Colonização, quilombos: modos e significações

O livro de Antônio Bispo faz parte da coleção de obras publicadas pelo INCT de Inclusão e assinadas por mestres e mestras das comunidades tradicionais brasileiras – indígenas, afro-brasileiras, e das culturas populares. Líder quilombola pertencente a uma comunidade rural do Piauí, Bispo foi professor da disciplina Encontro de Saberes na UnB em 2012 e 2013 e pertence à rede de mestres docentes do Instituto.

Seu livro traz uma perspectiva nova no campo de ensaios de interpretação do Brasil: a visão dos quilombos, comunidades de negros que se rebelaram contra a violência do regime escravo e se tornaram historicamente um símbolo maior da luta dos povos do Novo Mundo contra a escravidão e o racismo e pela afirmação de comunidades auto-sustentáveis.

Com uma narrativa concisa, Bispo constrói um argumento denso sobre a história das resistências, rebeliões, insurgências e experiências concretas de construção de comunidades livres e auto-sustentáveis, como Palmares, Canudos, Caldeirões e Pau de Colher, projetando seus ideais para os dias de hoje. Desenvolvendo um conceito amplo de colonização, o autor contesta o atual modelo ecocida e desumano de desenvolvimento econômico ao qual o Brasil, junto com os demais países da América Latina, se rendeu completamente.

Em contraposição a esse projeto de sociedade autodestrutiva, passa a propor uma alternativa civilizatória baseada na biointeração, comum aos quilombos, aos terreiros das religiões de matriz africana e à capoeira. É com essa síntese de pensamento crítico e libertário, e uma disponibilidade de mestre ao ensinar um saber profundo e essencial para a vida (incluindo a alegria, transparente no seu ensaio) que Bispo vem somar a sua escrita quilombista à galeria da intelectualidade brasileira atual.

José Jorge de Carvalho

Zumbi

Tudo começou com um Brás Rocha que atacou Palmares em 1655 e carregou, entre presas adultas, um recém-nascido. Brás o entregou, honestamente, como era do contrato, ao chefe de uma coluna, e este decidiu fazer um presente ao cura de Porto Calvo. Padre Melo achou que devia chamá-lo de Francisco.

Não podia, naquele momento, está visto, adivinhar que se afeiçoaria ao pretinho.

Se pode imaginar que não foi das piores a infância de Francisco. O padre talvez lhe batesse, como mandava a época, mas não lhe faltou alimento e médico. “Quem dá os beijos, dá os peidos”, dizia o povo. Padre Melo achava Francisco inteligentíssimo: resolveu desasná-lo em português, latim e religião. Talvez olhasse com orgulho o moleque passar com o turíbulo, repetir os salmos.

Francisco apreciava, certamente, histórias da Bíblia. Havia esta, por exemplo: Um sacerdote por nome Eli, velho e piedoso, aceitou na sua casa um menino chamado Samuel. Samuel era obediente e esperto. Certa noite, recolhidos os dois, Samuel ouviu que lhe chamavam: “Samuel! Samuel!” Isso foi antes que a lâmpada de Deus se apagasse no templo do Senhor: ali dormia a Arca de Jeová. Samuel foi até o quarto de Eli: “O senhor me chamou? Estou aqui…” “Não te chamei, filho – respondeu o velho. – Torna a te deitar.” Aconteceu uma segunda vez: alguém, de dentro da noite, chamava o garoto. “Não chamei, meu filho. Torna a te deitar.” Na terceira vez, Eli compreendeu de quem era a voz: “Vai te deitar, e quando te chamarem de novo responde: Fala, porque o teu servo ouve.” Assim fez, e a Voz queria que ele a seguisse; e deixou um recado para o sacerdote: que julgaria a sua casa para sempre, pela iniquidade que ele bem conhecia, porque fazendo-se os seus filhos execráveis, não os repreendeu.

Francisco se chamava agora Zumbi.

Onde encontrou esse nome? No Congo e em Camarões, o deus principal se chamava Nzambi; em Angola, diziam ser zombi o defunto, e zumbis, no Caribe, são mortos-e-vivos, criaturas sem descanso, mesmo no Além. Mais uma vez, dependeremos dos papéis históricos para algum dia decifrar o mistério do rebatismo de Francisco: do passado distante, ele zomba de nós.

É mais fácil responder a esta pergunta: por que escravos fugidos mudavam de nome?

Para os povos ágrafos, como eram a maioria dos africanos trazidos para cá, e os indígenas, naturais daqui, o nome é uma coisa absolutamente vital. Na Senegâmbia, uma criança só era gente depois que seu pai lhe gritava ao ouvido, no meio do mato, o nome que lhe queria dar. […]

Era, pois, uma violência extra o que faziam os traficantes europeus ao comprarem um negro: lhe davam um nome cristão. Não o faziam por maldade: precisavam esvaziar o africano de sua cultura. […]

O tráfico separava, para sempre, as famílias. […] funcionando como liga entre pessoas desenraizadas tão violentamente. As autoridades proibiam ajuntamentos de pretos da mesma terra; fazendeiros não compravam mais de dois pretos da mesma “raça”: pavor de que voltassem a ser gente.

Numa noite de 1670, ao completar quinze anos, Francisco fugiu.

Francisco, retornando a Palmares, com quinze anos, passou a se chamar Zumbi. E constituiu, livremente, sua família – um pai, irmãos, tias e tios. O principal destes se chamava Ganga Zumba.

Ganga Zumba, que chegou a Palmares no tempo da invasão holandesa, era, ao contrário de Zumbi, um africano alto e musculoso. Tinha, provavelmente, temperamento suave e habilidades artísticas – como, em geral, os nativos de Allada, nação fundada pelo povo ewe na Costa dos Escravos.

Em 1670, quando Zumbi voltou, Palmares eram dezenas de povoados, cobrindo mais de seis mil quilômetros quadrados. Trezentos anos depois, nomes sonoros saltam dos papéis históricos: Macaco, na Serra da Barriga (oito mil moradores); Amaro, perto de Serinhaém (cinco mil moradores); Subupira, nas fraldas da Serra da Juçara; Osenga, próximo do Macaco; aquele que mais tarde se chamou Zumbi, nas cercanias de Porto Calvo; Aqualtene, idem; Acotirene, ao norte de Zumbi (parece ter havido dois Acotirenes); Tabocas; Dambrabanga; Andalaquituche, na Serra do Cafuxi; Alto Magano e Curiva, cerca da atual cidade pernambucana de Garanhuns. Gongoro, Cucaú, Pedro Capacaça, Guiloange, Una, Catingas, Engana-Colomim… Quase trinta mil viventes, no total.

Trechos da biografia de Zumbi dos Palmares – por Joel Rufino dos Santos, escritor, historiador e professor de pós-graduação da Faculdade de Letras da UFRJ e diretor de Comunicação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em seus livros para crianças e adolescentes, mais do que contar histórias, coloca questões pertinentes, para uma releitura crítica da nossa cultura popular, especialmente a negra e ameríndia. Em Zumbi, o autor narra de forma comovente e analítica a biografia do líder negro, a criação, a resistência e a destruição do quilombo de Palmares.

O amanhã não está à venda

As reflexões de um de nossos maiores pensadores indígenas sobre a pandemia que parou o mundo.

Há vários séculos que os povos indígenas do Brasil enfrentam bravamente ameaças que podem levá-los à aniquilação total e, diante de condições extremamente adversas, reinventam seu cotidiano e suas comunidades. Quando a pandemia da Covid-19 obriga o mundo a reconsiderar seu estilo de vida, o pensamento de Ailton Krenak emerge com lucidez e pertinência ainda mais impactantes. 

Em páginas de impressionante força e beleza, Krenak questiona a ideia de “volta à normalidade“, uma “normalidade” em que a humanidade quer se divorciar da natureza, devastar o planeta e cavar um fosso gigantesco de desigualdade entre povos e sociedades. Depois da terrível experiência pela qual o mundo está passando, será preciso trabalhar para que haja mudanças profundas e significativas no modo como vivemos. 

“Tem muita gente que suspendeu projetos e atividades. As pessoas acham que basta mudar o calendário. Quem está apenas adiando compromisso, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado […]. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã.” 

A vida não é útil

Em reflexões provocadas pela pandemia de covid-19, o pensador e líder indígena Ailton Krenak volta a apontar as tendências destrutivas da chamada “civilização”:

consumismo desenfreado, devastação ambiental e uma visão estreita e excludente do que é a humanidade.

Um dos mais influentes pensadores da atualidade, Ailton Krenak vem trazendo contribuições fundamentais para lidarmos com os principais desafios que se apresentam hoje no mundo:

a terrível evolução de uma pandemia, a ascensão de governos de extrema-direita e os danos causados pelo aquecimento global.

Crítico mordaz à ideia de que a economia não pode parar, Krenak provoca:

“Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, com a economia deles. Ninguém come dinheiro”. Para o líder indígena, “civilizar-se” não é um destino. Sua crítica se dirige aos “consumidores do planeta”, além de questionar a própria ideia de sustentabilidade, vista por alguns como panaceia.
Se, em meio à terrível pandemia de covid-19, sentimos que perdemos o chão sob nossos pés, as palavras de Krenak despontam como os “paraquedas coloridos” descritos em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, que já vendeu mais de 50 mil cópias no Brasil e está sendo traduzido para o inglês, francês, espanhol, italiano e alemão.

A vida não é útil reúne cinco textos adaptados de palestras, entrevistas e lives realizadas entre novembro de 2017 e junho de 2020.

Pesquisa e organização de Rita Carelli.

 

 

Ideias para adiar o fim do mundo

Uma parábola sobre os tempos atuais, por um de nossos maiores pensadores indígenas.

Ailton Krenak nasceu na região do vale do rio Doce, um lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração mineira. Neste livro, o líder indígena critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza, uma “humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”.

Essa premissa estaria na origem do desastre socioambiental de nossa era, o chamado Antropoceno. Daí que a resistência indígena se dê pela não aceitação da ideia de que somos todos iguais. Somente o reconhecimento da diversidade e a recusa da ideia do humano como superior aos demais seres podem ressignificar nossas existências e refrear nossa marcha insensata em direção ao abismo.

“Nosso tempo é especialista em produzir ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover. […] Minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história.”

Desde seu inesquecível discurso na Assembleia Constituinte, em 1987, quando pintou o rosto com a tinta preta do jenipapo para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas, Krenak se destaca como um dos mais originais e importantes pensadores brasileiros. Ouvi-lo é mais urgente do que nunca.

Esta nova edição de Ideias para adiar o fim do mundo, resultado de duas conferências e uma entrevista realizadas em Portugal entre 2017 e 2019, conta com posfácio inédito de Eduardo Viveiros de Castro.

Branquitude, Música Rap e Educação: Compreenda de uma vez o racismo no Brasil a partir da visão de rappers brancos

A presença de rappers brancos em um gênero musical genuinamente negro sempre foi motivo de conflitos e melindres, quase sempre mantidos nas entrelinhas e bastidores da cena Rap. Em jogo, acusações de apropriação cultural, inautenticidade, privilégio e racismo. O autor, ativista e pesquisador negro, Jorge Hilton, se aventura no mergulho aprofundado desse território expondo e analisando esta tensão racial. E se historicamente os pesquisadores brancos tornavam os negros seus interlocutores nos próprios estudos, o autor inverte essa perspectiva.

O livro “Branquitude, Música Rap e Educação” é a segunda obra de Jorge que também é autor de “Bahia com H de Hip-Hop” e “Hip-Hop Transdisciplinar“. Com prefácio de Lourenço Cardoso e Lia Vainer Schucman o presente estudo aborda de modo inovador a visão direta de 17 rappers brancos/as brasileiros/as sobre as relações raciais no Brasil e, em específico, sobre a branquitude. O autor discute como as categorias de classe, gênero, estética e religião se imbricam na identidade artística e racial e de que maneira a interseccionalidade opera.

O livro apresenta uma abordagem conceitual contemporânea, relacionada aos estudos sobre raça-etnia. E para se entender tais marcadores no contexto das relações que envolvem os/as 25 artistas analisados em sua totalidade, novos conceitos são construídos como o de “padrão Racionais“, “empatia abnegada“, “branco denegrido“. Outros são desdobrados buscando caracterizar e referendar as posturas dos/as rappers numa perspectiva autocrítica e educativa.

Os artistas que fazem parte do estudo são: Fabio Brazza, Gaspar (Záfrica Brasil), De Leve, Lívia Cruz, Rubia (RPW), Janaina Noblat, Lurdez da Luz, DeDeus, Elvis Kazpa, Don Bruno, DOPE69, Fex Bandollero, Jasf (Os Agentes), Kaab, MC Osmar, Preto Du (Simples Rap’ortagem), Shark, Gabriel O Pensador, C4bal (anteriormente conhecido como Cabal), Flora Matos, DJ Alpiste, Suave, Filosofia de Rua, Inquérito e Alternativa C. A obra não é sobre lugar de fala dos rappers brancos, mas sim o lugar de reflexão de um pesquisador negro sobre o que essas falas revelam:

O que eles e elas pensam sobre relações raciais e racismo?

A autodeclaração racial que fazem, condiz com seus olhares de como a sociedade os percebe racialmente?

Quais suas visões sobre privilégio branco?

Em que medida tais temáticas aparecem em suas obras musicais?

Neste processo entra em debate o ser “playboy“, a resistência negra, a busca por legitimidade para se cantar Rap.

O autor conclui discutindo o papel da educação racial na mudança de pensamentos e atitudes, educação pela abolição do racismo, como processo fomentador da alteridade, sociabilidade e respeito às diferenças.


Branquitude

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Eu a Supremacia Branca: Como reconhecer seu privilégio, combater o racismo e mudar o mundo

Como reconhecer seu privilégio, combater o racismo e mudar o mundo.  Um livro para todos que estão prontos a examinar de perto as próprias crenças e preconceitos, e a fazer o trabalho necessário para mudar o mundo.

Baseado num desafio no Instagram que conquistou a atenção de pessoas ao redor do mundo, Eu e a supremacia branca conduz os leitores por uma jornada de 28 dias, com sugestões de exercícios e dicas para realizar o necessário e indispensável trabalho capaz de levar a uma melhoria das relações sociais.

Revisto e atualizado após o desafio on-line, aqui o trabalho antirracista proposto será aprofundado com contextos históricos e culturais, emocionantes histórias pessoais, definições expandidas, e exemplos e referências, oferecendo aos leitores o que cada um precisa para entender o racismo e desmontar seus preconceitos.

Foi originalmente publicado em 2020 e entrou na lista de best-sellers do The New York Times.

LAYLA F. SAAD


Branquitude


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