O caso da Nossa Igreja Brasileira

A denominação supramencionada está localizada, atualmente, na rua da Carioca, no centro da cidade do Rio de Janeiro. O casal, Marco Davi de Oliveira e Nilza Valéria Zacarias são principais articuladores dessa igreja. O pastor Marco Davi é natural de Teresópolis/RJ, formou-se em teologia, história e ciências da religião, foi um dos fundadores do Movimento Negro Evangélico (MNE) em 2003. Publicou o livro A religião mais negra do Brasil: por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo? É o idealizador do projeto Discipulado, Justiça e Reconciliação e atualmente apresenta o programa de rádio, Papo de CrenteNilza Valéria é formada em jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Recentemente (08 de março de 2023) recebeu, pelo Senado Federal, o Diploma Bertha Lutz por sua militância a favor do Estado democrático de direito e dos direitos humanos. É fundadora e coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito (FEED), e cofundadora do MNE. Atualmente coordena o projeto de comunicação, Papo de Crente (programa radiofônico homônimo e Revista de Estudo Bíblico).

O primeiro culto da Nossa Igreja Brasileira ocorreu no dia 3 de março de 2018 em um espaço cedido pela Igreja Batista Memorial da Tijuca, localizada no bairro da Lapa, próximo ao centro da cidade. No entanto, Rosenilton Oliveira (2021) afirma que o pastor Marco Davi de Oliveira fundou o Ministério Nossa Igreja Brasileira no ano de 2014. Antes da sede atual, a igreja já realizou cultos dominicais na Casa Porto, um estabelecimento gastronômico boêmio localizado no bairro da Saúde, local conhecido como Pequena África. Nas fotos divulgadas nas redes sociais é possível ver os fiéis próximo aos engradados de cerveja, mesa de totó, arcade (ou fliperama) etc. A igreja também teve alguns encontros no Kuzinha Nem, a cozinha vegana solidária da Casa Nem (espaço de
acolhimento LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social, fundada pela militante Indeanarae Siqueira) e também nas dependências do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN).

A igreja tem como principal proposta a valorização da cultura brasileira (brasilidade) em suas múltiplas manifestações culturais. Algo que se expressa inclusive no nome e no logotipo da denominação, que faz referência as cores da bandeira do Brasil (principalmente verde e amarelo), aos pontos turísticos do Rio de Janeiro (Cristo redentor e Pão de Açúcar) e o pandeiro, um dos instrumentos de percussão mais populares do universo do samba.

A proposta de valorização da brasilidade pode ser percebida também em seu cancioneiro constituído por inúmeros ritmos musicais pertencentes as culturas populares afro-brasileira e indígena, como o sertanejo, o xote, o forró, o samba, o maxixe, a bossa nova, o frevo, o jongo entre outros.

Algumas das canções encontrada no cancioneiro trata diretamente da questão racial, como é caso de “Sorriso negro”, em que diz:

Um sorriso negro
Um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego
Fica sem sossego
Negro é a raiz de liberdade
Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio é luto
Negro é a solução
Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade

Percebe-se que a canção “Sorriso Negro” exalta positivamente a negritude, repetindo inúmeras vezes a palavra, “negro”. Em conversa com o pastor Marco Davi de Oliveira, este afirmou que muitas das canções foram compostas por ele mesmo, e isso decorreria da dificuldade de encontrar canções evangélicas que trata da questão racial e social. A maioria das canções evangélicas, de acordo com Marco Davi, seriam voltadas quase que exclusivamente para a dimensão espiritual e individual em detrimento das questões sociais e coletivas.

Um dos esforços da denominação para valorizar a “brasilidade” são as rodas de samba (com músicas seculares) organizadas no espaço da igreja. Em um dos encontros que participei, o pastor Marco Davi no púlpito afirmou que a roda de samba enquanto expressão cultural existe “para a glória de Deus” e que “ali está a graça de Deus”.

Os elementos da cultura afro-brasileira estão presentes na liturgia da igreja, em visita a uma das reuniões, comemorou-se uma festa junina, com decoração característica das festas de rua, com bandeirinhas, balão, vestimentas, paleta cores, comidas típicas (caldo de feijão, paçoca, milho cozido, bolo etc.), ritmo musical, dança e uma reflexão sobre a importância dessa tradição enquanto expressão da cultura popular brasileira, que na percepção de suas lideranças, é uma expressão, sobretudo, afro-indígena. Em certa ocasião desse encontro, o
pastor Marco Davi afirmou que a denominação tem uma “proposta decolonial”, reforçando o argumento de que o cristianismo é diverso e por isso a cultura popular deve ser valorizada, no sentido político da inversão, ou “subversão”.

Entre os argumentos defendidos pelos agentes do protestantismo negro de esquerda é a ideia de que o próprio cristianismo em si é uma religião de matriz africana ou afro-asiática. Parte-se do princípio de que o cristianismo possui uma forte herança cultural africana e que inúmeros personagens bíblicos são de origem africana. Aqui temos algo assemelhado com as propostas de “reafricanização dos espíritos” do movimento estético, filosófico e literário afrofranco-caribenho, Negritude e os pensadores africanos, Amílcar Cabral e Mario Pinto de Andrade, que também deram uma importante contribuição a esse conceito.

Ainda no início de sua formação a NIB organizava encontros semanais com grupos menores denominado de Pequenos Quilombos. Em uma publicação de 2019 na rede social Facebook definia esses grupos de “veículos de formação bíblica, teológica, cultural e política”. O grupo das Mulheres chamava-se Madalenas, o dos homens, Zé João. Esse é um exemplo de como a NIB realiza um conjunto de esforços voltados para questão étnico-racial. Preocupação essa que envolve identidade visual, seleção dos ritmos musicais, manuseio de um conjunto de terminologias específicas, detalhes nos aspectos litúrgicos, seleção e interpretação de passagens bíblicas entre outras.

Os símbolos mobilizados, resgatados, construídos e ressignificados dentro dessa dinâmica, objetivam fortalecer a ideia de uma igreja pautada na experiência negra. E neste sentido a denominação pertenceria ao movimento negro e ao movimento negro evangélico. A NIB se propõe a fazer de forma sistemática um resgate e uma valorização afirmativa e positiva das múltiplas expressões culturais negro africana e indígena. Apresentado, dessa forma, uma narrativa teológica e política contra hegemônica, na sociedade e no campo evangélico.

Rosenilton Oliveira (2021) afirma que no movimento negro evangélico a dinâmica de (re)africanização por meio de um deslocamento do “eurocentrismo” (“deseuropeizá-lo”) e uma recusa do candomblé e outras religiões de matriz africana e enquanto expressão única da africanidade (“descandombletizá-lo”). A NIB também realiza esse duplo movimento a seu modo enquanto defende o cristianismo como uma expressão religiosa afro-asiática, mas sem fazer oposição as outras religiões de matriz africana.

Wallace Cabral Ribeiro

Texto retirado do trabalho de pesquisa de  Wallace Cabral Ribeiro. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF). Realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Protestantismo negro de esquerda – Trabalho completo – Wallace Cabral Ribeiro – 48º Encontro Anual da ANPOCS – 2024

Protestantismo negro de esquerda

 

No final do ano de 2022, o cantor e pastor evangélico Kleber Lucas, em entrevista ao podcast do cantor Caetano Veloso, do canal Mídia Ninja, afirmou que o racismo existente na sociedade brasileira também se expressa nas canções que compõem o hinário das igrejas evangélicas.

Tem um hino que diz: “alvo mais que a neve”, se você aceitar Jesus, você vai ficar branco como a neve. Isso é cantado por brancos e negros  com lágrimas, porque tem uma melodia lindíssima. No final da santa ceia– Você toma santa ceia, eucaristia e canta “alvo mais que a neve”,  porque tem uma melodia, porque o discurso, às vezes nefasto, um discurso de dominação, ele está embalado. Ele tem uma entrega muito boa, de uma melodia linda, de uma memória familiar, de uma memória comunitária, todo mundo cantando de olhinhos fechados, de mãos levantadas ou ajoelhados ou um coro cantando “alvo mais… branco como a neve, branco como a neve”. Porque o sangue de Jesus me torna branco. As ideias de embranquecimento estão lá no hino.” (Kleber Lucas)12

O refrão da referida canção afirma: “Alvo mais que a neve, Alvo mais que a neve, Sim, nesse sangue lavado, Mais alvo que a neve serei”1

Essa reflexão de Kleber Lucas provocou uma reação generalizada entre evangélicos mais conservadores. Influencers e lideranças eclesiásticas se engajaram em uma campanha para negar a existência do racismo nas
comunidades de fé evangélica. Nesse contexto, a fala de Kleber Lucas foi alvo de ridicularização por meio de “memes” e discursos em tom mais bélico e agressivo, descredibilizando suas reflexões teológicas e políticas acerca da dimensão do racismo.

A preocupação com a linguagem racista nas canções evangélicas não é nova, de acordo com Rosenilton Oliveira (2021) essa demanda já se apresentava na criação da Pastoral Nacional de Combate ao Racismo, da Igreja Metodista, na década de 1980. O caso que envolve Kleber Lucas é nosso ponto de partida para refletir sobre a atuação dos evangélicos negros de esquerda engajados na luta política e teológica contra o racismo, certa vez que o próprio Kleber Lucas participa ativamente desse movimento político e teológico/religioso.

O protestantismo negro de esquerda é uma experiência minoritária tanto no interior do evangelicalismo como no espectro da esquerda política. No entanto, os agentes individuais e coletivos são muito atuantes e produzem de maneira sistemática ações diversificadas relacionadas a luta antirracista, como a realização de debates, produção de conteúdo para as redes sociais, lançamento de cartilhas e livros, participação em manifestações de rua, formação de grupos de estudos, cultos, eventos culturais etc.

Entre os objetivos específicos dessas ações identificamos, por exemplo, a demanda em demonstrar que a origem do cristianismo está muito mais vinculada ao continente africano do que o europeu. E parte desses esforços se constitui em expor a presença da África e de personagens negros na bíblia e pela defesa de um Jesus negro (ou de um Jesus não branco). Também verificamos a valorização da ancestralidade pelo resgate de figuras do passado, denunciar a intolerância contra religiões de matriz africana (racismo religioso), apontar o silenciamento da questão racial nas igrejas, afirmar a prática do racismo como pecado, defender as cotas raciais nas universidades e concursos públicos, exaltar positivamente as expressões culturais afro-brasileiras, expor a violência perpetrada pelo Estado contra a comunidade negra (necropolítica), entre outras.

Verificou-se a existência de um campo semântico próprio do protestantismo negro de esquerda, com expressões do tipo “Jesus preto de Nazaré”, “contra o pecado do racismo”, “a bíblia é um livro negro”, “Jesus é preto” entre outras. Ideias, frases, jargões e terminologias que são expressas verbalmente, em estampas de camisetas, na produção teórica escrita, no conteúdo das redes sociais etc.

Os agentes sociais buscam afirmar a negritude e a africanidade de múltiplas formas, uma delas é no próprio corpo físico, por meio de uma estética corporal, conformando uma “estilística” ou “estética da existência” (FOUCAULT, 2004). O corpo é uma espécie de espaço político de afirmação positiva da negritude e da africanidade, isso acontece por meio do uso de dreadlocks (principalmente entre homens); cabelos crespos e cacheados volumosos (principalmente entre mulheres); vestimentas coloridas com estampas africanas; adereços como colares, anéis, brincos, pulseiras, gargantilhas, lenços, turbantes.

Há também as tatuagens com referências ao território continental africano e suas múltiplas expressões culturais, como o sankofa (símbolo adinkra das culturas akan na África ocidental). Em um dos encontros que participei na Nossa Igreja Brasileira, o pastor Marco Davi de Oliveira vestia uma camiseta de cor preta com
a frase estampada com fonte branca, “Sou seguidor do negro da periferia, Jesus de Nazaré”. Muitos dos agentes sociais observados possuem curso superior em diferentes áreas, como teologia, ciências sociais, jornalismo, história, arquitetura, medicina, pedagogia etc. Alguns articulam militância política com pesquisa acadêmica, Rosenilton Silva de Oliveira (2021) já havia percebido em suas pesquisas que parte da atuação política dos agentes sociais do movimento negro evangélico (MNE) é mediada pela pesquisa cientifica.

Percebeu-se que a maioria pertence ou já pertenceu a denominações históricas e missionárias, poucos são ou já foram de igrejas pentecostais. As três igrejas observadas nessa pesquisa que tem um engajamento político antirracista, são denominações de orientação batista, a saber, Nossa Igreja Brasileira, Comunidade Batista de São Gonçalo e Igreja Batista do Caminho. Percebe-se que muitos evangélicos não estão vinculados a nenhuma denominação, como é o caso de um dos entrevistados nessa pesquisa. Os evangélicos que se encontram nessa situação são denominados nesse campo religioso de “desigrejados”. De acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2010 existem mais de 9 milhões de evangélicos sem pertencer a uma denominação, o que corresponde à 4,8% da população brasileira. No Censo este seguimento está agrupado sob a categoria de “não determinados”.

Os evangélicos negros de esquerda produzem intensamente teologias antirracistas, que compõem a denominada teologia negra. As grandes influências teóricas são os autores da teologia negra estadunidense, da teologia da
libertação, da teologia da missão integral, os pensadores anticoloniais, pós-coloniais e decoloniais, da psicanálise, dos estudos culturais, do pensamento social brasileiro, entre outros. A maioria dos pensadores e pensadoras mobilizadas nessas reflexões políticas e teológicas são sobretudo negros, como James Cone, Martin Luther King Jr, Desmond Tutu, Neusa Santos Souza, Lélia Gonzalez, Frantz Fanon, Stuart Hall, Sueli Carneiro, Abdias do Nascimento etc.

De acordo com a pesquisa realizada pelo teólogo Hernani Francisco da Silva (2011), o movimento evangélico negro, tem longa história no Brasil. Teria se iniciado com Agostinho José Pereira, por volta de 1841 quando fundou a Igreja do Divino Mestre na cidade de Recife em Pernambuco. Esse pastor enfatizava em suas pregações passagens bíblicas que condenavam a escravidão e exaltava a liberdade, de acordo com o historiador Marcus Carvalho, “A própria Bíblia tornava-se um instrumento de resistência e não de conformismo” (1998, s,p). O líder também mencionava com certa frequência a revolução haitiana do final do século XVIII (Revolução de São Domingos), alfabetizava pessoas negras escravizadas e libertas. Sua igreja, de acordo com os poucos registros da época, aglutinava cerca e 300 pessoas, sendo majoritariamente negras.

O movimento religioso foi desarticulado por conta de uma série de perseguições, prisões, apreensão de material e interrogatórios de suas principais lideranças. As autoridades policiais enxergavam o Divino Mestre como um sujeito potencialmente perigoso por desconfiarem que havia participado da revolta da sabinada na Bahia, alguns anos anteriores. Não se sabe o que de fato ocorreu com o líder religioso após esse episódio.

A figura de Agostinho José Pereira é mencionada com certa frequência nos debates teológicos e políticos promovidos pelos agentes observados nesta pesquisa. A percepção que os agentes sociais têm desse líder religioso é que seu agenciamento teria afrontado os diversos tabus estabelecidos na época, como a religião, a questão de raça, de classe e educação. Aqui vale ressaltar que os atores sociais em sua atuação e produção de conhecimento reivindicam a existência de uma tradição evangélica que combate a opressão racial.

A publicação do livro Movimento Negro Evangélico: Um Mover do Espírito Santo é um esforço por parte do teólogo Francisco Hernani da Silva de resgatar a memória de personalidades e experiências coletivas que se encontram a margem da denominada “história oficial”. Esse é exatamente o caso do já mencionado Agostinho José Pereira (“o Lutero Negro”) e a Igreja do Divino Mestre, mas também da Mãe Maria (“a Jovem Maria da nação Nagô”), João Cândido (“o marinheiro negro”), Solano Trindade (“o poeta negro”), João Pedro Teixeira (“da Liga Camponesa de Sapé”), por exemplo. A produção teórica, os discursos e as práticas sociais promovida pelos diferentes agentes do protestantismo negro desafia as teorias, as práticas e os discursos hegemônicos ao mesmo tempo que tensionam o debate sobre a questão racial na sociedade e no protestantismo brasileiro. São essas questões que planejamos verificar no caso da denominação, Nossa Igreja Brasileira – Igreja Batista.

Wallace Cabral Ribeiro

Texto retirado do trabalho de pesquisa de  Wallace Cabral Ribeiro. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF). Realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Protestantismo negro de esquerda – Trabalho completo – Wallace Cabral Ribeiro – 48º Encontro Anual da ANPOCS – 2024

CONTRA O PECADO DO RACISMO”: PROTESTANTISMO NEGRO DE
ESQUERDA NA LUTA ANTIRRACISTA