O termo pardo e a Parditude no Brasil

No Brasil, o termo “pardo” tem uma história complexa e multifacetada, refletindo a diversidade racial e cultural do país. Desde o século XVI, início da colonização portuguesa, a palavra foi usada para descrever pessoas mestiças, especialmente aquelas de origem indígena e africana. Na famosa carta de Pero Vaz de Caminha em que o Brasil foi descrito pela primeira vez pelos portugueses, os nativos americanos eram chamados de “pardo”: “Pardo, nu, sem roupa”.

Diogo de Vasconcelos, um conhecido historiador mineiro, menciona a história de Andresa de Castilhos. Segundo as informações do século XVIII, Andresa de Castilhos foi assim descrita:

Declaro que Andresa de Castilhos, mulher parda … foi liberta … é descendente dos nativos da terra … Declaro que Andresa de Castilhos é filha de um homem branco e de uma mulher nativa”.

A historiadora Maria Leônia Chaves de Resende explica ainda que o vocábulo pardo era empregado para denominar pessoas de ascendência indígena ou mesmo os próprios indígenas: um Manoel, filho natural de Ana carijó, foi batizado como pardo; na Campanha vários indígenas foram classificados como pardos; os indígenas João Ferreira, Joana Rodriges e Andreza Pedrosa, por exemplo, foram denominados pardos forros; um Damaso se autodenominou pardo forro do natural da terra; etc.

Ainda, segundo Maria Leônia Chaves de Resende, o crescimento da população parda no Brasil abrange os descendentes de indígenas e não apenas os de ascendência africana:

o crescimento do segmento pardo não se deu apenas com os descendentes de africanos, mas também com os descendentes de indígenas, em especial os carijós e bastardos, incluídos na condição de pardo”.

Com o tempo, o termo passou a incluir também misturas com europeus e asiáticos, tornando-se uma categoria ampla e muitas vezes ambígua. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), pardo é uma classificação ampla que abrange brasileiros multirraciais. O termo “pardo” foi usado pela primeira vez em um censo brasileiro em 1872. O censo seguinte, em 1890, substituiu a palavra pardo por mestiço (aquele de origem mista). Os censos de 1900 e 1920 não perguntaram sobre raça, argumentando que “as respostas escondem em grande parte a verdade”.

A partir de 1950, “pardo” foi incorporado como uma categoria oficial no Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atualmente, o IBGE define “pardo” como alguém que se identifica com uma mistura de duas ou mais opções de cor ou “raça”, incluindo branca, preta e indígena. Segundo o Censo de 2022, 45,3% da população brasileira se identifica como parda, tornando este o maior grupo racial do país.

A “Parditude” é um conceito que busca valorizar e reconhecer a identidade e a cultura dos pardos no Brasil. Este termo destaca a importância de entender as experiências e desafios únicos enfrentados por pessoas mestiças, que muitas vezes vivem em um “meio termo” racial. A Parditude enfatiza a diversidade dentro da categoria parda, reconhecendo as diferentes origens ancestrais e experiências de vida que compõem esse grupo.

Os pardos enfrentam desafios significativos em áreas como mercado de trabalho, educação, saúde e justiça. Apesar de serem a maioria da população, eles ainda estão sub-representados em cargos de liderança e poder, e frequentemente experimentam discriminação e desigualdade. A Parditude, portanto, não só celebra a diversidade cultural e racial dos pardos, mas também busca combater o racismo e promover a inclusão social.

Portanto, o termo “pardo” e o conceito de Parditude são fundamentais para compreender a complexidade das relações étnico-raciais no Brasil. Eles nos lembram da importância de valorizar a diversidade e de lutar por uma sociedade mais justa, igualitária e com valores da AfroHumanitude, onde propõe que todos os seres humanos pertencem a uma única espécie, o Homo sapiens, e que as diferenças entre nós são superficiais e não devem ser usadas para justificar discriminação ou hierarquias sociais.

Por Hernani Francisco da Silva – Do Afrokut

A importância de reconhecer a Parditude

A Parditude é um conceito que busca reconhecer e valorizar a identidade e a cultura das pessoas pardas ou mestiças no Brasil. Em um país marcado pela miscigenação, os pardos são a maioria dos brasileiros, a parditude destaca as experiências únicas e os desafios enfrentados por aqueles que possuem uma herança racial mista, geralmente envolvendo ancestrais indígenas, africanos e europeus. Assim, a Parditude é uma forma de afirmar a identidade mestiça, reconhecendo a riqueza cultural e a diversidade que essa mistura representa. Ela se posiciona contra o racismo e o apagamento histórico que muitas vezes invisibiliza as pessoas pardas, forçando-as a se enquadrarem em categorias raciais binárias.

As pessoas pardas, no Brasil, frequentemente enfrentam uma série de desafios, incluindo: a sensação de não pertencimento a um grupo racial específico, o que pode levar a um sentimento de exclusão social e apagamento de ancestralidade; a falta de reconhecimento e representação nas políticas públicas e na sociedade em geral, o que pode resultar em consequências psicológicas graves;  o constante questionamento sobre a própria “raça” e a pressão para se autodeclarar de uma forma específica.

A importância de reconhecer a  Parditude é essencial para entender a complexidade das relações étnico-raciais no Brasil. Ela permite que as pessoas pardas afirmem sua identidade e lutem por seus direitos, contribuindo para uma sociedade mais inclusiva e justa.  A Parditude, assim como a Negritude, é uma forma de resistência e afirmação cultural, mostrando que a diversidade é uma força e não uma fraqueza. Ao valorizar a Parditude, celebramos a riqueza da diversidade e promovemos a igualdade racial. Isso inclui a aceitação e o orgulho de suas origens múltiplas, bem como a luta contra o racismo e o apagamento histórico que muitas vezes enfrentam. Além disso, é uma forma de afirmar a cidadania e os direitos dos pardos na sociedade brasileira. Nessa perspectiva, é fundamental compreender que a Parditude não é separada da NegritudeIndigenitude e da Branquitude, pois compõe a essência da Afro-humanitude que mostra que a humanidade é uma só, mas com múltiplas expressões.

Lembrando que a  AfroHumanitude propõe que todos os seres humanos pertencem a uma única espécie, o Homo sapiens, e que as diferenças entre nós são superficiais e não devem ser usadas para justificar discriminação ou hierarquias sociais. A ciência moderna, especialmente a genética, tem mostrado que a variação genética dentro de qualquer grupo racial é maior do que a variação entre grupos diferentes. Isso significa que as categorias raciais tradicionais não têm uma base biológica sólida.

Entretanto, as categorias raciais binárias, como “branco” e “negro”, foram historicamente usadas para classificar e hierarquizar pessoas com base em características físicas visíveis, como a cor da pele. Essas classificações foram amplamente utilizadas durante o colonialismo e a escravidão para justificar a exploração e a opressão de pessoas. No entanto, essas categorias são simplificações que não capturam a complexidade da diversidade humana. A aceitação da AfroHumanitude e a rejeição das categorias raciais binárias são passos importantes para reconhecer e valorizar a Parditude.

No entanto, é crucial continuar a refletir e agir sobre como a AfroHumanitude pode desempenhar um papel vital na valorização da Parditude e na promoção de uma sociedade mais inclusiva e equitativa, respeitando a diversidade e promovendo a inclusão.

Por Hernani Francisco da Silva – Do Afrokut

 

Morre a Bailarina Michaela Mabinty DePrince

Descanse no poder: Bailarina Michaela Mabinty DePrince

Com dor no coração, compartilhamos a perda da bailarina estrela Michaela Mabinty DePrince, cuja arte tocou inúmeros corações e cujo espírito inspirou muitos, deixando uma marca indelével no mundo do ballet, e além.

A vida dela foi definida pela graça, propósito e força. Seu compromisso inabalável com sua arte, seus esforços humanitários e sua coragem em superar desafios inimagináveis irão nos inspirar para sempre. Ela permaneceu como um farol de esperança para muitos, mostrando que não importa os obstáculos, a beleza e a grandeza podem surgir dos lugares mais escuros.

Embora o tempo dela connosco tenha sido demasiado breve, o seu brilho e legado continuarão a brilhar nos corações de todos os que foram tocados pela sua história, nas gerações futuras. Amor e orações vão para a família escolhida, amigos e aqueles que a amavam.

Sinceramente,
Equipe MDP

Michaela Mabinty DePrince fez história como a mais jovem dançarina principal no Teatro de Dança do Harlem, antes de se mudar para a Holanda para dançar com o Ballet Nacional Holandês. Sua carreira progrediu no Boston Ballet após seu retorno aos Estados Unidos, onde ela continuou cativando o público com suas performances.

Através de suas memórias, Taking Flight: From War Orphan to Star Bailarina, DePrince compartilhou sua inspiradora jornada de resiliência e triunfo, que foi traduzida para vários idiomas e publicada em doze países. Seu livro de acompanhamento, Ballet Dreams, solidificou ainda mais seu impacto, estendendo sua influência muito além do palco.

DePrince também era um humanitário dedicado, defendendo as crianças afetadas por conflitos e violência. Ela serviu como Embaixadora da War Child Holland e organizou a sua gala, Dare to Dream, dedicada a promover o bem-estar e a saúde mental das crianças que vivem em zonas de guerra.

Afrokut

Imagem: Wikkie Hermkens

O fenômeno do centésimo macaco

A história original do centésimo macaco é um fascinante estudo de comportamento animal que ocorreu na década de 1950. Cientistas japoneses observavam macacos na ilha de Kojima e notaram um comportamento intrigante. Uma jovem fêmea, chamada Imo, começou a lavar batatas-doces na água do mar para remover a areia antes de comê-las. Este comportamento foi gradualmente adotado por outros macacos na ilha, inicialmente por seus parentes próximos e, em seguida, por outros jovens macacos, que também ensinaram aos mais velhos, invertendo o padrão usual de aprendizado. O que tornou a história particularmente interessante foi a alegação de que, uma vez que um número crítico de macacos – o “centésimo macaco” – adotou esse comportamento de lavar as batatas, ele se espalhou repentinamente e inexplicavelmente para colônias de macacos em outras ilhas e no continente, apesar de não haver contato físico direto entre eles.

Essa história foi posteriormente popularizada por Lyall Watson em seu livro “Lifetide“, onde ele sugeriu que havia ocorrido um tipo de transmissão telepática de informações. O fenômeno do centésimo macaco sugere que, quando um número crítico de indivíduos em uma população adota um novo comportamento, esse conhecimento é misteriosamente transferido para membros distantes da espécie. Essa ideia foi abraçada por Rupert Sheldrake, um biólogo e bioquímico inglês, que a usou como base para desenvolver sua teoria dos campos mórficos. Sheldrake, conhecido por suas ideias inovadoras e muitas vezes controversas, propõe que existe um campo que conecta membros de uma mesma espécie em um nível que transcende o espaço e o tempo. Segundo ele, os campos mórficos são estruturas que moldam não apenas o comportamento, mas também a forma e a evolução dos sistemas vivos. Esses campos seriam responsáveis pela “ressonância mórfica“, um processo pelo qual informações são compartilhadas entre indivíduos, levando a mudanças comportamentais espontâneas e simultâneas em toda a espécie.

A teoria de Sheldrake desafia a visão tradicional da biologia, que enfatiza a transmissão de informações geneticamente e através do aprendizado social. Ele sugere que há um aspecto mais sutil e profundo na maneira como os seres vivos se comunicam e evoluem. A ideia de que há um tipo de “memória coletiva” que pode influenciar indivíduos separados por grandes distâncias é fascinante e tem implicações profundas para a compreensão da consciência e da aprendizagem.  A história do centésimo macaco continua a ser um exemplo clássico citado em discussões sobre consciência coletiva e aprendizado social, apesar de sua interpretação mística ter sido desacreditada por parte da comunidade científica.

Do Afrokut

 

 

O que é um Campo Mórfico?

A Teoria dos Campos Mórficos, proposta pelo biólogo e bioquímico Rupert Sheldrake, explora a auto-organização presente em todas as coisas. Esses campos mórficos são meios pelos quais informações circulam, conectando e organizando sistemas no mundo físico. Por exemplo, o fenômeno do centésimo macaco ilustra como um comportamento adotado por um número suficiente de indivíduos pode influenciar todo um sistema. Assim, esses campos modelam formas e comportamentos, transcendendo tempo e espaço .

A ressonância mórfica de Sheldrake postula que “a memória é inerente à natureza” e que “os sistemas naturais herdam uma memória coletiva de todas as coisas anteriores de sua espécie”. Sheldrake propõe que ela também é responsável por “interconexões do tipo telepatia entre organismos“. Sua defesa da ideia oferece explicações idiossincráticas de assuntos padrão em biologia, como desenvolvimento , herança e memória.

Segue um resumo dos Campos Mórficos, segundo Rupert Sheldrake.

As propriedades hipotéticas dos campos mórficos em todos os níveis de complexidade podem ser resumidas da seguinte forma:

1. Eles são conjuntos auto-organizados.

2. Eles têm um aspecto espacial e temporal e organizam padrões espaço-temporais de atividade vibratória ou rítmica.

3. Eles atraem os sistemas sob sua influência em direção a formas e padrões característicos de atividade, cujo surgimento eles organizam e cuja integridade eles mantêm. Os fins ou objetivos para os quais os campos mórficos atraem os sistemas sob sua influência são chamados de atratores. Os caminhos pelos quais os sistemas geralmente alcançam esses atratores são chamados de creodos.

4. Eles inter-relacionam e coordenam as unidades mórficas ou hólons que estão dentro deles, que por sua vez são totalidades organizadas por campos mórficos. Campos mórficos contêm outros campos mórficos dentro deles em uma hierarquia aninhada ou holarquia.

5. São estruturas de probabilidade, e sua atividade organizadora é probabilística.

6. Eles contêm uma memória interna dada pela autorressonância com o próprio passado de uma unidade mórfica e pela ressonância mórfica com todos os sistemas similares anteriores. Essa memória é cumulativa. Quanto mais frequentemente determinados padrões de atividade são repetidos, mais habituais eles tendem a se tornar.

As ideias de Sheldrake foram discutidas em jornais acadêmicos e livros. Seu trabalho também recebeu cobertura popular por meio de jornais, rádio, televisão e palestras. Em resumo, os campos mórficos são invisíveis, mas desempenham um papel fundamental na nossa realidade.

Do Afrokut

5 práticas para uma Educação Antirracista com Equidade

Para uma Educação Antirracista acontecer o trabalho fora e dentro da sala de aula precisa ser contínuo e baseado na EQUIDADE. Mas o que é equidade e como basear os momentos de aprendizagem a partir desse viés?

Relembrando o conceito, equidade significa “dar às pessoas o que elas precisam para que todos tenham acesso às mesmas oportunidades.” Ou seja, é sobre reconhecer que os alunos não são todos iguais e que é preciso ajustar esse “desequilíbrio”, adaptando às necessidades à realidade de cada um.

Pensando em levar essa discussão tão importante adiante, a Nova Escola preparou uma lista com 5 conteúdos que propõem atividades para trazer mais equidade ao ambiente escolar. Confira!

  1. Feira de Ciências antirracista: inovações e saberes negros e indígenas [Clique Aqui]

  2. Etnomatemática para valorizar culturas e diversificar as aulas [Clique Aqui]

  3. Abolição da Escravatura: baixe jogo para usar na sala de aula[Clique Aqui]

  4. 10 brincadeiras africanas e indígenas para explorar na escola[Clique Aqui]

  5. Como incluir culturas afro-brasileiras e indígenas em diferentes componentes curriculares[Clique Aqui]

Curtiu? Inclua as atividades no seus planos de aula e colabore com uma Educação Antirracista e com mais equidade!

Fonte:  Nova Escola

Colonização, quilombos: modos e significações

O livro de Antônio Bispo faz parte da coleção de obras publicadas pelo INCT de Inclusão e assinadas por mestres e mestras das comunidades tradicionais brasileiras – indígenas, afro-brasileiras, e das culturas populares. Líder quilombola pertencente a uma comunidade rural do Piauí, Bispo foi professor da disciplina Encontro de Saberes na UnB em 2012 e 2013 e pertence à rede de mestres docentes do Instituto.

Seu livro traz uma perspectiva nova no campo de ensaios de interpretação do Brasil: a visão dos quilombos, comunidades de negros que se rebelaram contra a violência do regime escravo e se tornaram historicamente um símbolo maior da luta dos povos do Novo Mundo contra a escravidão e o racismo e pela afirmação de comunidades auto-sustentáveis.

Com uma narrativa concisa, Bispo constrói um argumento denso sobre a história das resistências, rebeliões, insurgências e experiências concretas de construção de comunidades livres e auto-sustentáveis, como Palmares, Canudos, Caldeirões e Pau de Colher, projetando seus ideais para os dias de hoje. Desenvolvendo um conceito amplo de colonização, o autor contesta o atual modelo ecocida e desumano de desenvolvimento econômico ao qual o Brasil, junto com os demais países da América Latina, se rendeu completamente.

Em contraposição a esse projeto de sociedade autodestrutiva, passa a propor uma alternativa civilizatória baseada na biointeração, comum aos quilombos, aos terreiros das religiões de matriz africana e à capoeira. É com essa síntese de pensamento crítico e libertário, e uma disponibilidade de mestre ao ensinar um saber profundo e essencial para a vida (incluindo a alegria, transparente no seu ensaio) que Bispo vem somar a sua escrita quilombista à galeria da intelectualidade brasileira atual.

José Jorge de Carvalho

Nego Bispo: o pensador quilombola

Antônio Bispo dos Santos (1959-2023) nasceu no Vale do Rio Berlengas, Piauí. Formou-se pelos ensinamentos de mestras e mestres de ofício do quilombo Saco-Curtume, município de São João do Piauí; completou o ensino fundamental, tornando-se o primeiro de sua família a ter acesso à alfabetização. Nego Bispo, como também é conhecido, é autor de artigos, poemas e dos livros Quilombos, modos e significados (2007) e Colonização, Quilombos: modos e significações (2015). Como liderança quilombola, atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Destaca-se por sua atuação política e militância, que estão fortemente relacionadas à sua formação quilombola, evidenciada por uma cosmovisão a partir da qual os povos constroem, em defesa de seus territórios tradicionais, símbolos, significações e modos de vida.

O pensamento de Bispo constrói-se a partir da experiência e concepções das comunidades quilombolas e dos movimentos sociais de luta pela terra. Dessa perspectiva, desenvolveu algumas proposições epistemológicas a partir dos saberes tradicionais dos povos “afro-pindorâmicos”, segundo a sua expressão para referir-se aos descendentes africanos e indígenas/pindorâmicos em substituição às designações empregadas pelo colonizador. Seu pensamento vem despertando debates dentro e fora da academia, sobretudo a partir do conceito de “contra-colonização”, que postula uma relação entre regimes sociopolíticos e cosmológicos. O autor compreende a colonização como um processo etnocêntrico que busca substituir uma cultura pela outra, por meio de práticas de invasão, expropriação e etnocídio. Como sugere o pensador quilombola, o conceito de “contra-colonização” inscreve no processo colonial a ressignificação da matriz cultural dos povos e de suas práticas tradicionais, de modo a ancorar a enunciação e as formas de resistência à colonização.

Colonização, quilombos: modos e significações (2015) propõe um novo ponto de vista acerca dos estudos decoloniais, ainda que não dialogue diretamente com essa literatura. A obra, que traz ensaios e poemas, elabora uma perspectiva própria sobre as formações “orgânicas” – como Bispo nomeia esse regime de subjetivação – das comunidades tradicionais, retomando a história da resistência de Palmares, Canudos, Caldeirões e Pau de Colher. A crítica epistemológica que o livro apresenta é engendrada pela cosmovisão dos povos contra-colonizadores, indissociável de suas práticas. A contra-colonização localiza-se, portanto, no âmbito de um debate teórico e prático, oferecendo instrumentos para examinar os modos de resistência de povos negros e indígenas que não se permitiram colonizar. A perspectiva crítica do autor repousa na experiência “orgânica” e política do povo quilombola, de forma que o pensamento contra-colonialista mostra-se uma prática que se dá por meio da cosmovisão afro-pindorâmica.

Outro pilar que constitui o conceito de contra-colonização é a relação entre discurso e prática, permitindo o que o autor chama de “confluência”, isto é a convivência entre elementos diferentes entre si e que, ainda assim, se aproximam em suas cosmovisões. Segundo ele, a confluência é o que tem mobilizado o pensamento dos povos tradicionais, oriundo da cosmovisão pluralista dos povos politeístas. A “transfluência”, em contrapartida, rege as “relações de transformação dos elementos da natureza”, estando associada a processos, discursos e práticas derivados da concepção monista, vinculados a um pensamento eurocêntrico e monoteísta. Esses dois pontos são importantes para a compreensão do que o autor denomina “pensamento orgânico” e “pensamento sintético”: o orgânico se refere ao saber constitutivo do desenvolvimento do ser, à organicidade advinda do processo de subjetivação e potência empírica da trajetória dos povos afro-pindorâmicos; o sintético seria o saber canonizado na academia, caracterizado por uma prática colonialista, constituindo-se pela ênfase no “ter.” Enquanto o orgânico é o saber da confluência, o sintético seria o da transfluência.

O pensamento de Nego Bispo busca oferecer contribuições políticas e acadêmicas aos movimentos de luta pela terra, com destaque para as organizações político-sociais dos povos indígenas e quilombolas. Ao reforçar as manifestações coletivas e ao colocar o acento político na oralidade, vem ocupando um lugar na reestruturação conceitual dos estudos decoloniais. Impulsionando o debate acadêmico, Bispo realizou palestras, conferências e cursos, tendo participado como professor e mestre convidado do projeto Encontro de Saberes (UNB/INCT). Ministrou aulas no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Fonte: Universidade de São Paulo – PORFÍRIO, Iago & OLIVEIRA, Lucas Timoteo de. 2021. “Antônio Bispo dos Santos”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <https://ea.fflch.usp.br/autor/antonio-bispo-dos-santos>

MANIFESTO: o perdão, os 120 anos da abolição inacabada e as igrejas históricas

Treze de maio de 2008, completa 120 anos da abolição da escravidão no Brasil, entretanto, não efetivamos o processo de abolição da escravatura, o nosso País matem uma das mais acentuadas desigualdades social e econômica do mundo. A população negra está na margem da riqueza produzida pela sociedade brasileira. Situação reforçada pelas nossas igrejas na cumplicidade e omissão perante a escravidão negra e anos de racismo no Brasil.

Nestes 120 Anos de abolição inacabada, conclamamos as nossas igrejas históricas que tiveram participação direta na escravidão, um pedido de perdão pela cumplicidade e omissão diante da escravidão e racismo sofrido pelo povo negro. Assim iniciará um franco dialogo para um processo de remissão e um projeto nacional que pode ser desenhado com ações concretas na superação do racismo e políticas afirmativas nas igrejas brasileiras.

Com isso esperamos que esse pedido de perdão das Igrejas históricas, pela escravidão negra venha inspirado pelo mesmo espírito da libertação dos Hebreus da escravidão no Egito, onde alem de se tornarem um povo livre, foram indenizados com bens materiais (Exôdo 12: 35-36). É nesse espírito que as nossas igrejas devem seguir:

“E, quando o deixares ir livre, não o despedirás vazio. Liberalmente o fornecerás do teu rebanho, e da tua eira, e do teu lagar; daquilo com que o SENHOR teu Deus te tiver abençoado lhe darás. E lembrar-te-ás de que foste servo na terra do Egito, e de que o SENHOR teu Deus te resgatou; portanto hoje te ordeno isso”. Deuteronômio 15: 13 a15

Nesta oportunidade de remissão e culpa de pecado, o pedido de perdão ao povo negro, deve vir acompanhado de ações afirmativas e reparações conforme metas a seguir:

Na educação religiosa: garantir o acesso dos afrodescendentes nos Seminários e cursos teológicos; inserir a imagem do negro nas literaturas, de modo que atenda a diversidade cultural caracterizada na sociedade brasileira e nas igrejas evangélicas. No clero e pastorado: ampliar a participação dos afrodescendentes nos cargos de direção das igrejas, ampliar o número de bispo e bispas, pastores e pastoras; criar e fortalecer as pastorais e os ministérios de combate ao racismo, ampliar a presença de negros e negras nas lideranças das denominações e igrejas. Hoje há uma disparidade proporcional da participação de negros e negras nos cargos de liderança nas igrejas evangélicas.

Na teologia: fazer uma releitura Bíblica/Teológica, considerando a historia do Povo Negro desde os tempos bíblicos passando pela diáspora, escravidão até os dias atuais. Traçar uma hermenêutica bíblica negra a partir da realidade do povo negro e não como foi construída historicamente a partir de uma ideologia branca e masculina, que considera como único ponto de partida para a celebração os pressupostos ocidentais, não levando em conta as manifestações religiosas do povo negro, ignorando suas expressões corporais, sua mística e tradições. A hermenêutica negra deve ser entendida como uma causa política, e assumir esta causa é assumir um processo de libertação que implica transformações sociais radicais onde possamos participar com nossas particularidades culturais e nossas contribuições fundamentais para uma sociedade que não discrimine nem marginalize os afrodescendentes.

Na superação do racismo e da intolerância religiosa: é necessário um programa de ação das igrejas na promoção do diálogo inter-religioso, elemento vital para a promoção da paz e superação das divisões e dos mal-entendidos produzidos pela história. As Igrejas devem agir como uma vigorosa força para a conversão individual e coletiva dos corações, sem a qual o ódio, a intolerância e o racismo jamais conseguirão ser eliminados. Também deve ser criado um fundo para financiar projetos no combate ao racismo e intolerância religiosa.

Conclamamos a Igreja brasileira para romper com o silêncio e com o mito da democracia racial, afim de que ocorra uma profunda transformação em toda sociedade. Este ano marca 120 anos da abolição da escravidão no Brasil. Esperamos que a igreja mais uma vez não perca a sua essência profética, como aconteceu quando a sociedade brasileira discutia a abolição da escravatura, o seu trabalho missionário, apresentou contradições pois não teve como características a contestação social e a atuação nos problemas políticos nacionais, diante da escravidão o seu posicionamento sobre o tema defendiam a liberdade do espírito e não a do corpo, mesmo quando a sociedade brasileira estava mobilizada ao redor do fim da escravidão. Época que poucas vozes proféticas se manifestaram contra a escravidão, uma delas o Rev. Eduardo Carlos Pereira que, no ano de 1886, publicou no jornal Imprensa Evangélica um texto histórico intitulado: A Religião Christã em suas relações com a escravidão. Trata-se da primeira manifestação contundente de um líder protestante brasileiro sobre o tema:

…Confesso que grande é minha vergonha e grande a confusão da Egreja de Christo no Brazil, ao ver incrédulos, pelo simples amor a humanidade, abrirem mão de seus escravos; entretanto, que os que professam fé no Redemptor dos captivos não rompem as ligaduras da impiedade nem deixam ir livres os opprimidos! Leitor, si acaso vires algum incrédulo ler este artigo, eu te peço, para a honra da Egreja de Nosso Senhor no Brazil, que não deixe seus olhos percorrer este paragrapho…”

Igreja, é tempo de reconciliação e de comprometimento, nossos ancestrais aguardam ansiosamente por este dia.

Igreja, o pedido de perdão é um ato de humildade e de coragem, mas também oferece a perspectiva de eliminar a dor das gerações do passado e do presente e abrir o caminho para um novo futuro.

Igreja, hoje é tempo de comprometimento e de perdão.

Organizações que assinam o documento:

Sociedade Cultural Missões Quilombo

ANNEB – Alianças de Negros e Negras Evangélicos do Brasil

Fórum de Lideranças Negras Evangélicas

Fórum Afrodescendentes Evangélicos

Associação Estadual dos Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro/Paraty-Campinho da Independência – Acquilerj

União de Negros Pela Igualdade Racial/MGMovimento

Afro-Esmeraldense/MG

Brasil, 13 de maio de 2008

Manifesto do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas

Não havendo profecia, o povo se corrompe”. (Provérbios 29.18).

MANIFESTO DO FÓRUM DE LIDERANÇAS NEGRAS EVANGÉLICAS PARA CBE2

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, membros do corpo de Cristo, Senhor da Igreja. Nós aqui chegamos na condição de escravizados. Nosso país recebeu o maior número de escravos em relação aos demais países na América Latina e foi o último país a abolir a escravidão negra. Na história da humanidade não se tem registro de uma escravidão tão longa e cruel quanto à do negro no Brasil. Fomos desrespeitados ao longo da história, reprimidos e massacrados em nossos valores religiosos. No mesmo barco que veio o colonizador veio o evangelizador. Colonizar significava evangelizar. Esta evangelização, no princípio foi representada pelo catolicismo e, mais tarde, pelo protestantismo. A expressão religiosa do negro passou a ser associada à coisa do demônio. Nos evangelizavam, sem no entanto nos considerar como sujeitos do processo de evangelização. Quase tudo nos foi negado ao longo destes séculos de conquista e colonização. Jamais, porém, conseguiram apagar em nós a esperança.

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, congregados de diversas igrejas protestantes. Sabemos que as igrejas históricas foram as primeiras denominações protestantes a chegarem no Brasil através dos imigrantes, e depois pelos missionários estrangeiros. Essas igrejas chegaram no período da escravidão. Dentro delas havia os que buscavam reproduzir o modelo escravocrata firmado em um discurso teológico, e não conseguiam ver a incompatibilidade entre escravidão e fé cristã. Estes eram os missionários que vieram do sul dos Estados Unidos, ainda com ressentimentos da derrota na guerra da Secessão contra o Norte pela libertação dos escravizados. A grande maioria desses primeiros protestantes quando não escravistas eram omissos. Eles também defendiam a sua posição teologicamente, afirmando que a Igreja não devia interferir no Estado. Além disso, havia a divisão arbitrária entre o espiritual e o material, entre o corpo e a alma, pensamento que até hoje permanece em muitas igrejas. Reconhecemos também a existência dos abolicionistas: eram em sua maioria missionários do norte dos Estados Unidos, europeus, e um pequeno grupo de convertidos brasileiros.

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, e lamentamos que os missionários que aqui chegaram no período da escravidão vieram para fazer missões, ganhar a elite brasileira e constituir suas igrejas. Só se manifestaram a favor da abolição quando o Brasil inteiro já estava convencido do seu fim, uma tragédia para quem devia transformar a sociedade. Mesmo os que tinham uma postura defensora dos direitos humanos e da abolição do escravismo na Inglaterra e nos EUA, ao chegarem no Brasil acomodaram-se ao ambiente escravista e quase nada fizeram com repercussão pública, em favor dos escravos. A Igreja Evangélica jamais chegou a defender oficialmente sua posição em relação à escravidão no Brasil. Se passaram mais de 100 anos e as Igrejas continuam com seu silêncio covarde e pecaminoso diante da realidade de opressão e racismo na qual se encontram os afrodescendentes.

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, pois em meio ao sentimento de dor, tristeza e indignação, enchem-nos de esperança as experiências de Deus em Jesus Cristo, através das quais vivemos a nossa fé como negros e negras. Não queremos apenas lamentar, é tempo de profetizar e denunciar, mas também de proclamar que a Igreja Evangélica brasileira só poderá viver verdadeiramente a sua Missão Integral se contemplar a questão do afrodescendente. Temos a convicção de que estamos vivendo tempos da manifestação de Deus entre nós e entendemos que os cristãos foram postos no mundo para ser a consciência da sociedade. A Igreja tem de ser a voz que fará a diferença no mundo descendo até os excluídos, como resultado da tragédia da escravidão e marginalização. É preciso sim que os afrodescendentes recebam um tratamento diferenciado porque foi assim que Deus fez a Israel quando foi escravizado no Egito.

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, e compreendemos que a verdadeira espiritualidade do povo de Deus se expressa em sua integralidade. A igreja que proclama as boas novas do reino deve ser a mesma que estende a mão ao necessitado. Vimos por esse meio apelar ao II Congresso Brasileiro de Evangelização – CBE2 que dê um basta na omissão da Igreja Evangélica brasileira e quebre o silêncio dos púlpitos com a temática negra e que não fique só nas palavras, nos sermões e nas declarações, mas também através de ações concretas: programas, campanhas, ações afirmativas e reparações. E juntos vamos “Proclamar o reino de Deus, vivendo o evangelho de Cristo”.

Fórum de Lideranças Negras Evangélicas Belo Horizonte, 27 de outubro de 2003