdia e perdão, mas não justiça e reparação, pois eles querem a reconciliação sem a libertação, a ressurreição sem a cruz”.

Cone diz que quando nos deparamos com o Cristo crucificado hoje, ele é um negro humilhado, um corpo negro linchado:

“Cristo é negro não porque a Teologia Negra diz. Cristo torna-se negro através da solidariedade amorosa de Deus com corpos negros linchados e julgamento divino contra as forças demoníacas da supremacia branca. Como um corpo negro nu balançando em uma árvore de linchamento, a cruz de Cristo foi “um caso absolutamente ofensivo”, “obscena, no sentido original da palavra”, “submeter a vítima à indignidade máxima”.

Neste sentido, os negros são as figuras de Cristo, não porque queremos ser, mas porque nós não tivemos nenhuma escolha sobre ser trazido como escravo para a América, assim como Jesus não tinha escolha em seu caminho para o Calvário. Jesus não queria morrer na cruz, e os negros não queriam passar pelo holocausto da escravidão. Mas as forças malignas do Estado romano e o colonizador e o evangelizador quiseram.

Hernani Francisco da Silva – Afrokut

O Lutero Negro

A primeira Igreja Protestante Brasileira foi Negra

A primeira tentativa de estabelecer uma igreja protestante no Brasil foi em 1555, que pretendia dar refúgio aos protestantes calvinistas franceses, perseguidos pela inquisição européia. A segunda tentativa foi em 1630, quando os Holandeses tomaram Recife, Olinda e parte do Nordeste, registrando uma presença do protestantismo. Após a expulsão dos holandeses, em 1654, o Brasil fechou as suas portas aos protestantes por mais de 150 anos. Com a chegada da família real e um “jeitinho português” abriu-se uma brecha no monopólio católico, permitindo a presença de outra religião que não fosse a católica: os protestantes estrangeiros não podiam pregar nem abrir uma igreja com formato de templo, mais podia se reunir e cultuar, também podia comercializar a bíblia e até distribui-la. Foi através dessa brecha que um negro, alfaiate, letrado, chamado Agostinho Jose Pereira, conheceu a bíblia e descobriu outra forma de cristianismo. Agostinho teve contato com protestantes estrangeiros que passaram pelo Recife. Por revelação divina, em sonho, torna-se protestante.

Em 1841, Agostinho Jose Pereira surge pregando pelas ruas de Recife. Nasce a primeira igreja protestante brasileira, a Igreja do Divino Mestre, com seus mais de 300 seguidores, negros e negras, todos livres e libertos. Agostinho os ensina a ler e escrever, em uma época que os proprietários de terras eram analfabetos. No Brasil de 1841, fora das colônias estrangeiras, não havia protestantismo algum. O Negro Agostinho foi o primeiro pregador brasileiro e fundou a Igreja do Divino Mestre, primeira igreja protestante do Brasil. Só depois em 1858 o reverendo Roberto Kalley fundou a Igreja Fluminense, episodio considerado pela historia oficial data de fundação da primeira igreja protestante do Brasil, depois vieram outras Igrejas como a presbiteriana (1859), a batista (1871), a anglicana (1889).

Igreja do Divino Mestre, era mística e teologicamente negra. A Igreja fundada por Agostinho fala de libertação bíblica, esperança de uma vida livre da escravidão, o povo negro como a primeira criação humana de Deus, e um Cristo não branco. As idéias de Agostinho eram avançadas e perigosa para a época onde a igreja católica era a religião oficial do Estado, e não admitia nenhuma outra crença a não ser a igreja de Roma. Agostinho ao ler a Bíblia e pregar uma outra forma de cristianismo, que era proibido, criticava o catolicismo com suas estátuas e santos intermediários, ele tornou-se alvo de perseguição da Igreja Católica, mais não foi só a igreja que se sentiu ameaçada com as pregações de Agostinho, as autoridades e a Imprensa de Recife se alvoroçaram com as idéias do Pastor Negro que falava da libertação dos escravos, citava a revolução do Haiti e insurreição escrava nos modos dos negros muçulmanos na Bahia, acontecimentos que deixava os escravistas brasileiros em arrepios. Ele era mais que subversivo, era negro em plena escravidão negra, era protestante em um Estado católico, e pregava a libertação dos negros em uma sociedade que sufocava qualquer movimento que ousasse tal feito. O negro Agostinho era um perigo para o Brasil da época.

A historia de Agostinho deixa muita perguntas sem resposta, pouco sabemos da sua vida, de onde veio, pra onde foi. O que sabemos é que ele era um negro letrado, e que fundou a primeira igreja protestante brasileira, essa igreja era negra. Sabemos também que na sua trajetória política conheceu Sabino o líder da revolta baiana conhecida como a sabinada, também participou da confederação do Equador. Um fato marcante na vida de Agostinho foi a sua prisão em 1846, graças a esse acontecimento foi registrado um pouco da sua vida documentado na imprensa de Recife e em inquérito policial, que hoje são fontes de pesquisas resgatando o legado desse grande homem. A imprensa discutia até onde ele era um rebelde, um fanático religioso, foi acusado de vigarista e enganador da boa fé de negros e pobres. Agostinho tinha 47 anos de idade quando foi preso. O chefe de policia da província suspeitava que a “seita” liderada por Agostinho tinha o objetivo de preparar uma insurreição de escravos. A policia cercou a casa onde a Igreja do Divino Mestre se reunia, prenderam Agostinho e seus fiéis. Com a prisão de Agostinho a sua igreja se expandiu pela cidade, e a perseguição policial se estende aos seus membros. No bairro de Boa Vista, a policia entra na casa de um de seus lideres, o interroga e confisca a sua bíblia. A policia invade a casa de Agostinho e apreende textos intitulados como o ABC, textos esses que criaram um grande alvoroço por conter citações da revolução dos escravos do Haiti. A perseguições prosseguiram aos membros da Igreja do Divino Mestre que registrara 16 pessoas detidas. O seu advogado de defesa foi Borges da Fonseca, um liberal de Pernambuco.

Não sabemos o que aconteceu com o pastor negro Agostinho Jose Pereira depois da sua prisão. Um jornal da época noticiara que Agostinho fora solto pelo hábeas corpos do advogado Borges da Fonseca e que quando passava nas ruas acompanhado pelos seus discípulos a multidão gritava e assoviava. Ao passar por Pernambuco em 1852 o naturalista inglês Charles B. Mansfield referiu-se ao Divino Mestre como um “Lutero Negro”, que não sabia onde ele estava, mas tinha ouvido que tinha sido condenado a 3 anos de prisão ou fora deportado, não sabia o certo. O Lutero Negro, assim como se referiu o inglês Mansfield, deixou um legado para a igreja e sociedade brasileira. Para o Movimento Negro Evangélico deixou uma bela herança histórica: “a primeira Igreja Protestante do Brasil foi negra”.

CONTINUA:

https://afrokut.com.br/blog/o-divino-mestre/

Por Hernani Francisco da Silva – Do Afrokut

Citações e Referências:

Léonard, Émile-G. O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. 2ª ed. Rio de Janeiro: JUERP e ASTE, 1981.

Marcus JM de Carvalho – Rumores e rebeliões: estratégias de resistência escrava no Recife, 1817-1848 – 49 – Tempo – Revista do Departamento de Historia da UFF – Nº 6 Vol. 3 – Dez. 1998.

Marcus JM de Carvalho “FÁCIL É SEREM SUJEITOS, DE QUEM JÁ FORAM
SENHORES”: O ABC DO DIVINO MESTRE Afro-Ásia, número 031 Universidade Federal da Bahia, Brasil pp. 327-334, 2004.