Os vestígios Históricos do Lutero Negro e a Gênesis do Protestantismo Brasileiro

A chegada da corte portuguesa, os processos de independências do Brasil e as primeiras leis abolicionistas marcaram significativamente a primeira metade do século XIX e deram o tom para as transformações políticas, econômicas, sociais e religiosas em solo brasileiro. E é sobre esse contexto que surge, em 1841 na cidade de Recife, Agostinho Jose Pereira pregador negro e precursor do protestantismo no Brasil, fundador da Igreja do Divino Mestre, que segundo Hernani Francisco da Silva foi a primeira igreja protestante no país.

Os vestígios históricos sobre Agostinho ainda são poucos, mas o que se pode afirmar, diante das fontes jornalísticas é que, ele sabia ler e escrever e fez de seu ministério uma possibilidade para falar sobre liberdade e o fim da escravidão e por isso ensinava os seus adeptos a ler e escrever. Ainda segundo Hernani Francisco da Silva, “As ideias de Agostinho eram avançadas e perigosas para a época onde a igreja católica era a religião oficial do Estado.” Entretanto, não foram as ideias e convicções religiosas do Pastor Negro que despertaram o descontentamento das autoridades do poder espiritual (Igreja) e as autoridades do poder temporal (Estado), mas sim suas ideias abolicionistas e seus inúmeros discursos que apontavam o Haiti como um exemplo de luta contra as formas de escravização do corpo negro.

Não podemos nos esquecer que a Revolução Haitiana, também conhecida por Revolta de São Domingos, que levou à eliminação da escravidão e à independência do Haiti, foi um dos maiores marcos históricos para a população afro-diaspórica no continente americano. As repercussões da Revolução geraram um medo eminente de revolta dos “escravizados” contra os seus “senhores”. Em sua tese de doutoramento, em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Rosenilton Silva de Oliveira aponta Agostinho como um ícone para o Movimento Negro Evangélico (MNE), pois enquanto a história oficial considera o início do protestantismo no país, no ano de 1858, com a fundação da Igreja Fluminense pelo reverendo Roberto Kalley; o MNE em uma tentativa de reescrever a presença evangélica no Brasil contextualiza o ano de 1841, quando Agostinho José Pereira funda a Igreja Divino Mestre, como a gênesis está do protestantismo brasileiro.

Segundo os vestígios históricos, apontados por Silva, “o que sabemos é que ele era um negro letrado, e que fundou a primeira igreja protestante brasileira, essa igreja era negra. Sabemos também que na sua trajetória política conheceu Sabino o líder da revolta baiana conhecida como a sabinada, também participou da confederação do Equador“. Perseguido e preso, por conta de suas ideias em prol das liberdades, sua trajetória foi se esvaindo no tempo e solapada pela história oficial. Por isso, ao pontuar Agostinho Jose Pereira na História, como líder, pregador abolicionista, não corremos o risco de uma história única que tente a invisibilizar a participação de homens e mulheres negros e negras nas narrativas oficiais.

Autor:

Babalawo Ivanir Dos Santos

O Prof°. Babalawô Ivanir dos Santos, é Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ); membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Pesquisador do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-UFRJ) e Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais pós coloniais (LEHA-UFRJ); Coordenador da Coordenadoria de Religiões Tradicionais Africanas, Afro-brasileira, Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ); Conselheiro Estratégico do Centro de Articulações de População Marginalizada (CEAP); Interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR); Conselheiro Consultivo do Cais do Valongo; Vice-presidente da América Latina no Conselho Internacional das Sociedades de Antigas Religiões de Descendentes de Africanos (ARSADIC), Nigéria. Tem experiência nas seguintes áreas ; Educação Étnico-racial e questões africanas, Direitos Humanos e Cidadania; Relações Internacionais; Religiões tradicionais da África Ocidental e Afro-brasileiras.


Referências:
http://www.espiritualidades.com.br/…/SILVA_Hernani_Francisc…

OVILEIRA, Rosenulton Silva de. A cor da fé: “identidade negra” e religião. Tese de Doutorado em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.

Fonte da foto: https://afrokut.com.br/blog/reforma-protestante-negra/



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“Hair Love“, Melhor curta-metragem de animação no Oscar 2020

Premiado melhor curta de animação, filme levou representatividade e enalteceu o amor próprio pelo cabelo crespo na cerimônia mais importante de Hollywood. Para receber o prêmio, subiram ao palco Matthew Cherry e e Karen Rupert Toliver, codiretores do filme.

“Fizemos esse filme porque queríamos ter mais representatividade nas animações e normalizar o cabelo afro”, disse Karen durante seu discurso.

O curta Hair Love, nasceu de uma vaquinha online. Em 2018, Cherry divulgou o financiamento coletivo do projeto e a prévia do roteiro, que foi suficiente para alçar a produção a um sucesso instantâneo: com a meta inicial de arrecadar 75 mil dólares, a produção ultrapassou os 200 mil dólares e foi abarcada pela Sony Pictures Animation.

O filme é inspirado no livro homônimo escrito por Cherry. Ele conta que teve a iniciativa por sentir falta de representatividade de famílias negras em projetos de animação mainstream e para promover o amor próprio pelo cabelo crespo entre homens e mulheres negras. Segundo a assessoria do diretor, o livro “Hair love” já tem editora no Brasil e será lançado neste ano.

“O projeto promove o amor ao cabelo natural, para que meninas e meninos negros se orgulhem dele. Grandes animações não abordam dinâmicas de famílias negras, não existe esta representatividade. Espero que possamos mudar isso”, afirmou Matthew.

Do Afrokut


24 negros vencedores do Oscar

Immortel Cheikh Anta Diop

Tributo da dupla Les Nubians em homenagem a Cheikh Anta Diop.

Les Nubians é uma dupla musical francesa, composta pelas irmãs Hélène e Célia Faussart de Paris , França. Em 1985, as irmãs se mudaram com os pais para o Chade . Sete anos depois, eles retornaram a Bordeaux , na França, e começaram a cantar uma capela, produzindo poesia em Bordeaux e Paris e cantando vocais de fundo para vários artistas em todo o mundo. O álbum de estréia da dupla, Princesses Nubiennes, foi lançado pela Virgin Records , França, em 1998.

Elas se tornaram um dos grupos musicais franceses de maior sucesso nos EUA, mais conhecidos por seu single “Makeda” da Billboard R&B do seu álbum indicado ao Grammy, Princesses Nubiennes .


Letra e tradução da musica: Immortel Cheikh Anta Diop

Não diga que ele morreu porque permanece imortal Cheikh Anta Diop
Ne dites pas qu?il est mort car il demeure immortel Cheikh Anta Diop

Não diga que ele morreu porque os ancestrais aos quais se juntou
Ne dites pas qu?il est mort car les ancêtres il a rejoins

Não chore porque no grande trono ele agora está sentado
Ne fondez pas en larmes car sur le grand trône désormais il siège

O trono dos faraós dos faraós eternos
Le trône des pharaons des pharaons éternels

Olha, olha como ele nos chama de povos da África
Regardez plutôt regardez comme il nous interpelle peuples d?Afrique
Você dá o seu melhor
De vous même donnez le meilleur

E salve a humanidade toda a humanidade.
Et sauvez l?humanité l?humanité entière.

Não diga que ele morreu Cheikh Anta Diop
Ne dites pas qu?il est mort Cheikh Anta Diop

Você que é o melhor de si na África
Toi qui le meilleur de toi-même à l?Afrique

Deu ao mundo das trevas, à humanidade
As donné au monde noir, à l?humanité

Como você paga a homenagem que você merece?
Comment te rendre l?hommage mérité?
A floresta entrelaçada com videiras espinhosas que você podou
La forêt entrelacée de lianes épineuses tu as élaguée

Traçando os caminhos da ciência
Traçant les sentiers de la science

Pântanos infestados de monstros carnívoros
Les marécages infestés de monstres carnivores

Falsificadores da história que você cruzou
Faussaires de l?histoire tu as traversés

Procurando os fósseis da verdade, a noite da tinta e da fria solidão
Recherchant les fossiles de la vérité, la nuit d?encre et froide de solitude
Geração sacrificada que somos você disse
Génération sacrifiée que nous sommes disais-tu

Sacrificado, sim você estava, sim vê?
Sacrifié, oui tu l?as été, oui see?est bien cela

Você se jogou na batalha, se esgotou
Tu t?es jeté dans la bataille, tu t?es exténué

Contanto que possamos andar orgulhosamente com a cabeça erguida
Pourvu que nous puissions marcher fiers, la tête haute
É verdade que você morreu Cheikh?
Est-ce vrai que tu es mort Cheikh?

Que você não é mais um Cheik?
Que tu n?es plus Cheikh?

Você que por alguns momentos ainda me pediu para redobrar meu ardor
Toi qui quelques instants encore m?exhortais à redoubler d?ardeur

Enfrentar os golpes de uma África que se procura
A braver les coups bas d?une Afrique qui se cherche

Você que me convidou a reunir boas vontades para um futuro glorioso
Toi qui m?invitais à rassembler les bonnes volontés pour un avenir glorieux

É você quem não é mais, Cheikh Anta Diop?
Est-ce toi qui n?es plus, Cheikh Anta Diop?
Nós, os povos da África, imploramos por ele e
Nous, peuples d?Afrique, plaidons pour lui et

Digamos isso por todo o bem que ele fez à humanidade
Le disons pour tout le bien qu?il a fait à l?humanité

Seja louvado, oh Deus, veja o Cheik Anta Diop vem até você
Soyez loué, ô dieu, voyez Cheikh Anta Diop vient à vous

Sem pecado, sem dano
Sans péché, sans mal

Ele dava pão aos famintos, água aos sedentos
Il a donné do pain à l?affamé, de l?eau à qui avait soif
Roupas a quem estavam nus, uma caixa a quem não tinha barco
Des vêtements à qui était nu, un bac à qui n?avait pas de bateau

Ele fez oferendas aos deuses
Il a fait des offrandes aux Dieux

E presentes funerários para os mortos abençoados
Et des dons funéraires aux morts bienheureux

Salve Cheikh Anta Diop, mantenha-o
Sauvez Cheikh Anta Diop, gardez-le
Cheikh Anta Diop é um homem que tem uma boca pura
Cheikh Anta Diop est un homme qui ala bouche pure

Mãos puras e bem-vindo a quem a vê
Les mains pures et à ceux qui le voient, sois le bienvenu

Nós, os povos da África, imploramos por ele e
Nous, peuples d?Afrique, plaidons pour lui et

Digamos isso por todo o bem que ele fez à humanidade
Le disons pour tout le bien qu?il a fait à l?humanité
Então esse é o nosso apelo, nós povos da África, para você, Sheikh
Voilà donc notre plaidoyer, nous peuples d?Afrique, pour toi, Cheikh

Agora você pode ir, você pode ir em paz
Maintenant, tu peux partir, tu peux partir en paix

O pacto é selado, permaneceremos fiéis a você
Le pacte est scellé, nous te resterons fidèles

África vai enfrentar o desafio, o desafio do futuro
L?Afrique elle, relèvera le défi, le défi do futur
A humanidade será salva, e para você retornaremos o que é seu
L?humanité sera sauvée, et à toi, nous rendrons ce qui te revient

Glória, glória no frontão da história
La gloire, la gloire au fronton de l?histoire

Descanse em paz, mas esteja sempre conosco, filhos da África
Repose en paix, mais toujours sois avec nous, fils d?Afrique

Cheikh, Cheikh Anta, Cheikh Anta Diop, você o imortal
Cheikh, Cheikh Anta, Cheikh Anta Diop, toi l?immortel

Não diga que ele morreu porque permanece imortal Cheikh Anta Diop
Ne dites pas qu?il est mort car il demeure immortel Cheikh Anta Diop

Compositores: Celia Faussart / Helene Faussart / Kum A’n Iii Dumbee / Mounir Belkhir
Letra de Immortel Cheikh Anta Diop © Sony/ATV Music Publishing LLC

Do Afrokut

Exposição sobre Antigo Kemet inaugura em SP

Exposição inédita sobre o Kemet (Egito Antigo), considerada uma das mais importantes civilizações da história da humanidade. Por meio de um amplo panorama sobre o cotidiano, a espiritualidade e os costumes ligados à crença na eternidade, o recorte reúne esculturas, pinturas, objetos, sarcófagos e até uma múmia, vindos do Museu Egípcio de Turim (Itália), segundo maior acervo egípcio do mundo. A múmia, chamava-se Tararo, que data de 700 anos A.C. Era ela uma mulher integrante da 25ª dinastia, que ficou conhecida como Dinastia Núbia ou “Faraós Negros”. Além de instalações cenográficas e interativas que permitem uma viagem ao tempo dos faraós.

 A exposição “Egito Antigo: Do Cotidiano À Eternidade” vão ocupar os seis andares do CCBB São Paulo, já está em cartaz  e vai até 11 de maio. Curadoria: Paolo Marini e Pieter Tjabbes.


Local:  CCBB SP. Rua Álvares Penteado, 112, Centro  –  tel: 3113-3651.

Quarta a segunda, 9h às 21h. Grátis. 19 de fevereiro a 11 de maio.

Do Afrokut  com  informações do CCBB. Imagem crédito: Museo Egizio

Veja tambem:

https://afrokut.com.br/blog/exposicao-sobre-o-kemet-antigo-egito/

Exposição sobre o Kemet – Antigo Egito

A exposição Egito Antigo: do cotidiano à eternidade, em cartaz no CCBB –  Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, há pouco mais de três meses  já recebeu mais de 1 milhão de visitantes, devido ao enorme sucesso e o crescente interesse do público, foi prorrogada a visitação até 02/02. Depois deixará o Rio para ser apresentada em outras quatro localidades: CCBB São Paulo (em 19/02), CCBB Brasília (em junho) e CCBB Belo Horizonte, em setembro de 2020.

A mostra tem entrada gratuita e durante a exibição serão apresentadas 140 peças do Museu Egípcio de Turim (Museo Egizio), na Itália. Fundado em 1824 por Carlo Felice di Savoia, rei da Sardenha, o museu italiano reúne a segunda maior coleção egiptológica do mundo (depois do Museu do Cairo no Egito), com cerca de 26.500 artefatos do Kemet (Egito Antigo). Seu acervo é resultado da junção das peças da Casa Savoia (adquiridas desde o século 17) às da coleção que o monarca comprara das escavações de Bernardino Drovetti, cônsul da França no Egito (1820-1829) – e outra parte do acervo foi descoberta pela Missão Arqueológica Italiana (1900-1935), quando ainda era possível a divisão dos achados arqueológicos.

Kemet – Egito Antigo

A Kemet começou a se formar no final do período paleolítico, quando o clima árido do Norte da África e a desertificação do Saara, levaram muitos africanos a se mudarem para o Vale do Nilo, formando várias comunidades agrícolas que viviam em grupos ao redor do Rio Nilo. Mas, foi no período chamado pré-dinástico, antes que houvesse um Faraó e Kemet fosse unificada, que as culturas Kemética formadas pelas comunidades ribeirinhas do Nilo começaram a se unificar e formar pequenos Estados ao longo do Rio Nilo, este período começou por volta de 4000 aC, que é mais de 6.000 anos atrás. Segundo a Pedra de Palermo o Kemet se unificou em dois reinos, um no Alto Kemet e outro no Baixo Kemet. Kemet se transformou em um complexo de civilizações formadas por diversas nações africanas, ao redor do Rio Nilo, em uma área que se estendia desde a Núbia, Sudão, até ao rio Eufrates. Saiba mais: O que é Kemet?

A exibição da exposição “Egito Antigo: do cotidiano à eternidade“ é dividida em três seções: vida cotidiana, religião e eternidade, que ilustram o laborioso cotidiano das pessoas do vale do Nilo, revelam características do neteru egípcio e abordam suas práticas funerárias. Cada seção apresenta um tipo particular de artefato arqueológico, contextualizado por meio de coloração e iluminação projetadas para provocar efeitos perceptuais, simbólicos e evocativos. As cores escolhidas são: amarelo para a seção da vida cotidiana; verde para a religião; azul para as tradições funerárias – associadas a três intensidades da iluminação (brilhante, suave e baixa).

Local e data da exposição “Egito Antigo: do cotidiano à eternidade“:|

CCBB Rio de Janeiro: 12/10/2019 a 02/02/2020

CCBB São Paulo: 19/02/2020 a 11/05/2020

CCBB Distrito Federal: 02/06/2020 a 30/08/2020

CCBB Belo Horizonte: 16/09/2020 a 23/11/2020

Do Afrokut

O Movimento Negro Evangélico e o futuro

Parte das demandas lançadas sobre as costas de militantes e ativistas negros/negras têm a ver com o passado. As questões relacionadas à escravidão, ao colonialismo, às desigualdades e a um passado que nós nem conhecemos e sequer entendemos são parte das várias questões que além do racismo que se projeta claramente no nosso presente, vivem a assombrar e perseguir os membros dos movimentos negros. Como disse Mano Brown em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil“hoje o negro está mais ligado ao futuro do que ao passado”(1).

Os debates sobre afro futurismo, mundos possíveis e a superação do racismo são por demais sedutores. Afinal, quem não adoraria que Wakanda fosse real? O que todo negro/negra quer é justamente não precisar mais falar de racismo, falar de dor e de violência. Essa necessidade é um possível explicador para a quantidade gigantesca de pessoas pretas nas igrejas evangélicas, sobretudo nas denominações que falam sobre salvação com certa ênfase. Para o povo negro, é importante pensar a vida em uma outra perspectiva que não seja a deste mundo em que vivemos.

Estamos vivendo uma crise mundial. Até para o espectador mais ingênuo, é nítido que o mundo está vivendo um período cataclísmico e de crises múltiplas. As crises políticas, econômicas e até de identidades representam todo um processo de adoecimento do que Ailton Krenak chamou de Antropoceno:

Como é que ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muita das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência? (KRENAK, 2019, p. 11).

Mais do que nunca precisamos falar de futuro. O passado deve ser apenas o ponto de partida para nossas críticas; mas no momento, o foco deve ser o futuro. A comunidade negra precisa criar dentro de si a possibilidade de pensar um outro mundo, uma realidade libertária. Quando falamos de decolonialidade, é sobre essa possibilidade de pensarmos mundos possíveis, outras experiências. Se essas experiências serão sem a presença do racismo, eu não sei, o que sei é que o mundo está fumegando e este é o momento para que haja uma real transformação.

Em ideias para adiar o fim do mundo (2019), o líder indígena Ailton Krenak reflete justamente sobre essas questões. Pensar o futuro e o tempo em uma perspectiva decolonial é transcender as fronteiras de um mundo fragmentado. Ou como Frantz Fanon escreveu em Os condenados da terra, “um mundo cindido em dois” (1961). Esse mundo, chamado de Ocidente, foi construído para que os seus dois lados se autoanulem e nunca se encontrem de forma harmônica. Assim, uma guerra que foi declarada por um dos lados impede que o outro lado, o lado dos colonizados, se recuse a guerrear. Por isso, desde a colonização, a violência passou a ser um tipo de linguagem universal que expressa o fim de todo conflito, diálogo, debate ou embate.

A igreja evangélica no Brasil como parte desse mundo em colapso, têm mantido relações estreitas com o poder dos colonizadores, tendo no seu núcleo uma massa de membros formada majoritariamente pelos povos colonizados e que está sendo largamente influenciada pelas estruturas de poder colonial por motivos mais complexos que o binarismo alienados alienadores comumente utilizado pelos devotos do materialismo histórico.

Nada é tão simples.

E é por não ser tão simples que existem grupos de evangélicos como o Movimento Negro Evangélico.

No início da década o censo do IBGE apontou o avanço gigantesco da população evangélica (2) e o provável é que, havendo um novo censo, esse número tenha em muito aumentado. A problemática é que, como já foi apontado em pesquisas, o Brasil é um dos países com maior número de evangélicos, mas também um dos países que mais mata jovens negros (3) e é nesse ponto que emerge a urgência de movimentos que dialoguem com a fé desse grupo que está em crescimento e as demandas de um país ainda preso às amarras coloniais.

O Movimento Negro Evangélico (MNE) é uma ideia para adiar o fim do mundo. Precisamos, negros e negras, entender as perguntas que estão sendo feitas pelas pessoas nas igrejas, na periferia e nas favelas para que nossas respostas sejam audíveis e efetivas. Precisamos entender o que os movimentos de esquerda não entenderam ou não quiseram entender. Precisamos nos apropriar das narrativas e dos discursos que podem potencializar um novo horizonte para um mundo que vive em constante queda rumo à morte para talvez “não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos” (KRENAK, 2019).

Que o MNE entenda a sua possibilidade de reconstruir um novo céu e uma nova terra. Que o MNE entenda que isso não se trata e nunca se tratará de converter todo o mundo ao cristianismo, mas salvar todo o mundo, inclusive, o próprio cristianismo.

Bem-aventurados, nós, os pacificadores, com fome e sede de justiça.

Por João Marcos Bigon, mestrando em Relações Étnico-Raciais pelo PPRER/CEFET-RJ e Licenciado em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias. Membro da Nossa Igreja Brasileira.

Via: Novos Diálogos


Notas

(1) Mano Brown, um sobrevivente do inferno | Entrevista completa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U_OsF4y4zuY&t=720s. Acesso em: 05 de Jan, 2020.

(2) Censo 2010: número de católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?id=3&idnoticia=2170&view=noticia. Acesso em 8 de Jan, 2020.

(3) 75% das vítimas de homicídio no país são negras, aponta Atlas da violência. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Acesso em: 8 de Jan, 2020.

A consciência de “ser africano no mundo”

Racismo e modernidade a partir da ideia de realidade simulada: física quântica e psicologia negra Sakhu Sheti

Um ensaio sobre a compreensão do racismo a partir da ideia de realidade simulada – Por José Evaristo S. Netto

O escravizamento histórico e a exploração contemporânea do povo africano só poderiam ter sucesso se os significados africanos de ser humano fossem apagados e/ou redefinidos. Apenas quando o centro de sua consciência for afastado dos significados africanos do que é ser humano, ou esses significados forem removidos da sua consciência, o africano pode ser permanentemente escravizado — eis um preceito central da afrocentricidade. Esse processo de descentramento e desafricanização constitui a problemática psicológica chave na compreensão da experiência dos africanos em toda a diáspora.

Afrofuturismo— Fabio Kabral

Retornando a uma parte da perspectiva ioruba de “ser no mundo” que Wade W. Nobles nos traz, e que foi descrita acima:

Como pessoa, o individuo também possui a cabeça interior, ou ori inu. Oludumaré (o ser supremo) dá essa cabeça diretamente. Ela constitui o “espírito” particular da pessoa. Ori inu é o guardião do eu; carrega o nosso destino e influencia a personalidade. Além de emi (essência divina) e ori inu (essência pessoal), a pessoa tem okan. Essa palavra significa coração, mas, como aspecto constituinte da pessoa, representa o elemento imaterial (essência) que é a sede da inteligência, do pensamento e da ação. Assim, por vezes é chamado de “alma-coração” da pessoa. Acredita-se que a okan exista antes mesmo de a pessoa nascer. É a okan dos ancestrais que reencarna no recém-nascido.

A violência da escravização, a colonialidade e o racismo, resumem o maafa que foi a nossa tragédia enquanto povo, o descarrilhamento do nosso caminho de desenvolvimento a partir da nossa centralidade, do significado original de “ser e existir no mundo” sendo uma pessoa negra, africana, não ocidentalizada. Precarizou o nosso espírito particular, nosso Ori inu, enfraqueceu a nossa essência divina, nossa Emi e o contato com as memórias e arquétipos imateriais, os corpos sutis dos nossos ancestrais e antepassados, nosso Okan. Uma vez que não conseguimos mais localizar a nossa essência divina, perdendo também as nossas referências sobre o nosso próprio espírito particular, sobre aquilo que nos é particular, que nos torna únicos, somados ao enfraquecimento dos nossos laços com a nossa história e ancestralidade, fica mais fácil entender como somos dominados por uma realidade simulada que manipula os nossos sentidos e diz o que significa existir no mundo. Hoje, consumimos para existir, talvez porque perdemos estas estruturas e recursos de ser no mundo que eram os trilhos do percurso de desenvolvimento dos nossos povos.

Acredito que somente quando pudermos refletir profundamente sobre a realidade, reelaborando-a baseando na circunscrição da nossa experiência no mundo — e dos nossos ancestrais, conseguiremos produzir um desenvolvimento que fortaleça nossa humanidade, ao invés de nos precarizar.

Podemos construir a própria realidade a partir de uma mudança radical da consciência do que é “ser e existir no mundo”?

Para não perder o foco:

  1. é importante o resgate de que este texto trata de simulação da realidade e do racismo, e em como uma perspectiva ou leitura de realidade considerando as contribuições da física teórica podem auxiliar à um existir no mundo que supere a experiência da colonialidade e do racismo.
  2. retorno a África como forma de reaprendizagem das habilidades ancestrais para acessar arquétipos supre mentais que possibilitassem a nós, nos reconstruirmos sem os viesses da colonialidade e do racismo. Sankofa — se você esquecer, não é proibido voltar atrás e reconstituir.
  3. a história como uma mentira, uma simulação, realidade falseada que cria infraestrutura para a construção da modernidade, onde os povos africanos são inferiores. Este é um exemplo de realidade simulada, que se faz presente hoje de forma hologramática em nossos mecanismos de dialogicidade e construção (reforço) da realidade.

 

Este é um ensaio. Pretendo fazer uma discussão destes assuntos com mais profundidade, articulando-os com as Teorias de Autodeterminação que explicam a motivação humana, e com as Teorias Sócio Cognitivas que explicam conceitos como Agência Pessoal. O próximo texto será a continuação desta discussão, e pretendo trabalhar com alguns conceitos chave da Afrocentricidade. Estou aberto a discussões e ponderações criticas.

 

Por José Evaristo S. Netto – Educador, dedicado aos estudos sobre corporeidade, cultura, identidades, sociocognição, racismo e colonialidade. Mestre em Educação Física.

A Consciência é a base de todo o ser

Wade W. Nobles. Professor emérito do Departamento de Estudos da Africana da Universidade Estadual de São Francisco.

Racismo e modernidade a partir da ideia de realidade simulada: física quântica e psicologia negra Sakhu Sheti

Um ensaio sobre a compreensão do racismo a partir da ideia de realidade simulada – Por José Evaristo S. Netto

A Consciência é a base de todo o ser, afirma Amit Goswami!

No mundo que conhecemos hoje, realidade em que fazemos parte, é muito difícil imaginar uma rotina diária que favorecesse um “existir no mundo” onde possamos praticar o acesso aos nossos ancestrais, aos nossos antepassados, a partir da consciência não-local (da água da piscina). No paradigma ocidental da colonialidade e do racismo, estas formas de existir no mundo são tidas como inferiores, são exotizadas, rotuladas por serem práticas de matrizes africanas, e por isso tidas como não racionais, inferiores, primárias, tribais. O racismo e a colonialidade reelaboraram estas formas de existir no mundo criando o rótulo da cultura negra, da cultura africana, a cultura do Outro. E o Outro não é universal, nem sequer é civilizado e desenvolvido à altura da cultura europeia/ocidental. Aqui, acredito que a física quântica de Amit Goswami trás de volta a possibilidade de um existir no mundo diferente do que é imposto pelo racismo e pela modernidade ocidental.

Parece possível construir pontes entre o conhecimento sobre a consciência não-local da física quântica, com a construção da realidade a partir dos seus colapsos em eventos reais, e as formas de existir no mundo dos nossos antepassados do continente africano. O campo de estudos afrocentrados de psicologia negra Sakhu Sheti do dr. Wade W. Nobles contribui fundamentalmente para este percurso.

Em seu artigo Sakhu Sheti: Retomando e Reapropriando Um Foco Psicológico AfrocentradoWade W. Nobles afirma que o problema fundamental que todos nós sofremos, africanos em diáspora, em decorrência do racismo e da colonialidade que teve início da escravidão negra produzida pela Europa, é que nos foi alterado o senso de consciência de ser africano, e do que é ser africano. É preciso portanto voltar ao passado para compreender como os nossos antepassados lidam/lidaram com a sua humanidade, e o que resultou destes traumas, e das resistências e lutas contra a desumanização. Assim, é possível criar experiências que elaborem formas de existir afrocentradas, ou seja, fortalecedoras do nosso senso de consciência de ser africano.

Voltar ao passado para reaprender a lidar com a nossa humanidade, a partir dos conhecimentos e práticas dos nossos antepassados, dos nossos ancestrais. Como? Como fazer isso? Parece fantasioso, mas não é! Aqui esta um dos meus insights para a escrita deste singelo texto:

Acredito que a incorporação de práticas cotidianas suficientemente potentes para ressignificar a nossa percepção de existir no mundo, fortalecendo a nossa centralidade africana, seja o caminho para superarmos o controle da “colonialidade do saber” que domina as nossas mentes e produz esta realidade simulada pela lógica do consumo, na qual todos interagimos. Vivemos numa realidade simulada pelo racismo, pela colonialidade, pela lógica do consumo onde consumir significa existir no mundo. Na verdade, como no filme Matrix, estamos em coma induzido, consumindo, sustentando industrias, governos, sem darmos conta de quem somos, sem elaborarmos minimamente a nossa própria agência pessoal.

Vou me arriscar bastante com um exemplo:
Acredito que a fé em orixá seja um caminho, e uma experiência muito forte de ressignificação da nossa percepção de existir no mundo, capaz de nos fortalecer a ponto de superarmos o controle da colonialidade do saber que constrói esta a realidade simulada que domina as nossas mentes. A fé em orixá nos coloca num lugar onde desenvolvemos ferramentas e movimentamos recursos não para consumir almejando mostrar que existe para si mesmo e para outras pessoas, mas sim para acessar as memórias imateriais, os corpos sutis, que são, eles próprios, os nossos antepassados, energia que se configura naquilo que Amit Goswami chama de consciência não-local. Aqui cabe um adendo importante, isso não é uma explicação técnica de fenômenos espirituais do Candomblé, longe disso, mas apenas uma perspectiva que pode, e deve, motivar e estimular as pessoas a uma reflexão, ajudando na compreensão de um existir no mundo que fortaleça a sua humanidade. Compreendendo a perspectiva de existir no mundo da lógica ioruba como trouxe o psicólogo Wade W. Nobles, onde somos formados pela divindade Orisa-nla, pela força espiritual emi, a essência ou espírito individual Ori inu, e pelo alma-coração dos nossos ancestrais okan, e comparando-a com a compreensão de existir no mundo oferecida pela colonialidade através do paradigma do “consumo, logo existo”, não há como não percebermos que o racismo e a colonialidade provoca uma profunda precarização do sentido de existência. Talvez por isso, consciente ou inconscientemente muitas pessoas têm procurado as religiões de matrizes africanas e as “ciências tradicionais/ancestrais africanas”, para o auxílio das suas demandas pessoais nestas últimas décadas.

Aníbal Quijano é um sociólogo e pensador humanista peruano que se debruçou sobre a ideia central de que o racismo foi, e é, elemento fundamental da racionalidade moderna, eurocêntrica. Na obra Colonialidade do poder, eurocentrismo e America Latina (capitulo do livro A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas), ele trabalha com esta tese:

“A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo a sua racionalidade específica, o eurocentrismo.”

Anibal Quijano é conhecido por ter desenvolvido o conceito de “colonialidade do poder”, trabalhando com a ideia de que a colonialidade é, antes de qualquer coisa uma construção mental, uma racionalidade que parte da classificação social da população a partir da ideia de raça. Desta forma, o racismo se torna o eixo paradigmático desta nova racionalidade que vai estruturar as sociedades modernas, desde o século XV e XVI. De lá para cá o racismo foi se complexificando, assumindo os contornos culturais das épocas subsequentes, até imbricar-se com a lógica do consumo, paradigma vigente nos dias atuais. Acredito que Wade W. Nobles avança neste entendimento, contribuindo com a explicação sobre o impacto desta construção mental racista (colonialidade) na precarização do senso de consciência do que é ser africano no mundo, fazendo com que percamos a nossa centralidade, referencial e perspectiva para prática da nossa própria agência pessoal.

Viver experiências significativas e positivas é fundamental para todo e qualquer processo de conscientização e reforço da humanidade. Considerando que vivemos uma realidade simulada onde o racismo e a colonialidade são os algoritmos deste sistema operacional, desta Matrix, a produção de espaços de convivência que possibilitem vivências a partir de referenciais que possibilitem em “um retorno à África” como traz o Dr. Wade Nobles, ou uma prospecção quântica que nos possibilite contato com a memória imaterial dos nossas ancestrais e antepassados como traz Amit Goswami, pode auxiliar na construção de “subjetividades hackeadoras” da lógica racista e automatizadora da colonialidade.

O racismo, desde a escravização dos povos africanos até agora, se complexificou a ponto de se imbricar nas estruturas computantes do “Ser Humano”. Desta maneira, o racismo estaria no bojo da produção cultural, ou, de outra forma, influenciando dentro da produção de conhecimento e, ao mesmo tempo, se alimentando dela. Cheikh Anta Diop, argumenta que nos mais de 500 anos deste mundo ocidental, o papel da África na história humana têm sido sumariamente negada e, mais ainda, todas as formas de viver e se relacionar com o mundo foram ajustadas socioculturalmente para contemplar, legitimar e naturalizar a escravidão, o racismo e a dominação racial. Marimba Ani, antropóloga, ao se debruçar sobre o evento da escravidão negra, cunhou o conceito maafa, definido como o grande desastre contra as sociedades africanas, morte, sofrimento e destruição desmedidos, além da compreensão humana. Wade W. Nobles acrescenta:

“… a característica básica do maafa é a negação da humanidade dos africanos, acompanhada do desprezo e do desrespeito, coletivos e contínuos, ao seu direito de existir. O maafa autoriza a perpetuação de um processo sistemático de destruição física e espiritual dos africanos, individual e coletivamente.”

Quando reconhecemos o maafa, a partir do percurso histórico, passamos a considerar o fato de que os nossos antepassados tiveram que diversificar e reelaborar muito profundamente o significado de “ser e existir no mundo”, a ponto de, num dado momento, ocorrer cisalhamentos na própria percepção de realidade a partir do desligamento de arquétipos basilares à organização natural de “ser quem você é”, tamanha foi a violência voltada a nossa desumanização. A violência imediata, física, sem precedentes, dos europeus contra os africanos na escravidão foi acompanhada da construção pelas instituições europeias, de um sistema sociocultural, filosófico e científico, que tinha (e ainda tem) como agenda forjar um “modo de ser no mundo” circunscrito à experiência do europeu, e da pessoa branca. Mais do que isso, objetivamente, esta agenda geopolítica e econômica construiu uma nova realidade às pessoas no planeta, a que chamamos modernidade, ou a era moderna, onde novas regras sociais, valores, éticas, jurisprudências, governos, diplomacias, foram impostas, sob o argumento do desenvolvimento civilizatório das nações do mundo pela Europa. O racismo foi, e é, o elemento estruturador desta nova realidade geopolítica, sociocultural, e econômica no mundo. A Matrix estava completa e produzindo esta realidade simulada.

Considerando esta nova ordem social, Nobles contribui enormemente no entendimento do impacto que o processo de dominação colonial causou à consciência de “ser africano no mundo” da população africana e seus descendentes, até os dias atuais. A partir do conceito de descarrilhamento, ele elabora o entendimento chave de que o povo africano, escravizado e submetido a todo tipo de desumanidade, desviou-se do seu caminho natural de desenvolvimento.

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Por José Evaristo S. Netto – Educador, dedicado aos estudos sobre corporeidade, cultura, identidades, sociocognição, racismo e colonialidade. Mestre em Educação Física.

Consumir significa existir no mundo!

Amit Goswami. Professor aposentado de Física Teórica da Universidade de Oregon, bem como estudioso da Parapsicologia e defensor de uma linha de pensamento pseudocientífico conhecida como misticismo quântico.

Racismo e modernidade a partir da ideia de realidade simulada: física quântica e psicologia negra Sakhu Sheti

Um ensaio sobre a compreensão do racismo a partir da ideia de realidade simulada – Por José Evaristo S. Netto

Nós consumimos realidades construídas por outros, ao invés de construímos as nossas próprias realidades!

De fato, a realidade é cada vez mais discutida por teóricos e pensadores de diferentes áreas do conhecimento, que buscam compreensões para suas diferentes facetas observadas, sejam estas psicológicas, socioafetivas, físicas, biológicas, espirituais, ou facetas da realidade observadas a partir da perspectiva de qualquer outro campo do saber. No campo da física teórica, importantes pesquisadores têm oferecido perspectivas epistemológicas e até cosmovisões não ocidentais super relevantes para a compreensão do mundo, do universo, e consequentemente da realidade, do tempo e do espaço.

O físico quântico indiano Amit Goswami, em seu livro O Universo Autoconsciente, trabalha com a ideia de que a unidade formadora de tudo, inclusive da realidade, não é a matéria como a física clássica (newtoniana) argumenta, mas antes a consciência. Goswami demonstra que o universo é matematicamente inconsistente sem a presença de uma “consciência reguladora do cosmos”, e que a Consciência é a base de todo o ser. Parece complicado, e de fato é (((hahaha))) mas vamos tentar destrinchar um pouco essa perspectiva. Para superar os paradoxos teóricos intransponíveis quando utilizado somente os pressupostos da física newtoniana, as teorias científicas de Goswami respeitam e incorporam os conhecimentos das culturais tradicionais africanas, orientais e ameríndias, não ocidentalizadas e/ou colonizadas. Ou seja, Goswami produz uma ciência decolonial, que traz a possibilidade de compreensão do mundo e da realidade a partir de outros referenciais culturais que não são apenas ocidentais, e que não são regulados pelo racismo e a colonialidade.

Como exemplo, quando perguntado o que é a morte (programa Roda Viva, 2007, link abaixo) ele responde (entrevista: 2min53seg até 4min28seg):

“Há morte quando a consciência pára de causar o colapso das possibilidades quânticas em eventos reais da experiência. Esta é a definição técnica da morte. Então, isto é interessante pois na física quântica todos os objetos são possibilidades. Na verdade, momento após momento, incluindo nosso corpo e nosso cérebro, momento após momento nós causamos o colapso dessas possibilidades em eventos reais que experimentamos, com o nosso corpo e o nosso cérebro. Quando perdemos esta capacidade de convertem as possibilidades em eventos reais, nós morremos. Mas perceba o que está acontecendo. As possibilidades permanecem. É claro que algumas dessas possibilidades são possibilidades materiais. Essas possibilidades vão se desintegrar, no sentido do desaparecimento gradativo da estrutura, do desaparecimento gradativo da memória. Os corpos se desintegram. Mas, além do material, temos também os componentes sutis, como a nossa mente, como o vital, como os nossos arquétipos supra mentais, que vão além da mente e do vital, que também definem o nosso ser. Estes corpos são sutis. Eles não têm estrutura nenhuma. Eles podem continuar para além da nossa morte. Este é o conceito de sobrevivência após a morte.”

O entendimento de vida e morte a partir da física quântica de Amit Goswami traz muitas semelhanças com a compreensão de “ser no mundo” a partir da lógica ioruba, segundo o entendimento de que as pessoas possuem um corpo e um espírito, como o psicólogo Wade W. Nobles descreve:

O corpo, ou ara, é formado pela divindade Orisa-nla. É por meio do ara que a pessoa interage com o meio ambiente; é essa a parte da pessoa que se pode tocar e sentir. O arapode sofrer danos e se desintegra após a morte. Entretanto, o componente “essencial” da pessoa é o espírito, a “força espiritual” ou a espiritualidade (emi). O emidá vida a pessoa. É seu elemento divino e a vincula diretamente a Deus. Depois que a pessoa morre, o emiretorna ao Elemi(o dono do espirito, Deus) e continua a viver. Como pessoa, o individuo também possui a cabeça interior, ou ori inu. Oludumaré (o ser supremo) dá essa cabeça diretamente. Ela constitui o “espírito” particular da pessoa. Ori inu é o guardião do eu; carrega o nosso destino e influencia a personalidade. Além de emi (essência divina) e ori inu (essência pessoal), a pessoa tem okan. Essa palavra significa coração, mas, como aspecto constituinte da pessoa, representa o elemento imaterial (essência) que é a sede da inteligência, do pensamento e da ação. Assim, por vezes é chamado de “alma-coração” da pessoa. Acredita-se que a okanexista antes mesmo de a pessoa nascer. É a okandos ancestrais que reencarna no recém-nascido. Para ser uma pessoa, os iorubas também acreditam que se deve ter um ori e um ejeOri governa, controla e orienta a vida da pessoa e de fato a ativa. Ori é o portador do destino e ajuda a pessoa a realizar aquilo que veio fazer na Terra. Ori é ao mesmo tempo e “essência da pessoa” e seu guardião e protetor. Está intimamente ligado a emiEje é o sangue, expressão física da energia eletroquimicomagnética que constitui a força (essência) que guarnece e anima a vida. Os iorubas também acreditam que o iye é um componente da pessoa. O Iye é o elemento imaterial às vezes referido como a mente. (Nobles, 2009. Sakhu Sheti: retomando e reapropriando um foco psicológico afrocentrado. No livro: Afrocentricidade: Uma Abordagem Epistemológica Inovadora)

Voltando a Goswami,ele se baseia em uma análise da realidade a partir do paradigma Monista Idealista, porém não descarta o Realismo Materialismo e a mecânica newtoniana do entendimento das leis universais na natureza. Ele nos convida objetivamente a ampliarmos a nossa visão para a além do que imediatamente ouvimos, tocamos, sentimos e enxergamos, apontando que em dimensões mais sutis da existência, porém não menos importantes, a realidade se faz em eventos reais de colapsos — impactos, produzidos por uma consciência não-local que escolhe o que vai acontecer dentre as possibilidades quânticas que se apresentam. Isso significa que os fenômenos observados nos experimentos da física quântica não são produzidos pelo ego manifesto das pessoas, e sim por uma consciência maior, que não esta em mim, nem em você, mas que atravessa a todos nós, portanto uma consciência não-local. Goswami trabalha com a ideia de uma consciência do cosmos, como se estivéssemos mergulhados nela, como uma piscina onde a água representasse esta consciência não-local. A aguá esta em todo lugar, a água é o próprio meio que nos circunda. Toscamente falando, esta é a consciência enquanto unidade formadora de todo ser, na mecânica de não-localidade quântica do físico Amit Goswami.

Esta consciência não-local é que define (escolhe) os eventos reais — a realidade quântica. Ela é a que organiza as possibilidades dos eventos acontecerem ou não, de qual forma, e por quais caminhos. Voltando a metáfora da piscina sendo a água a consciência não-local, compreendemos que não somos a água, mas estamos em contato com ela. Se houver uma descarga elétrica dentro da piscina, todos nós seremos eletrocutados, porque a água conduzirá a corrente elétrica para todas as pessoas. A consciência não-local, considerando a mecânica quântica de Goswami, têm um comportamento parecido. Ela não conduz eletricidade, mas arquétipos supra mentais, memórias imateriais, corpos sutis, produzidos por nós, pelos nossos antepassados, pelos nossos ancestrais, que são dados, informações, sentimentos que podem ser acessados, processados, e viabilizados por qualquer um de nós, desde que tenhamos as ferramentas necessárias para esta espécie de “prospecção quântica” da consciência não-local.

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Por José Evaristo S. Netto – Educador, dedicado aos estudos sobre corporeidade, cultura, identidades, sociocognição, racismo e colonialidade. Mestre em Educação Física.

Física quântica e psicologia negra Sakhu Sheti

Racismo e modernidade a partir da ideia de realidade simulada: física quântica e psicologia negra Sakhu Sheti

Um ensaio sobre a compreensão do racismo a partir da ideia de realidade simulada

O que me motivou a escrever este singelo ensaio foi a ideia de iniciar a organização de um pensamento afrocentrado, decolonial, que me facilitasse avançar na compreensão e no exercício de uma corporeidade e um “existir no mundo” sadios. Este texto também é fruto da minha preocupação com as identidades precarizadas, relacionadas em grande parte com o afastamento e abandono dos arquétipos e das memórias tradicionais africanas e afrodiaspóricas, ancestrais, tão importantes para a nossa centralidade e a percepção de “ser africano no mundo”. Percebo a incorporação de “identidades precárias de consumo” e “proto arquétipos sintéticos”, “temperadas” pelos sistemas culturais de consumo ligadas aos valores da colonialidade, da modernidade, e entendo que a noção de realidade vai sendo forjada sem agência pessoal (das pessoas pretas). Daí, entendo os porquês dos irmãos e irmãs (e toda sociedade) estarem cada vez mais ansiosos, deprimidos, inseguros, dependentes das redes sociais digitais (construindo experiências efêmeras na maioria das vezes) para a construção das suas identidades e corporeidades (subjetividades precarizadas). Daí, entendo o consumo compulsivo do “lacre” enquanto um recurso do que se entende por “empoderamento”, para um certo “existir no mundo”, a partir de um tipo de lógica de consumo disfarçado de atitude progressista. Este texto é um primeiro ensaio, na tentativa de iniciar a organização dos meus pensamentos. Um convite, portanto, ao começo desta vadiagem de significados e sentidos. Neste ano de 2020, pretendo ensaiar e girar bastante, participar de muitas rodas de trocas de saberes com os nossos, e escrever um sem número destes singelos textos para, quem sabe, chegar a um lugar de proposição de construção de subjetividades afrocentradas, construtoras de agencias pessoais enegrecidas. Convido as irmãs e irmãos para esta gira, junto! Tremendo Asè!

A ideia de que vivemos uma espécie de vida simulada, como se estivéssemos em uma realidade virtual, portanto não real da forma como acreditamos ser, ficou bastante popular com o filme Matrix, lançado em 1999. Este filme constrói um contexto pós-apocalíptico onde a realidade que conhecemos é um ambiente virtual criado por um sistema robotizado autônomo, dotado de uma inteligência artificial hiper avançada. Os seres humanos estariam em uma condição forçada de hibernação induzida, em coma, com suas mentes manipuladas a ponto de suas consciências se localizarem em um mundo virtual, em uma realidade simulada, enquanto seus corpos, conectados a cabos e em cúpulas mergulhados em uma espécie de solução que os nutre e conserva, são utilizados como baterias fornecendo energia a todo este sistema.

No filme Matrix, o personagem Morfeu é simbolicamente muito significativo, é a liderança dos seres humanos que despertaram da realidade simulada pelo sistema de inteligência artificial. Morfeu é a liderança daqueles humanos que vivem os seus próprios corpos e sentem o mundo sem a mediação de um sistema operacional dizendo o que é olfato, o que é tato, o que é palato, o que é visão, e o que é audição. Mais do que ser apenas uma liderança, ele possui ferramentas e conhecimentos capazes de libertar as pessoas da Matrix, e é o que ele faz. Morfeu é uma espécie de griot, um mais velho, um sábio que orienta, mas também um líder político, um cientista, um filósofo e psicanalista, sempre focado no despertar dos seres humanos presos a realidade virtual simulada.

É genial o recorte do filme acima, quando Morfeu provoca Neo no exercício do seu processo de conscientização sobre as realidades virtual e real. “O que é real? Como define real? Se você se refere ao que pode sentir, cheirar, provar e ver, então real são apenas sinais elétricos interpretados pelo o seu cérebro.

Minhas preocupações e motivações para a escrita deste ensaio traduzem, em síntese, uma análise preocupante da forma como se aprende a realidade em que vivemos, da realidade específica em que nós, pretas e pretos, existimos. Estou partindo do pressuposto que a realidade é essencialmente o paradigma pelo qual construímos toda a nossa experiência de sujeitos históricos, políticos, sociais, espirituais, e que a cultura é o sistema operacional que fornece as ferramentas e os recursos para a construção da nossa apreensão do mundo, para a nossa interpretação do que é a realidade, de quem somos, e do que significa para nós existir no mundo. Desta forma, a cultura — que nos forma e nos informa desde o nosso nascimento, também é a limitadora das possibilidades de compreensão do real, da realidade a nossa volta. Se a nossa realidade é construída pela cultura ocidental, que têm como paradigmas o racismo e a colonialidade, então estes são dispositivos que simulam a realidade na qual todos estamos imersos.

A nossa rotina diária, somada aos nossos hábitos e ao nosso consumo, sobretudo considerando o consumo a informação (internet – redes sociais) criam condições cada vez mais difíceis para uma tomada de consciência crítica sobre a nossa própria realidade. Quero provocá-la(o) a pensar sobre quantas vezes no dia, na semana, no mês, e no ano, você “parou” tudo o que estava fazendo e fez uma reflexão profunda sobre quem você é, sobre como você constrói a sua própria realidade. Quais os critérios, motivações, intenções, que dirigem as suas ações no dia a dia automatizado, no percurso da sua casa para o trabalho, durante os afazeres do seu emprego, nos seus estudos? O que te move? O que te motiva? Qual é o sentido que faz construir as nossas intenções e ações diárias?

Provavelmente, a grande maioria das pessoas que se permitirem a esta reflexão chegarão a conclusão de que os nossos hábitos e comportamentos rotineiros, automatizados, não permitem que reflitamos sobre ela própria. A nossa rotina é massacrante, via de regra não temos tempo para parar e refletir exercitando tomadas de consciência. Fazemos o que fazemos, porque é necessário fazê-lo. Estudar, trabalhar, produzir, performar, em qualquer área, esta é a lógica. Aprendemos, melhoramos, e produzimos, mas não para nós mesmos. Produzimos para uma empresa, para uma instituição, para uma agenda que não é a nossa. Porém, trabalhar faz parte da nossa agenda pessoal, porque o trabalho nos permite ganhar dinheiro, e dinheiro é recurso. Até ai, tudo bem! Mas avançando um pouco mais no raciocínio, quando ganhamos nosso salário, ou no nosso dinheiro, o que ocorre? Pagamos dívidas, gastamos uma boa parte consumindo coisas que não necessariamente precisamos, investimos outra parte para consumir mais depois, e etc. E o ciclo do trabalho continua, até o próximo recebimento, e a vida segue. Qual é o significado da sua vida, da nossa vida? Trabalhar para consumir, consumir para se sentir vivo, principalmente para mostrar para as pessoas que existe, que esta vivo, e novamente trabalhar para continuar consumindo, e existindo para si e para as outras pessoas, num ciclo de vida onde consumir significa “existir no mundo”.

Se isso fizer algum sentido para você, sugiro resgatarmos a ideia de Matrix. Se o “existir no mundo” só faz sentido a partir da experiência do consumo, então poderíamos dizer que aquela condição forçada de hibernação induzida do filme é uma metáfora fiel da nossa existência. A cultura do consumo cria a realidade onde existimos. Se precisamos consumir para existir no mundo — redes sociais virtuais, fitness, shopping centers, restaurantes, aplicativos de relacionamento, aplicativos para todo fim, identidades sociais, comportamentos e tendências — então a nossa existência é artificial, e nossa percepção da realidade é uma percepção criada pelas industrias que medeiam a nossa relação com o mundo e nos faz consumidores de produtos e serviços. Nós consumimos realidades, não construímos as nossas realidades. Me parece que este é o significado de existir neste mundo Matrix que vivemos.

CONTINUA…:

 

Por José Evaristo S. Netto – Educador, dedicado aos estudos sobre corporeidade, cultura, identidades, sociocognição, racismo e colonialidade. Mestre em Educação Física.