Manifesto do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas

Não havendo profecia, o povo se corrompe”. (Provérbios 29.18).

MANIFESTO DO FÓRUM DE LIDERANÇAS NEGRAS EVANGÉLICAS PARA CBE2

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, membros do corpo de Cristo, Senhor da Igreja. Nós aqui chegamos na condição de escravizados. Nosso país recebeu o maior número de escravos em relação aos demais países na América Latina e foi o último país a abolir a escravidão negra. Na história da humanidade não se tem registro de uma escravidão tão longa e cruel quanto à do negro no Brasil. Fomos desrespeitados ao longo da história, reprimidos e massacrados em nossos valores religiosos. No mesmo barco que veio o colonizador veio o evangelizador. Colonizar significava evangelizar. Esta evangelização, no princípio foi representada pelo catolicismo e, mais tarde, pelo protestantismo. A expressão religiosa do negro passou a ser associada à coisa do demônio. Nos evangelizavam, sem no entanto nos considerar como sujeitos do processo de evangelização. Quase tudo nos foi negado ao longo destes séculos de conquista e colonização. Jamais, porém, conseguiram apagar em nós a esperança.

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, congregados de diversas igrejas protestantes. Sabemos que as igrejas históricas foram as primeiras denominações protestantes a chegarem no Brasil através dos imigrantes, e depois pelos missionários estrangeiros. Essas igrejas chegaram no período da escravidão. Dentro delas havia os que buscavam reproduzir o modelo escravocrata firmado em um discurso teológico, e não conseguiam ver a incompatibilidade entre escravidão e fé cristã. Estes eram os missionários que vieram do sul dos Estados Unidos, ainda com ressentimentos da derrota na guerra da Secessão contra o Norte pela libertação dos escravizados. A grande maioria desses primeiros protestantes quando não escravistas eram omissos. Eles também defendiam a sua posição teologicamente, afirmando que a Igreja não devia interferir no Estado. Além disso, havia a divisão arbitrária entre o espiritual e o material, entre o corpo e a alma, pensamento que até hoje permanece em muitas igrejas. Reconhecemos também a existência dos abolicionistas: eram em sua maioria missionários do norte dos Estados Unidos, europeus, e um pequeno grupo de convertidos brasileiros.

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, e lamentamos que os missionários que aqui chegaram no período da escravidão vieram para fazer missões, ganhar a elite brasileira e constituir suas igrejas. Só se manifestaram a favor da abolição quando o Brasil inteiro já estava convencido do seu fim, uma tragédia para quem devia transformar a sociedade. Mesmo os que tinham uma postura defensora dos direitos humanos e da abolição do escravismo na Inglaterra e nos EUA, ao chegarem no Brasil acomodaram-se ao ambiente escravista e quase nada fizeram com repercussão pública, em favor dos escravos. A Igreja Evangélica jamais chegou a defender oficialmente sua posição em relação à escravidão no Brasil. Se passaram mais de 100 anos e as Igrejas continuam com seu silêncio covarde e pecaminoso diante da realidade de opressão e racismo na qual se encontram os afrodescendentes.

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, pois em meio ao sentimento de dor, tristeza e indignação, enchem-nos de esperança as experiências de Deus em Jesus Cristo, através das quais vivemos a nossa fé como negros e negras. Não queremos apenas lamentar, é tempo de profetizar e denunciar, mas também de proclamar que a Igreja Evangélica brasileira só poderá viver verdadeiramente a sua Missão Integral se contemplar a questão do afrodescendente. Temos a convicção de que estamos vivendo tempos da manifestação de Deus entre nós e entendemos que os cristãos foram postos no mundo para ser a consciência da sociedade. A Igreja tem de ser a voz que fará a diferença no mundo descendo até os excluídos, como resultado da tragédia da escravidão e marginalização. É preciso sim que os afrodescendentes recebam um tratamento diferenciado porque foi assim que Deus fez a Israel quando foi escravizado no Egito.

Somos afrodescendentes e evangélicos sim, e compreendemos que a verdadeira espiritualidade do povo de Deus se expressa em sua integralidade. A igreja que proclama as boas novas do reino deve ser a mesma que estende a mão ao necessitado. Vimos por esse meio apelar ao II Congresso Brasileiro de Evangelização – CBE2 que dê um basta na omissão da Igreja Evangélica brasileira e quebre o silêncio dos púlpitos com a temática negra e que não fique só nas palavras, nos sermões e nas declarações, mas também através de ações concretas: programas, campanhas, ações afirmativas e reparações. E juntos vamos “Proclamar o reino de Deus, vivendo o evangelho de Cristo”.

Fórum de Lideranças Negras Evangélicas Belo Horizonte, 27 de outubro de 2003

A dimensão racial no pentecostalismo brasileiro, uma questão difícil

Na última pesquisa do Datafolha (jan/2020) que atualizou o perfil sociodemográfico dos evangélicos no Brasil, um dado já esperado e constatado anteriormente se repetiu: pretos e pardos respondem por nada menos do que 60% dessa população. Se o Brasil é um país cada vez mais evangélico, o universo evangélico também é profundamente brasileiro em seus traços raciais. Para que se dimensione esse dado basta dizer que, no cruzamento entre raça e religião, segundo o censo do IBGE de 2010, pretos e pardos correspondiam a 70% dos que se autodeclararam pertencentes ao candomblé. No entanto, esses são percentuais relativos, e não números absolutos, da presença daqueles se autodeclaram negros nas duas religiões. Enquanto no caso do candomblé estamos falando de um contingente de menos de 168 mil pessoas, no caso das igrejas evangélicas esse volume está próximo de 45 milhões de pessoas.

No entanto, se os números são contundentes, qualitativamente a conversa é outra. A visibilidade pública dos evangélicos do país não é apresentada a partir de seus contornos raciais. Pouco se fala sobre essa presença negra. As formas de apresentação pública desses grupos não passam por aí e mesmo as pesquisas das ciências sociais que já produziram milhares de teses e dissertações sobre o campo evangélico são tímidas quanto à análise mais detida da dimensão racial. Em que pese importantes exceções, como aquelas feitas pelo Movimento Negro Evangélico e pelas formulações que estão sendo feitas a partir da Teologia Negra, no interior dos movimentos negros a presença dos evangélicos é de difícil acomodação. Soma-se a isso o fato de que os líderes de algumas das maiores igrejas evangélicas do país e aqueles com maior penetração midiática e política são brancos, contribuindo para uma face pública branca de um rebanho de fiéis negros.

Sobretudo pelos pesquisadores do tema, a invisibilidade da raça diante de um dos principais universos religiosos brasileiros é uma questão de urgente reflexão. Regina Novaes, Lívia Reis, Ronilso Pacheco, Jacqueline Teixeira, José Carlos dos Anjos e João Chaves são apenas alguns dos pesquisadores que direta ou indiretamente têm se dedicado ao assunto. Em algumas de suas formulações chama a atenção o esforço de produzir análises sobre o crescimento evangélico no Brasil justamente a partir de uma matriz de pensamento que dá centralidade à questão da raça. E é dessa matriz que algumas das reflexões mais instigantes têm emergido, enquadrando o próprio processo massivo de conversão pentecostal pelo qual o Brasil vem passando também como uma resposta racial.

Nesse caso, não se trata simplesmente de reproduzir certo senso comum que apela à “recusa da raça” por parte dessa parcela de fiéis, mas sim de reconhecer que, ao aderir ao pentecostalismo, ela inicia também uma operação de branqueamento. Não há nenhuma denúncia aqui, trata-se de uma modalidade de resposta ao racismo estrutural da sociedade brasileira, uma resposta que também se apresenta como um plano de fuga. Há pouca novidade nesse processo. Ele apenas reproduz o mecanismo colonial de esvaziamento da centralidade da raça nas relações de poder e, ao mesmo tempo, oferece como contrapartida dispositivos de subjetivação de um horizonte não negro. É isso o que também Frantz Fanon descreve em Pele negra, máscaras brancas: “Da parte mais negra de minha alma, através da zona sombreada, irrompe em mim este súbito desejo de ser branco. Não quero ser reconhecido como negro, mas como branco”. Mais uma vez, o que está em operação nesse processo é a própria estrutura racializada das sociedades coloniais e não, como alguns querem crer, que esse desejo é a prova de que a força estrutural do racismo é menor do que afirmam os movimentos identitários.

Há inúmeras questões teológicas, políticas e também relativas a contextos mais específicos, além de reações importantes de movimentos sociais nesse debate. Além disso é necessário reconhecer algumas ambivalências do pentecostalismo, que ao mesmo tempo que embranquece também produz lugares de circulação iconográficas de corpos negros. Aspecto que se relaciona com o crescimento de lideranças negras evangélicas em igrejas e partidos políticos, algo certamente associado à (re)emergência pública do debate racial no país.

Seja como for, o que importa aqui é jogar algumas luzes sobre mais essa questão difícil envolvendo esse fenômeno fundamental que atravessa o Brasil desde o fim do século XX, o crescimento evangélico, colocando-o em perspectiva com a força descomunal e invariavelmente pouco tratada do racismo brasileiro.

por Rodrigo Toniol – Professor de antropologia da UFRJ e Pesquisador do LAR/Unicamp.

Fonte:  Estado da Arte.

Imagem: Afrokut


Produção científica sobre o Movimento Negro Evangélico