A gêneses do movimento negro evangélico no Brasil

Reconstruir a história do Movimento Negro Evangélico Brasileiro (MNE) é uma tarefa complexa, sobretudo porque esse é um processo ainda em andamento, com suas fronteiras borradas. Essa dificuldade parece ser maximizada na medida em que olhamos com maior vagar para o interior do próprio campo religioso cristão não católico, nomeado genericamente neste texto como “evangélicos”.2 Entretanto, é possível observar uma espécie de fio de Ariadne3 que conduz seus agentes no desenvolvimento de suas ações.

Pode-se falar em Movimento Negro Evangélico (MNE), por um lado, na medida em que se tem como referencial um conjunto de ações produzidas por grupos consolidados ou em construção, cujos agentes são pessoas que se autoclassificam como “evangélicas” e negras (pretas ou pardas, de acordo com a nomenclatura adotada pelo IBGE). Por outro, deve-se considerar que, em geral, os destinatários dessas atividades são também pessoas negras que participam de alguma igreja classificada como “evangélica”.

O combate ao racismo no interior das igrejas, em particular, e na sociedade, em geral, pode ser tomado como o elemento central a partir do qual se organizam as diversas iniciativas com temática racial empreendidas por esses grupos. Tais iniciativas têm em comum o fato de serem organizadas com base em certa orientação teológica-pastoral de inspiração protestante. Isso significa que, mais do que tratar de um grupo específico, para compreender o MNE, é preciso, antes de tudo, mapear as diversas atividades presentes nas várias igrejas para, em seguida, proceder a análise de suas estruturas.

Neste texto será apresentado de maneira panorâmica uma historiografia do MNE, a partir da atuação de alguns de seus agentes paradigmáticos. Discute-se também o modo como os símbolos da herança africana no Brasil são acionados nas ações desses grupos. Os dados que seguem foram recolhidos durante a pesquisa de campo,4 que privilegiou a produção escrita dos agentes evangélicos, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut, que reúne exclusivamente negras e negros evangélicos) além de conversas informais.

É importante ressaltar que, embora a participação das mulheres seja fundamental para a consecução do MNE, pastores e lideranças masculinas ganham proeminência na narrativa pública sobre a gênese do movimento. Em parte, esse fenômeno é justificado por alguns interlocutores5 pelo fato de que o sacerdócio no âmbito das igrejas cristãs (católicas e aquelas originárias da Reforma) é exercido quase que exclusivamente por homens, posição controversa entre os agentes. Atém mesmo entre as lideranças, o lugar que o sujeito ocupa na hierarquia religiosa impacta na atuação, como se verá mais adiante.

Partindo do princípio de que os discursos não constituem um campo separado das práticas sociais que produzem as identidades com base em sinais diacríticos da identificação étnica-racial seletivamente construídos, os grupos étnicos são “vistos como formas de organização de novas e adaptadas identidades ao “aqui e agora’” (Cunha 2009a:226). Entende-se que o campo religioso brasileiro, nas últimas décadas, tem sido um poderoso “aqui e agora” a impelir as religiões a também se posicionarem frente à diversidade étnico-cultural de seus fiéis.

Ao descrever os processos discursivos (Asad 2003) que orientam as práticas desses sujeitos, pretende-se verificar como são produzidos os conceitos em disputa (“identidade negra”, “cultura negra”, “negritude”, “herança africana”, “pan-africanismo”, “afrocentrismo” etc.), os quais põem segmentos religiosos distintos em diálogo na esfera pública. Com isso, não se imputa às categorias investigadas significados a priori – pelo contrário, queremos compreender seu processo de elaboração.

O conjunto de categorias operacionalizada pelos agentes é tomada como “nativo”, cujo significado não está apartado dos contextos e dos sujeitos que o empregam. Desse modo, importa saber como os consensos são estabelecidos por meio de discursos e como práticas ganham significados na esfera pública, põe atores em relação e promovem a efetivação de direitos. O recurso das aspas nos ajudará a colocar em suspeição esses termos, tal como fez a Manuela Carneiro da Cunha (2009b:373) ao tratar da noção de cultura e “cultura”.

Ganha relevo, neste debate, os deslocamentos de sentidos que são operados pelos agentes nas categorias de classificação “etnia” e “raça”, com base em certa noção de “cultura”. Isto é, como se verá mais adiante, a noção de raça acionada por alguns agentes em certos momentos parece apontar para o sentido de grupo étnico tal como fora definido por Fredrik Barth (1969).

Entre os anos 1970 e 1980, observa-se a gênese de duas posturas distintas frente às heranças culturais africanas no Brasil: combate e certa indiferença. Ou seja, por um lado, igrejas evangélicas neopentecostais assumem como elemento central da sua ação proselitistas a demonização das divindades, elementos e valores das religiões afro-brasileiras, inclusive daqueles presentes nos ícones da “identidade nacional”, como a capoeira, o carnaval, o samba etc. (Mariano 1999Silva 2007). Por outro lado, no âmbito das igrejas protestantes históricas emergem alguns coletivos de evangélicos negros que assumem um discurso de salvação que leva em consideração o pertencimento étnico-racial de seus fiéis sem, no entanto, ressaltar o que fora tradicionalmente evidenciado como “símbolos da cultura negra” (Burdick 2004).

Esse quadro desenhado no campo “evangélico” opõe-se ao contexto católico, pois, desde os anos de 1970, lideranças (formadas por leigas e leigos, padres e bispos) empreendem uma série de ações pastorais dentro e fora da igreja, em prol da população negra assumindo e ressignificando elementos culturais de origem africana. Tais atividades voltam-se para dentro da igreja, como a proposição de “liturgias inculturadas” (Oliveira 2016), e para fora, associando-se a outros coletivos do movimento negro (Oliveira 2017).

Neste texto, parte-se do pressuposto de que, atualmente, há um descentramento da identidade, isto é, o indivíduo não pode mais ser identificado com base em dados apriorísticos ou essencializantes. É por força da globalização que as identidades centradas e “fechadas” são deslocadas e pluralizadas. Dessa forma, a construção da identidade via interação com o grupo de origem não resulta em apenas uma definição, mas “produz uma variedade de possibilidades e novas posições de identidades… [tornando] as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixa, unificadas ou trans-históricas” (Hall 2003:87).

Nesse contexto, considerando que no jogo das identidades os sujeitos estão “constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes” (Hall 2009:328), a constituição do Movimento Negro Evangélico participa dessa disputa pela autoridade em legitimar a “identidade negra” com base em seus pressupostos doutrinários. Dessa forma, os agentes religiosos buscam autoridade para enunciar um discurso tanto na esfera pública, acerca das políticas étnico-raciais, quanto no exercício do proselitismo, uma vez que seriam as religiões também articuladoras na construção da “negritude”.

O método de coleta de dados adotado abrangeu três níveis complementares: documental, observação participante (em campo) e entrevista e/ou coleta de depoimentos dos agentes observados. A pesquisa de campo privilegiou a produção escrita de lideranças religiosas, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut, que reúne exclusivamente negras e negros evangélicos) e o acesso aos registros (entrevistas, reportagens etc.) das atividades feitas pelos próprios religiosos e divulgadas na mídia.

Este texto está dividido em duas partes: na primeira, apresenta-se o processo de configuração do MNE e, na segunda, discute-se como os símbolos da “herança africana no Brasil” são acionados por esses agentes, na conformação de suas ações pastorais.

Por Rosenilton Silva de Oliveira – Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil.
Coordenador do Fateliku – grupo de pesquisa sobre educação, relações étnico-raciais, gênero e religião. Doutor em Antropologia.


Para ler a Tese completa baixe o arquivo em PDF:

“Hoje eu orei, Ele é negro”: a gêneses do movimento negro evangélico

Movimento Negro Evangélico de Pernambuco repudia o ato de racismo religioso sofrido pelo Terreiro das Salinas

O Movimento Negro Evangélico de Pernambuco vem através desta nota repudiar de maneira veemente o ataque contra o Ilê Axé Ayabá Omi, entendendo que é necessária uma resposta urgente do poder público garantindo a liberdade e diversidade religiosa que são direitos humanos e básicos.

Sabemos que o incêndio criminoso que ocorreu no Terreiro das Salinas no dia 01 de janeiro de 2022, é fruto do racismo religioso que constitui esse país. O deus dos fundamentalistas cristãos é um deus que queima terreiros, um deus morto, que nada tem a ver com o Deus que confessamos. Por isso é nosso dever dizer que o único motivo para as violências sofridas pelas religiões de matriz afro-brasileiras e indígenas, é o racismo. Essa lógica que nos desumaniza, que demoniza as nossas crenças e como olhamos para o mundo. Acompanhamos a um tempo o trabalho do Terreiro de Salinas, seu compromisso com a comunidade local no enfrentamento à fome e também no reforço escolar que é oferecido no local.

Nos comprometemos a acompanhar todo o processo de reconstrução do terreiro e também de dialogar de maneira profunda com as nossas irmãs e irmãos vítimas de um ato tão violento, que é o de ter seu sagrado violado.

Por último, queremos dizer que o ministério de Jesus de Nazaré encarna nos perseguidos da história, nos que são demonizados e excluídos. Nos que são assassinados e empobrecidos todos os dias no Brasil. Se existe algo diabólico no contexto religioso brasileiro, se chama racismo religioso. Isso sim que é obra do mal, dos que tentam matar, roubar e destruir quem somos como comunidade negra. Por este motivo, também, não toleraremos qualquer associação das religiões de Matriz Africana com o inferno. Nossas irmãs e irmãos de terreiro merecem respeito, humanidade e liberdade para viverem plenamente a sua fé.

Colegiado do Movimento Negro Evangélico de Pernambuco

Nota de solidariedade à pastora Odja e sua família e de repúdio às ameaças de morte sofridas

Nota de solidariedade à pastora Odja Barros e sua família e de repúdio às ameaças de morte sofridas.

A Rede Afrokut enfatiza seu repúdio contra ameaças de morte sofridas pela pastora Odja Barros, da Igreja Batista do Pinheiro, Maceió em Alagoas. As ameaças contra a vida da pastora e teóloga Odja Barros e sua família ocorreram após a religiosa ter celebrado no dia 11 de dezembro de 2021 um casamento homoafetivo entre duas mulheres. O casamento ocorreu em um salão de festas de Maceió e foi uma das primeiras cerimônias realizadas no país entre pessoas do mesmo sexo por pastores batistas — a primeira que se tem notícias celebrada por uma mulher, que em muitas igrejas batistas sequer podem exercer a função de pastora.

Conforme o site g1, o pastor Wellington Santos, da Igreja Batista do Pinheiro e esposo de Odja Barros, a família toda está assustada com as ameaças.

Desde 2016 nós somos criticados pelo nosso trabalho junto às minorias, até campanha pessoal contra nós foi realizada. Mas quando isso toma essa proporção, de alguém ameaçar dar cinco tiros na cabeça da minha esposa, e cita que está monitorando minha família, nos dá a certeza que estamos vivendo uma barbárie. O debate deve acontecer no campo das ideias, quando as discordâncias viram ameaças de morte, é sinal disso”, relatou o pastor.

A Igreja Batista do Pinheiro é uma igreja acolhedora para todas as pessoas, pratica o cristianismo com respeito e apoio a todos os setores excluídos e oprimidos na sociedade, somando com os movimentos sociais na defesa dos direitos humanos. A Igreja Batista do Pinheiro tem sido um foco de resistência contra várias formas de injustiças, um exemplo notável foi a criação da Pastoral da Negritude, fundada por um grupo de pessoas comprometidas em despertar a comunidade evangélica para uma consciência negra, com a proposta de fazer uma releitura da bíblia na ótica étnico racial, resgatando a presença e a cultura africana na história bíblica. Também contribuir na inclusão social dos(as) afrodescendentes, na luta contra a discriminação racial, preconceitos, e xenofobia.

Portanto, manifestamos nossa incondicional solidariedade à pastora Odja Barros e a toda comunidade do Pinheiro e cobramos as autoridades do estado de Alagoas a identificação e punição dos covardes agressores, que se escondem com o vergonhoso véu do anonimato, respondam pelos seus atos.

Rede Afrokut

Imagem: arquivo pessoal

A dimensão racial no pentecostalismo brasileiro, uma questão difícil

Na última pesquisa do Datafolha (jan/2020) que atualizou o perfil sociodemográfico dos evangélicos no Brasil, um dado já esperado e constatado anteriormente se repetiu: pretos e pardos respondem por nada menos do que 60% dessa população. Se o Brasil é um país cada vez mais evangélico, o universo evangélico também é profundamente brasileiro em seus traços raciais. Para que se dimensione esse dado basta dizer que, no cruzamento entre raça e religião, segundo o censo do IBGE de 2010, pretos e pardos correspondiam a 70% dos que se autodeclararam pertencentes ao candomblé. No entanto, esses são percentuais relativos, e não números absolutos, da presença daqueles se autodeclaram negros nas duas religiões. Enquanto no caso do candomblé estamos falando de um contingente de menos de 168 mil pessoas, no caso das igrejas evangélicas esse volume está próximo de 45 milhões de pessoas.

No entanto, se os números são contundentes, qualitativamente a conversa é outra. A visibilidade pública dos evangélicos do país não é apresentada a partir de seus contornos raciais. Pouco se fala sobre essa presença negra. As formas de apresentação pública desses grupos não passam por aí e mesmo as pesquisas das ciências sociais que já produziram milhares de teses e dissertações sobre o campo evangélico são tímidas quanto à análise mais detida da dimensão racial. Em que pese importantes exceções, como aquelas feitas pelo Movimento Negro Evangélico e pelas formulações que estão sendo feitas a partir da Teologia Negra, no interior dos movimentos negros a presença dos evangélicos é de difícil acomodação. Soma-se a isso o fato de que os líderes de algumas das maiores igrejas evangélicas do país e aqueles com maior penetração midiática e política são brancos, contribuindo para uma face pública branca de um rebanho de fiéis negros.

Sobretudo pelos pesquisadores do tema, a invisibilidade da raça diante de um dos principais universos religiosos brasileiros é uma questão de urgente reflexão. Regina Novaes, Lívia Reis, Ronilso Pacheco, Jacqueline Teixeira, José Carlos dos Anjos e João Chaves são apenas alguns dos pesquisadores que direta ou indiretamente têm se dedicado ao assunto. Em algumas de suas formulações chama a atenção o esforço de produzir análises sobre o crescimento evangélico no Brasil justamente a partir de uma matriz de pensamento que dá centralidade à questão da raça. E é dessa matriz que algumas das reflexões mais instigantes têm emergido, enquadrando o próprio processo massivo de conversão pentecostal pelo qual o Brasil vem passando também como uma resposta racial.

Nesse caso, não se trata simplesmente de reproduzir certo senso comum que apela à “recusa da raça” por parte dessa parcela de fiéis, mas sim de reconhecer que, ao aderir ao pentecostalismo, ela inicia também uma operação de branqueamento. Não há nenhuma denúncia aqui, trata-se de uma modalidade de resposta ao racismo estrutural da sociedade brasileira, uma resposta que também se apresenta como um plano de fuga. Há pouca novidade nesse processo. Ele apenas reproduz o mecanismo colonial de esvaziamento da centralidade da raça nas relações de poder e, ao mesmo tempo, oferece como contrapartida dispositivos de subjetivação de um horizonte não negro. É isso o que também Frantz Fanon descreve em Pele negra, máscaras brancas: “Da parte mais negra de minha alma, através da zona sombreada, irrompe em mim este súbito desejo de ser branco. Não quero ser reconhecido como negro, mas como branco”. Mais uma vez, o que está em operação nesse processo é a própria estrutura racializada das sociedades coloniais e não, como alguns querem crer, que esse desejo é a prova de que a força estrutural do racismo é menor do que afirmam os movimentos identitários.

Há inúmeras questões teológicas, políticas e também relativas a contextos mais específicos, além de reações importantes de movimentos sociais nesse debate. Além disso é necessário reconhecer algumas ambivalências do pentecostalismo, que ao mesmo tempo que embranquece também produz lugares de circulação iconográficas de corpos negros. Aspecto que se relaciona com o crescimento de lideranças negras evangélicas em igrejas e partidos políticos, algo certamente associado à (re)emergência pública do debate racial no país.

Seja como for, o que importa aqui é jogar algumas luzes sobre mais essa questão difícil envolvendo esse fenômeno fundamental que atravessa o Brasil desde o fim do século XX, o crescimento evangélico, colocando-o em perspectiva com a força descomunal e invariavelmente pouco tratada do racismo brasileiro.

por Rodrigo Toniol – Professor de antropologia da UFRJ e Pesquisador do LAR/Unicamp.

Fonte:  Estado da Arte.

Imagem: Afrokut


Produção científica sobre o Movimento Negro Evangélico

Grupo de Estudos de Intelectuais Negras e Negros do Neabi/UFS

 
Na próxima quarta-feira (24/11), o Grupo de Estudos de Intelectuais Negras/Negros do Neabi/UFS iniciará um novo módulo de estudos, dessa vez se debruçando sobre a Teologia Negra de James Cone (1938-2018). A intenção é ler e discutir, sempre de forma coletiva, os livros “Teologia Negra” (1970) e “O Deus dos Oprimidos (1975).
 
Para abrir a programação, Leno de Andrade dará sua  contribuição abordando a constituição histórica e hermenêutica da Teologia Negra nos Estados Unidos, com intuito de evidenciar o contexto histórico, social, político e teológico, do qual a Teologia Negra emerge, os seus primeiros desdobramentos e o papel que o jovem James Cone assume nesse processo.
 
Se a linguagem teológica se baseia nas tradições do Antigo Testamento, então deve considerar o testemunho unânime dessas tradições sobre o compromisso de Iahweh com a justiça a favor dos pobres e dos fracos. Concordemente, não pode evitar de tomar partido em política, e o partido que a teologia deve tomar é revelado pelo partido que Iahweh já tomou. Qualquer outro partido, seja com os opressores ou com a neutralidade (que não é nada senão uma identificação camuflada com os que dominam), não é bíblico. Se a teologia não ficar ao lado dos pobres, então ela não pode falar por Iahweh, que é o Deus dos pobres”. James ConeO Deus dos Oprimidos (1975).
O encontro será via Google meet, a partir das 17h.  Mais informações:
 
 
 

O racismo religioso se apropriou até mesmo da bíblia para atacar tudo que vem da África

Interpretações racistas da Bíblia foram base para a escravidão e sustentam o racismo e a intolerância religiosa ainda hoje

Uma parte da história dos irmãos Caim e Abel é muito conhecida: o primeiro matou o segundo por inveja. Mas ela tem outras camadas. Uma delas foi alvo de uma interpretação teológica racista que serviu de base para a escravidão e ainda hoje sustenta o racismo e a intolerância religiosa. Quando Caim assassinou seu irmão, ele recebeu de Deus um sinal. A Bíblia não descreve esse sinal, mas não vacila quanto ao seu objetivo: proteger Caim.

“O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse qualquer que o achasse.” (Gênesis 4.15). É o que diz o trecho. Ainda assim, entre os séculos XV e XVI, teólogos racistas elaboraram um discurso que apontava a marca como negra e sendo um sinal do pecado; que Deus havia tornado Caim um homem negro como punição.

 É nossa tarefa usar a mesma Bíblia para denunciar esses crimes, esse pecado

Segundo Ras André Guimarães, educador popular e pastor da Igreja Metodista Filadélfia, essa não é a única passagem bíblica que foi distorcida nesse sentido. Em um episódio de embriaguez de Noé, Cam, seu filho, o vê deitado nu em uma rede. Ao se deparar com a cena, ele a relata a seus irmãos, o que foi considerado um desrespeito. Quando Noé toma conhecimento do ato de seu filho, ele amaldiçoa seu neto Canaã, filho de Cam.

Noé diz que Canaã seria escravo de seus irmãos. E aí se construiu um discurso de que Canaã seria a África, logo todos os africanos seriam escravos desses irmãos. Então, tanto a maldição de Caim quanto a de Canaã são utilizadas para justificar a escravidão. E aí a gente vai ver todo um processo de ocupação de territórios da América com esse tipo de discurso de que o negro é fruto do pecado.”, explica Ras André.

Segundo o pastor metodista, a insinuação é de que existe uma ordem divina que justifica a exploração desse povo.

E aí qual o grande problema: a mentalidade religiosa, tanto do protestantismo, quanto do catolicismo, vai absorver esse imaginário, essa perspectiva racista, para justificar seu distanciamento com os pretos, descendentes de africanos. A leitura bíblica construída daí pra frente é toda de negação da figura negra”, complementa.

Nessa perspectiva, ele também acrescenta que a igreja cristã não rompeu com essa matriz escravagista.

Quando ela se depara com um país de maioria negra e essa maioria tá numa situação de sofrimento, não há resposta pra essa dor e sofrimento por parte dessas igrejas. Quem vai chorar pelos meninos mortos com 111 tiros? Pelos rapazes presos e torturados no supermercado? Há o imaginário de que aquilo é o destino, permissão de Deus”.

Para ele, todos os textos da Bíblia podem ser usados para combater o racismo:

O texto bíblico precisa ser lido com o viés das práticas de justiça, da mudança que Jesus trouxe. Salvação é as pessoas se livrarem desse inferno, do racismo, da intolerância religiosa. Quem são os samaritanos do tempo presente? São os povos subalternizados de hoje. Estão nas comunidades empobrecidas, na população indígena, nos terreiros de Candomblé.”.

Se uma igreja se coloca como cristã – que tem como sua base a vida, o testemunho, a luta e o serviço de Jesus Cristo – não há como separar o seu papel da luta antirracista. Se não há abraço, acolhimento, se uma criança sofre bullying por ser do Candomblé, a tarefa da igreja é denunciar. Conversar com os/as fiéis, apresentar textos que provocam o senso por justiça. Ouvir os relatos de quem sofre com a intolerância religiosa. Acho que essa é a nossa maior tarefa.”.

E todo esse racismo se estende ao campo religioso.

Em pleno século 21, espaços são depredados, pessoas são impedidas de trabalhar com suas indumentárias, deixam de conseguir um emprego. Tudo por conta de uma mentalidade que foi construída lá atrás, por alguém que usou a Bíblia para dizer que tudo que vinha da África era maldito. É nossa tarefa usar a mesma Bíblia para denunciar esses crimes, esse pecado.”, afirma o pastor.

A intolerância contra as religiões de matriz africana

Iyá Márcia destaca a importância do diálogo inter-religioso na luta contra a intolerância. Ela cresceu vendo sua mãe pedir e dar a benção a pastores/as, reverendas/os, padres.

Eu a questionava, falava que aquelas pessoas não eram do Candomblé e ela respondia que a gente pode tomar a benção de qualquer pessoa. ‘É muito bom ouvir um ‘Jeová lhe abençoe’, ‘Deus te abençoe’, dizia. O diálogo inter-religioso é promotor da paz.”.

O racismo religioso, dentre tantas formas de ataque, traz consigo a demonização das divindades da África. Diz que são “do mal”, mas é algo tão enraizado que as pessoas nem mesmo sabem dizer o porquê de pensarem assim. Foi naturalizado no imaginário social. E é preciso se refletir: religiões como o budismo ou o espiritismo não sofrem ataques como as religiões de matriz africanas. Por vezes, são até romantizadas.

Iyá Márcia de Ogum, ialorixá criada no Candomblé, ironiza a demonização feita por cristãos/as contra as religiões de matriz africana. Ela afirma que os povos de terreiro são acusados de cultuarem o diabo, mas o diabo sequer existe na sua cultura.

Diabo é uma nomenclatura das religiões cristãs. No Candomblé, existe o culto à ancestralidade e aos Orixás – Ogum, Oxum, Oyá, Iroko, logun edé.”.

Como exemplo escancarado de racismo, ela cita o caso da mãe que perdeu a guarda da filha após a jovem passar por rituais de iniciação no Candomblé, em São Paulo.

Só aconteceu porque se tratava do Candomblé. Com qualquer outra religião não haveria essa postura. A gente cresce ouvindo que a Justiça deve ser imparcial, mas a nossa termina sendo tendenciosa quando deixa de ouvir uma mãe para ouvir terceiros/as.”.

Ela também denuncia as estruturas negligentes do Estado para tratar do assunto.

Infelizmente nós não temos delegacias especializadas para receber as denúncias de racismo religioso e tomar as providências cabíveis contra os criminosos no nosso país. Muitas vezes, o/a criminoso/o não é chamado/a para ser ouvido/a no caso. Só se for um flagrante, como aconteceu uma vez com o busto de Mãe Gilda.”.

O busto de mãe Gilda, localizado no parque metropolitano do Abaeté, em Salvador, já foi alvo do racismo religioso na forma da depredação por duas vezes – em 2016, sendo reformado no mesmo ano, e em 2020, à luz do dia e em plena pandemia. No caso mais recente, o agressor disse que atacou a imagem da Mãe de Santo “a mando de Deus”. À época, a ialorixá Jaciara dos Santos, filha de Mãe Gilda, questionou: “que Deus é esse?”.

A CESE na luta e prática antirracista

A CESE entende o racismo como gerador de injustiças contra pessoas negras e sempre apoiou movimentos, organizações e grupos deste segmento. Nos últimos 15 anos, foram cerca de 660 projetos apoiados no campo da luta antirracista, beneficiando 314 mil pessoas com um investimento de 5 milhões de reais. Neste Dia da Consciência Negraa CESE reafirma a sua Política Institucional de Equidade Racial, na qual estão definidas estratégias para a superação do racismo no âmbito da gestão e ação institucionais.

Helivete Ribeiro,  pastora da Aliança de Batista do Brasil e presidenta da CESE, destaca que, como mulher negra evangélica, sabe que o racismo presente na sociedade tem reflexo nas comunidades de fé.

Poucas mulheres negras são pastoras, diaconizas ou seminaristas. Falta representatividade nas igrejas, na história e na tradição cristã, que na maioria das vezes, ainda é apresentada de forma eurocentrada, branca e heteronormativa.”, afirma.

Ela reforça a necessidade de se possibilitar a construção de uma teologia mais inclusiva, incorporando elementos da cultura negra sem demonizá-los, valorizando a identidade negra. 

Como evangélica, entendo que devemos estudar a liturgia universal que aceita todas as pessoas sem discriminação. Não podemos negar que há uma rejeição da herança cultural e religiosa africana que tem levado muitos/as de nós a negar nossa identidade racial para sermos ‘bons e boas cristãs’.’”.

“Como diz Lélia Gonzalez, escritora negra: ‘tonar-se negra é uma conquista’.

Ser mulher negra, pastora evangélica, ativista, divorciada, sim, é uma conquista. Não se trata só de mim. Como presidenta da CESE, me orgulho em fazer parte de uma organização que reconhece a existência dos racismos – institucional, estrutural, ambiental, religioso – na construção histórica do Estado e da sociedade brasileira e atua na defesa e garantia de direitos e tem o compromisso com a luta e a prática antirracista, finaliza a pastora Helivete.

As pastoras Sônia Mota e Bianca Daébs, respectivamente Diretora Executiva e Assessora para Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da CESE reafirmam a importância do diálogo entre as religiões para a promoção da paz.

Posturas exclusivistas, verdades absolutas, demonização da religião do outro não contribuem para uma cultura de paz, que é o que, a princípio, as religiões defendem.”, afirmam,

 Fonte:  CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço

O ativismo negro evangélico no Brasil

Muitos de nós já ouvimos algo sobre Martin Luther King Jr. e a participação das black churches na luta pelos direitos civis dos negros nos EUA. Entretanto, quando pensamos na participação política dos evangélicos ou no movimento negro no Brasil, ambos os fenômenos parecem tão distintos como água e óleo.

Haveria fenômeno semelhante no Brasil? Seria possível articular politicamente tais identidades racial e religiosa em nosso contexto, sem prejuízo de alguma delas? As respostas estão indicadas: a expansão demográfica evangélica, a onda de afirmação racial e a crescente mobilização política de minorias e segmentos historicamente discriminados têm seu desaguadouro em um ativismo negro evangélico que, embora tenha berço nos anos 1970, reemergiu publicamente com mais força e visibilidade nos últimos anos. Seus atores, coletivamente organizados, promovem o antirracismo e incidem nas igrejas e na sociedade em geral a partir de suas crenças e valores religiosos.

Para compreensão desses processos, os textos sugeridos a seguir contribuem ao desnaturalizar as identidades racial e religiosa, nos lembrando de que não são entidades fixas, mas sim posições relacionais e situacionais que devem ser consideradas historicamente. Com diferentes abordagens teórico-metodológicas, todos privilegiam os agenciamentos em suas análises e nos previnem de determinismos. Diante disso, o desafio que se abre é compreender tanto o modo como negros e evangélicos se realizam em suas experiências cotidianas, quanto suas operações no expediente das arenas públicas de que participam.

Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil

Ricardo Mariano (Loyola, 1999)

Publicado em 1999, o best-seller da sociologia da religião apresenta os resultados de uma pesquisa de mestrado concluída em 1996. O volume contém uma tipologia do pentecostalismo brasileiro, cuja evolução teria se dado por três “ondas”: a primeira, que data do início do século 20 e inclui denominações como Assembleia de Deus e Congregação Cristã no Brasil; a segunda onda, também chamada “deutero-pentecostal”, marcada pela ênfase na cura divina e pelo uso mais intensivo dos meios de comunicação, sobretudo o rádio; e a terceira onda, a “neopentecostal”, objeto central da pesquisa.

As igrejas neopentecostais, aponta o autor, apresentavam valores e práticas religiosas que, em alguma medida, eram distintivas das demais, como a valorização da teologia da prosperidade; o apelo a noções de “guerra espiritual” e a liberalização de usos e costumes. Na soma, tratava-se do diagnóstico de um processo social específico: o ascetismo contracultural que definiu os evangélicos pentecostais por décadas estava sendo reduzido; o neopentecostalismo era a ponta de lança de uma acomodação sociocultural dos evangélicos, agora cada vez mais “mundanos”.

Para além da radiografia desse segmento religioso e de suas mutações, o texto ilumina a sua expansão demográfica e crescente visibilização ao mostrar que, enquanto cresciam e se tornavam mais visíveis e mais integrados às esferas seculares de ação, os evangélicos também ampliavam sua disponibilidade política e adquiriam maior plasticidade cultural. É um livro incontornável para entender o lastro das subjetividades emergentes desse grupo religioso e como chegamos ao quadro atual em que a identidade evangélica e o ativismo político evangélico tornaram-se tão relevantes.

A queda do profeta negro: o significado ambivalente de raça no pentecostalismo

John Burdick (Comunicações do ISER, 1989)

O antropólogo estadunidense e estudioso brasilianista, John Burdick, certamente foi quem mais contribuiu para os estudos sobre a questão racial no meio evangélico. Suas pesquisas se estenderam dos anos 1980 até a década de 2010 e incluem dados e reflexões sobre a produção musical negra evangélica; as relações raciais em igrejas e o ativismo negro evangélico propriamente dito.

No artigo “A queda do profeta negro”, Burdick apresenta dados etnográficos de pesquisa realizada em uma igreja pentecostal e uma paróquia católica, ambas na Baixada Fluminense (RJ). O autor mostra como, na comunidade evangélica, as tensões raciais eram transfiguradas e expressas simbolicamente em linguagem ritual durante os cultos e reuniões dos fiéis; como carisma e identidade racial se combinavam e como a política eclesiástica, ainda que feita em termos estritamente religiosos, era atravessada pelo fator raça. Seu texto mostra a raça produzindo a religião e não o contrário, como poderíamos supor de imediato.

Why is the Black Evangelical Movement Growing in Brazil?

John Burdick (Journal of Latin American Studies, 2005)

Nesse artigo, Burdick atualiza sua agenda de pesquisa e tenta responder à pergunta: “por que o movimento negro evangélico está crescendo no Brasil?” Sua resposta é a de que o crescimento desse ativismo se deu por fatores internos como a disponibilidade de lideranças e o uso da internet para comunicação e organização coletiva a nível nacional, mas também às favoráveis estruturas de oportunidade política como a crescente problematização pública do racismo – inclusive oficialmente reconhecido pelo Estado brasileiro desde 1995. Além disso, os ativistas negros evangélicos adotavam enquadramentos em que, habilmente, incluíam o racismo sob o guarda-chuva dos “direitos humanos”, contra os quais as resistências seriam menores dentro das igrejas.

Burdick também reitera sua observação já anotada em textos anteriores de que haviam preconceitos por parte de ativistas do movimento negro tradicional contra evangélicos, o que dificultava o diálogo e a colaboração cada vez mais necessária entre os grupos, afinal os evangélicos já somavam quantias consideráveis da população negra brasileira em 2005. O texto também chamou a atenção, com notável intuição, para a presença de lideranças públicas negras evangélicas (Reginaldo Germano, Benedita da Silva, entre outros) e a possibilidade de o movimento negro capitalizar politicamente com o eleitorado evangélico.

What is the Color of the Holy Spirit? Pentecostalism and Black Identity in Brazil

John Burdick (Latin American Research Review, 1999)

Nesse artigo, John Burdick discute as experiências de negros evangélicos e o modo como articulavam marcadores raciais e religiosos no cotidiano. O autor discorda da opinião corrente entre setores do movimento negro de que a religiosidade evangélica seria demasiadamente “assimilacionista” e que, portanto, levaria seus fiéis negros a abandonar sua identidade racial em favor da fé. Com extensa pesquisa de campo e trabalho etnográfico no Rio de Janeiro, Burdick argumenta que a socialização dos negros nas igrejas pentecostais das periferias urbanas os estimulava em sua autoestima e autoaceitação. Os padrões de beleza feminina tal como estabelecidos na sociedade eram relativizados ou subvertidos em função de noções espirituais de beleza, por exemplo, assim como as dinâmicas de contração de namoro e casamento eram menos restritas para as mulheres negras em comparação com os ambientes extra-eclesiais, onde estatisticamente sua preterição era mais frequente.

Junto disso, a produção cultural dos negros nas igrejas por meio da música ou dos carismas religiosos exercidos em suas práticas individuais e comunitárias contrastava com os estigmas de que costumavam ser objetos fora da igreja, seja no trabalho, no espaço doméstico, entre outros. Em resumo, o que o antropólogo demonstra é que, ao contrário do que supunha um senso comum, a experiência racial dos negros evangélicos adquiria novos significados para esses indivíduos a partir de sua fé, de modo que as identidades se interpenetravam em composições complexas. A realização identitária do negro evangélico não estava comprometida.

Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso

Paula Montero (Religião & Sociedade, 2012)

O artigo marcou uma nova agenda para os estudos do fenômeno religioso no Brasil. Em lugar das pesquisas de viés mais antropológico, preocupadas com os componentes cosmológicos das religiões, e das abordagens sociológicas clássicas às voltas com noções estanques de secularização e modernidade, Montero propõe a abordagem das religiões como discurso. A própria esfera pública não seria mais que um fluxo de interações discursivas, um espaço de visibilidade no qual os atores articulam significados diversos e travam disputas o que, de pronto, exclui abordagens normativas e teleológicas das manifestações públicas da religião e abre espaço para estudos mais fenomenológicos. Para isso uma boa perspectiva seria a das controvérsias públicas – elas seriam momentos/situações de visibilidade pelas quais o investigador pode verificar a produção de legitimidade e de categorias pelos agentes religiosos durante as próprias interações, diga-se, sempre conflituosas. Descrever como a religião é produzida em público tornou-se o programa de pesquisa fundamental para a compreensão dos ativismos político-religiosos no Brasil contemporâneo.


Vítor Queiroz de Medeiros é cientista social e mestrando em sociologia (USP). Pesquisa o ativismo negro evangélico brasileiro e integra o projeto temático “Religião, Direito e Secularismo: a reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo” (Cebrap/Fapesp). Recebeu, em 2021, o  Prêmio Lélia Gonzalez de Manuscritos Científicos sobre Raça e Política na categoria “mestrando”.

Este texto faz parte da série de materiais que serão publicados ao longo de 2021, no Nexo Políticas Públicas, pelos vencedores da primeira edição do Prêmio Lélia Gonzalez de Manuscritos Científicos sobre Raça e Política.

Fonte: Nexo Políticas Públicas

Morre o reverendo Antonio Olímpio de Sant’Ana

Morreu ontem (16/07/2021) em Piracicaba (SP), aos 84 anos, o reverendo Antonio Olímpio de Sant’Ana, da Igreja Metodista do Brasil, ativista de direitos humanos e pioneiro na luta antirracista nas igrejas protestantes no Brasil. Ele estava em cuidados paliativos devido a um câncer no estômago. O reverendo Sant’Ana deixa esposa e filhas.

O reverendo “Antonio Olímpio de Sant’Ana” deixa um grande legado

“Minha religião é Metodista, mas a minha espiritualidade é negra. Antes de ser metodista e cristão, sou negro.” Reverendo Sant’Ana

Sant’Ana se transformou num dos mais ativos militantes religiosos na luta contra o racismo. Uma militância que extrapolou as fronteiras brasileiras. Seu quilométrico currículo inclui publicações nacionais e internacionais e participação na elaboração do documento oficial brasileiro para a Conferência da ONU contra o Racismo, em Durban, África do Sul, em 2001. Foi membro do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), do Conselho Latino Americano de Igrejas (CLAI) e do Conselho de Igrejas Evangélicas Metodistas da América Latina (Ciemal).

Reverendo Sant’Anna não atuou só em entidades religiosas, mas em várias outras do Movimento Negro e da luta pelos Direitos Humanos, foi membro do Conselho do Olodum por cerca de 25 anos.

Segue um singelo recorte da vida, pensamento e luta de Antonio Olímpio de Sant’Ana, nas suas proprias palavras:

Direitos Humano versus Ditadura, tortura, assassinatos e o silêncio das igrejas

O despertar para os direitos humanos passa sempre pela dor e sofrimento do povo. Passa pela prática da injustiça geradora de tanta miséria e corrupção. E não nos esqueçamos que, entre aqueles que introduziram a discussão sobre Direitos Humanos no Brasil, estão algumas Igrejas que, por meio de seus vários grupos liderados por teólogos, sociólogos, antropólogos, educadores, pastores(as) e líderes populares, todos impulsionados pela fé, introduziram no interior das igrejas locais a discussão sobre a vinculação profunda que havia entre os direitos humanos e a pessoa humana. Muitos “irmãos e irmãs” ignoraram, mas muitos de nós nos tornamos frutos daqueles momentos de esperança, amor e potente fé que superavam os medos e covardias diante da ditadura opressora. Havia uma igreja atuante, presente na liderança e na base de nossas igrejas, e outra igreja silenciosa, negando-se ao sagrado exercício da profecia e testemunho em momentos de perseguição, sofrimentos e sacrifício. Reverendo Sant’Anna

A força e testemunho da igreja atuante

Quem não se lembra das lições da escola dominical que discutiam abertamente se o “cristão deveria ser de direita ou esquerda, das lições que nos desafiavam a agir como cidadãos e cidadãs responsáveis, homens e mulheres de boa vontade, praticantes de uma fé encarnada na realidade, das memoráveis celebrações ecumênicas da Praça da Sé organizadas por grupos sociais bem diversificados, onde participei não poucas vezes como o orador evangélico, Henry Sobel representando a comunidade judaica e o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns representando a comunidade católica. Falávamos para milhares e milhares de pessoas que se acotovelavam naquele “espaço de liberdade”. Chegávamos e saíamos os três no carro do Cardeal por razões de segurança. Era perigoso? Era. Mas foi um momento grandioso viver a pujança da nossa fé e testemunhar que Jesus Cristo é O Senhor, Aquele que derruba os muros da desigualdade e fortalece a prática da justiça. Reverendo Sant’Anna

As grandes celebrações ecumênicas

Na década de 60, 70 e 80 em Belo Horizonte, marcaram muito a minha vida e meu ministério pastoral. Formar parceria no púlpito com Dom Hélder Câmara e os padres carmelitas na Igreja Católica Romana do Carmo, Belo Horizonte, por vários anos seguidos foi uma fantástica experiência para a minha postura de fé e de missionário junto ao povo sofrido. Aprendi com Dom Hélder, grande servo do Senhor, que quando assumimos a postura profética, estamos seguindo os passos dos grandes baluartes da fé, participantes de uma “linha de esplendor sem fim” que não se matrimoniaram com o poder opressor constituído. Reverendo Sant’Anna

Direitos Humanos são Direitos Divinos: a feliz parceria com os pentecostais

O que me levou ao diálogo com os pentecostais e outros grupos religiosos não pertencentes ao diálogo ecumênico tradicional, histórico, foi a minha aproximação com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), Brasília, em meados dos anos 90. Desafios me empurravam para áreas inexploradas e algumas perguntas angustiantes sobre a ineficácia e morosidade das relações ecumênicas precisavam de respostas e estas só podiam ser conseguidas com um diálogo corajoso e respeitoso. Reverendo Sant’Anna

Comissão Nacional de Combate ao Racismo e a Cenacora

Em setembro de 1985, exercendo o cargo de Secretário Geral de Ação Social da Igreja Metodista no Brasil, devidamente autorizado pelo Conselho Geral da Igreja Metodista, e com o apoio financeiro da Junta de Mulheres Metodistas dos Estados Unidos e do Programa de Combate ao Racismo do Conselho Mundial de Igrejas, Genebra, contando ainda com a inestimável simpatia de Clai e Ciemal, convocamos o “Primeiro Encontro Nacional do Negro Metodista” no Rio de Janeiro, no Instituto Metodista Bennett. Sessenta e dois negros, sendo 42 metodistas vindos de todas as regiões eclesiásticas e 20 negros ativistas experientes convidados para compartilhar o seu saber específico para os negros metodistas. Solidarizaram-se com o nosso inédito encontro repassando a sua experiência, entre outros, Benedita da Silva, então Deputada Estadual, cineasta Joelzito (Zezito) Araújo, economista Hélio Santos, advogado Antonio Carlos Arruda, a renomada educadora negra Lélia Gonzalez, Herbert de Souza, o Betinho, que orientou-nos quanto à necessidade de se fazer uma análise de conjuntura, necessária para o estabelecimento adequado de estratégias e metodologia de trabalho na luta contra a o poder opressor, gerador de injustiça e de morte.

Ao final dos três dias do encontro é formalizada a criação da Comissão Nacional de Combate ao Racismo, na Igreja Metodista do Brasil. A decisão do negro metodista é comunicada às lideranças eclesiásticas e inicia-se a sua atuação inédita, combatendo o racismo que estava impregnado em nossa hinologia, literatura religiosa, lições da escola dominical e nos sermões. A pesquisa e análise da existência do racismo na vida e obra da Igreja Metodista alcançaram resultados positivos e logo se tornaram conhecidos da militância de outras Igrejas Nacionais, gerando ao longo destes anos o surgimento de comissões, grupos e militâncias individuais contra o racismo. Reverendo Sant’Anna

CRIAÇÃO DA CENACORA

Como Secretário Geral de Ação Social da Igreja Metodista, após articulações feitas no início de 1986, foram convidados representantes das Igrejas Nacionais, membros do CONIC- Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, objetivando a criação de uma comissão ecumênica semelhante à da Igreja Metodista. Reunidos na Chácara Flora, S.Paulo, os representantes das Igrejas membros do CONIC concordam na criação de um organismo semelhante que pudesse “representar” as Igrejas fundadoras: Episcopal do Brasil, Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, Metodista do Brasil, Presbiteriana Unida do Brasil e Católica Apostólica Romana. Mais tarde retira-se a Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, agregando-se, contudo, outras duas, Igreja Católica Ortodoxa Siriana do Brasil e Igreja Evangélica Luterana do Brasil. E por decisão da Assembléia da Cenacora, foram recebidas como membros as organizações evangélicas dedicadas ao combate ao racismo: Missões Quilombo e Instituto Nacional de Debates Nelson Mandela, ambas de S.Paulo; Igreja Pentecostal “O Brasil para Cristo” e um grupo do Rio de Janeiro, de maioria Batista, Markingjr , Movimento de Ação e Reflexão Martin Luther King Jr. Reverendo Sant’Anna

Do Afrokut

O ativista da teologia negra Jackson Augusto fala sobre a representação dos evangélicos na imprensa

Como parte dos projetos especiais dos 100 anos da Folha de São Paulo, o articulador social e ativista da teologia negra, Jackson Augusto, fala sobre a representação dos evangélicos na imprensaJackson é criador do perfil @afrocrente, além de integrar a coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico.

Nasci numa favela do Recife e a minha iniciação como cidadão foi na igreja. A primeira vez que vi alguém que passou no vestibular foi na igreja. O único lugar em que tive acesso a uma iniciação musical foi na igreja, então comecei a existir na igreja — apesar de ser um lugar atravessado pela questão racial, por preconceitos e tudo o mais.


Minha mãe é sindicalista, e cresci indo para o culto e para as assembleias gerais no sindicato. Não era algo contraditório para mim, ir para a greve e ir para o culto — reivindicar meus direitos e reivindicar minha fé. Minha fé me move para a justiça, a equidade, para desafiar ciclos de violência.


A teologia negra é uma ferramenta política, que nasce para denunciar algo. Preciso falar para outros jovens negros que existem metodologias e pensamentos a partir da fé cristã que nos ajudam a respeitar os direitos humanos, contribuir com a luta antirracista e se posicionar contra o conservadorismo.

Assista ao vídeo, com recursos de acessibilidade, logo abaixo:

Acesse a entrevista completa pelo link: https://www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2021/02/imprensa-ignora-abismos-de-diferencas-entre-evangelicos-diz-ativista.shtml

Afrokut

Pequeno Manual Antirracista

Para encerrarmos com dicas práticas, podemos continuar batendo um papo com João, pontuando alguns dos seus ensinamentos. E também, trazermos para essa conversa algumas orientações que a filósofa negra Djamila Ribeiro registrou em seu “Pequeno Manual Antirracista”.

  • Aprenda constantemente e sempre a permanecer em Jesus. Fique nele (João 2.24);
  • Informe-se sobre o racismo (Djamila);
  •  Grave as palavras de Jesus (1 João 2.3-5);
  • Enxergue a negritude (Djamila);
  • Ande como Jesus andou (1 João 2.6);
  • Reconheça os privilégios da branquitude (Djamila);
  • Tenha confiança em Cristo e dele não se afaste (1 João 2.28);
  • Perceba o racismo internalizado em você (Djamila);
  • Ame todas as pessoas porque o amor vem de Deus e comprova que somos nascidos dele e o conhecemos (1 João 4.7);
  • (Conheça e) apoie Políticas Educacionais Afirmativas (Djamila);
  • Não ame “da boca pra fora”, mas de fato e verdade (1 João 3.18);
  • Transforme seu ambiente familiar, de estudo e entretenimento (Djamila);
  • Lembrem-se de que maior é a verdade daquele que está em nós do que a mentira do anticristo que está no mundo (1 João 4.1-6);
  • Leia autores negros (Djamila);
  • Lembre-se que a nossa fé é a vitória que vence o mundo (1 João 5.4);
  • Questione a cultura que você consome (Djamila);
  • Saiba que o Filho de Deus está vindo e tem nos dado entendimento para reconhecermos a verdade (1 João 5.20);
  • Conheça seus desejos e afetos (Djamila);
  • Guarde-se da idolatria (1 João 5.21);
  • Combata a violência racial (Djamila);
  • Seja forte na Palavra, em Jesus (1 João 2.14);
  • Sejamos todos antirracistas (Djamila).

Por ROBSON DE OLIVEIRA


Este texto é parte do artigo “UM CHAMADO AOS ADOLESCENTES E JOVENS: VENÇAM A MENTIRA DO RACISMO!“, de Robson de Oliveira, presente na REVISTA DE EDUCAÇÃO CRISTÃ PARA ADULTOS com o tema “POR UMA FÉ CONTRA O RACISMO“. A revista com a temática especial “racismo”, foi organizada pelo Rev. Robson de Oliveira, que conta com a contribuição de várias autoras e autores, um material didático para pastoral de combate ao racismo.


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