A gêneses do movimento negro evangélico no Brasil

Reconstruir a história do Movimento Negro Evangélico Brasileiro (MNE) é uma tarefa complexa, sobretudo porque esse é um processo ainda em andamento, com suas fronteiras borradas. Essa dificuldade parece ser maximizada na medida em que olhamos com maior vagar para o interior do próprio campo religioso cristão não católico, nomeado genericamente neste texto como “evangélicos”.2 Entretanto, é possível observar uma espécie de fio de Ariadne3 que conduz seus agentes no desenvolvimento de suas ações.

Pode-se falar em Movimento Negro Evangélico (MNE), por um lado, na medida em que se tem como referencial um conjunto de ações produzidas por grupos consolidados ou em construção, cujos agentes são pessoas que se autoclassificam como “evangélicas” e negras (pretas ou pardas, de acordo com a nomenclatura adotada pelo IBGE). Por outro, deve-se considerar que, em geral, os destinatários dessas atividades são também pessoas negras que participam de alguma igreja classificada como “evangélica”.

O combate ao racismo no interior das igrejas, em particular, e na sociedade, em geral, pode ser tomado como o elemento central a partir do qual se organizam as diversas iniciativas com temática racial empreendidas por esses grupos. Tais iniciativas têm em comum o fato de serem organizadas com base em certa orientação teológica-pastoral de inspiração protestante. Isso significa que, mais do que tratar de um grupo específico, para compreender o MNE, é preciso, antes de tudo, mapear as diversas atividades presentes nas várias igrejas para, em seguida, proceder a análise de suas estruturas.

Neste texto será apresentado de maneira panorâmica uma historiografia do MNE, a partir da atuação de alguns de seus agentes paradigmáticos. Discute-se também o modo como os símbolos da herança africana no Brasil são acionados nas ações desses grupos. Os dados que seguem foram recolhidos durante a pesquisa de campo,4 que privilegiou a produção escrita dos agentes evangélicos, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut, que reúne exclusivamente negras e negros evangélicos) além de conversas informais.

É importante ressaltar que, embora a participação das mulheres seja fundamental para a consecução do MNE, pastores e lideranças masculinas ganham proeminência na narrativa pública sobre a gênese do movimento. Em parte, esse fenômeno é justificado por alguns interlocutores5 pelo fato de que o sacerdócio no âmbito das igrejas cristãs (católicas e aquelas originárias da Reforma) é exercido quase que exclusivamente por homens, posição controversa entre os agentes. Atém mesmo entre as lideranças, o lugar que o sujeito ocupa na hierarquia religiosa impacta na atuação, como se verá mais adiante.

Partindo do princípio de que os discursos não constituem um campo separado das práticas sociais que produzem as identidades com base em sinais diacríticos da identificação étnica-racial seletivamente construídos, os grupos étnicos são “vistos como formas de organização de novas e adaptadas identidades ao “aqui e agora’” (Cunha 2009a:226). Entende-se que o campo religioso brasileiro, nas últimas décadas, tem sido um poderoso “aqui e agora” a impelir as religiões a também se posicionarem frente à diversidade étnico-cultural de seus fiéis.

Ao descrever os processos discursivos (Asad 2003) que orientam as práticas desses sujeitos, pretende-se verificar como são produzidos os conceitos em disputa (“identidade negra”, “cultura negra”, “negritude”, “herança africana”, “pan-africanismo”, “afrocentrismo” etc.), os quais põem segmentos religiosos distintos em diálogo na esfera pública. Com isso, não se imputa às categorias investigadas significados a priori – pelo contrário, queremos compreender seu processo de elaboração.

O conjunto de categorias operacionalizada pelos agentes é tomada como “nativo”, cujo significado não está apartado dos contextos e dos sujeitos que o empregam. Desse modo, importa saber como os consensos são estabelecidos por meio de discursos e como práticas ganham significados na esfera pública, põe atores em relação e promovem a efetivação de direitos. O recurso das aspas nos ajudará a colocar em suspeição esses termos, tal como fez a Manuela Carneiro da Cunha (2009b:373) ao tratar da noção de cultura e “cultura”.

Ganha relevo, neste debate, os deslocamentos de sentidos que são operados pelos agentes nas categorias de classificação “etnia” e “raça”, com base em certa noção de “cultura”. Isto é, como se verá mais adiante, a noção de raça acionada por alguns agentes em certos momentos parece apontar para o sentido de grupo étnico tal como fora definido por Fredrik Barth (1969).

Entre os anos 1970 e 1980, observa-se a gênese de duas posturas distintas frente às heranças culturais africanas no Brasil: combate e certa indiferença. Ou seja, por um lado, igrejas evangélicas neopentecostais assumem como elemento central da sua ação proselitistas a demonização das divindades, elementos e valores das religiões afro-brasileiras, inclusive daqueles presentes nos ícones da “identidade nacional”, como a capoeira, o carnaval, o samba etc. (Mariano 1999Silva 2007). Por outro lado, no âmbito das igrejas protestantes históricas emergem alguns coletivos de evangélicos negros que assumem um discurso de salvação que leva em consideração o pertencimento étnico-racial de seus fiéis sem, no entanto, ressaltar o que fora tradicionalmente evidenciado como “símbolos da cultura negra” (Burdick 2004).

Esse quadro desenhado no campo “evangélico” opõe-se ao contexto católico, pois, desde os anos de 1970, lideranças (formadas por leigas e leigos, padres e bispos) empreendem uma série de ações pastorais dentro e fora da igreja, em prol da população negra assumindo e ressignificando elementos culturais de origem africana. Tais atividades voltam-se para dentro da igreja, como a proposição de “liturgias inculturadas” (Oliveira 2016), e para fora, associando-se a outros coletivos do movimento negro (Oliveira 2017).

Neste texto, parte-se do pressuposto de que, atualmente, há um descentramento da identidade, isto é, o indivíduo não pode mais ser identificado com base em dados apriorísticos ou essencializantes. É por força da globalização que as identidades centradas e “fechadas” são deslocadas e pluralizadas. Dessa forma, a construção da identidade via interação com o grupo de origem não resulta em apenas uma definição, mas “produz uma variedade de possibilidades e novas posições de identidades… [tornando] as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixa, unificadas ou trans-históricas” (Hall 2003:87).

Nesse contexto, considerando que no jogo das identidades os sujeitos estão “constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes” (Hall 2009:328), a constituição do Movimento Negro Evangélico participa dessa disputa pela autoridade em legitimar a “identidade negra” com base em seus pressupostos doutrinários. Dessa forma, os agentes religiosos buscam autoridade para enunciar um discurso tanto na esfera pública, acerca das políticas étnico-raciais, quanto no exercício do proselitismo, uma vez que seriam as religiões também articuladoras na construção da “negritude”.

O método de coleta de dados adotado abrangeu três níveis complementares: documental, observação participante (em campo) e entrevista e/ou coleta de depoimentos dos agentes observados. A pesquisa de campo privilegiou a produção escrita de lideranças religiosas, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut, que reúne exclusivamente negras e negros evangélicos) e o acesso aos registros (entrevistas, reportagens etc.) das atividades feitas pelos próprios religiosos e divulgadas na mídia.

Este texto está dividido em duas partes: na primeira, apresenta-se o processo de configuração do MNE e, na segunda, discute-se como os símbolos da “herança africana no Brasil” são acionados por esses agentes, na conformação de suas ações pastorais.

Por Rosenilton Silva de Oliveira – Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil.
Coordenador do Fateliku – grupo de pesquisa sobre educação, relações étnico-raciais, gênero e religião. Doutor em Antropologia.


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“Hoje eu orei, Ele é negro”: a gêneses do movimento negro evangélico

A dimensão racial no pentecostalismo brasileiro, uma questão difícil

Na última pesquisa do Datafolha (jan/2020) que atualizou o perfil sociodemográfico dos evangélicos no Brasil, um dado já esperado e constatado anteriormente se repetiu: pretos e pardos respondem por nada menos do que 60% dessa população. Se o Brasil é um país cada vez mais evangélico, o universo evangélico também é profundamente brasileiro em seus traços raciais. Para que se dimensione esse dado basta dizer que, no cruzamento entre raça e religião, segundo o censo do IBGE de 2010, pretos e pardos correspondiam a 70% dos que se autodeclararam pertencentes ao candomblé. No entanto, esses são percentuais relativos, e não números absolutos, da presença daqueles se autodeclaram negros nas duas religiões. Enquanto no caso do candomblé estamos falando de um contingente de menos de 168 mil pessoas, no caso das igrejas evangélicas esse volume está próximo de 45 milhões de pessoas.

No entanto, se os números são contundentes, qualitativamente a conversa é outra. A visibilidade pública dos evangélicos do país não é apresentada a partir de seus contornos raciais. Pouco se fala sobre essa presença negra. As formas de apresentação pública desses grupos não passam por aí e mesmo as pesquisas das ciências sociais que já produziram milhares de teses e dissertações sobre o campo evangélico são tímidas quanto à análise mais detida da dimensão racial. Em que pese importantes exceções, como aquelas feitas pelo Movimento Negro Evangélico e pelas formulações que estão sendo feitas a partir da Teologia Negra, no interior dos movimentos negros a presença dos evangélicos é de difícil acomodação. Soma-se a isso o fato de que os líderes de algumas das maiores igrejas evangélicas do país e aqueles com maior penetração midiática e política são brancos, contribuindo para uma face pública branca de um rebanho de fiéis negros.

Sobretudo pelos pesquisadores do tema, a invisibilidade da raça diante de um dos principais universos religiosos brasileiros é uma questão de urgente reflexão. Regina Novaes, Lívia Reis, Ronilso Pacheco, Jacqueline Teixeira, José Carlos dos Anjos e João Chaves são apenas alguns dos pesquisadores que direta ou indiretamente têm se dedicado ao assunto. Em algumas de suas formulações chama a atenção o esforço de produzir análises sobre o crescimento evangélico no Brasil justamente a partir de uma matriz de pensamento que dá centralidade à questão da raça. E é dessa matriz que algumas das reflexões mais instigantes têm emergido, enquadrando o próprio processo massivo de conversão pentecostal pelo qual o Brasil vem passando também como uma resposta racial.

Nesse caso, não se trata simplesmente de reproduzir certo senso comum que apela à “recusa da raça” por parte dessa parcela de fiéis, mas sim de reconhecer que, ao aderir ao pentecostalismo, ela inicia também uma operação de branqueamento. Não há nenhuma denúncia aqui, trata-se de uma modalidade de resposta ao racismo estrutural da sociedade brasileira, uma resposta que também se apresenta como um plano de fuga. Há pouca novidade nesse processo. Ele apenas reproduz o mecanismo colonial de esvaziamento da centralidade da raça nas relações de poder e, ao mesmo tempo, oferece como contrapartida dispositivos de subjetivação de um horizonte não negro. É isso o que também Frantz Fanon descreve em Pele negra, máscaras brancas: “Da parte mais negra de minha alma, através da zona sombreada, irrompe em mim este súbito desejo de ser branco. Não quero ser reconhecido como negro, mas como branco”. Mais uma vez, o que está em operação nesse processo é a própria estrutura racializada das sociedades coloniais e não, como alguns querem crer, que esse desejo é a prova de que a força estrutural do racismo é menor do que afirmam os movimentos identitários.

Há inúmeras questões teológicas, políticas e também relativas a contextos mais específicos, além de reações importantes de movimentos sociais nesse debate. Além disso é necessário reconhecer algumas ambivalências do pentecostalismo, que ao mesmo tempo que embranquece também produz lugares de circulação iconográficas de corpos negros. Aspecto que se relaciona com o crescimento de lideranças negras evangélicas em igrejas e partidos políticos, algo certamente associado à (re)emergência pública do debate racial no país.

Seja como for, o que importa aqui é jogar algumas luzes sobre mais essa questão difícil envolvendo esse fenômeno fundamental que atravessa o Brasil desde o fim do século XX, o crescimento evangélico, colocando-o em perspectiva com a força descomunal e invariavelmente pouco tratada do racismo brasileiro.

por Rodrigo Toniol – Professor de antropologia da UFRJ e Pesquisador do LAR/Unicamp.

Fonte:  Estado da Arte.

Imagem: Afrokut


Produção científica sobre o Movimento Negro Evangélico

O ativista da teologia negra Jackson Augusto fala sobre a representação dos evangélicos na imprensa

Como parte dos projetos especiais dos 100 anos da Folha de São Paulo, o articulador social e ativista da teologia negra, Jackson Augusto, fala sobre a representação dos evangélicos na imprensaJackson é criador do perfil @afrocrente, além de integrar a coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico.

Nasci numa favela do Recife e a minha iniciação como cidadão foi na igreja. A primeira vez que vi alguém que passou no vestibular foi na igreja. O único lugar em que tive acesso a uma iniciação musical foi na igreja, então comecei a existir na igreja — apesar de ser um lugar atravessado pela questão racial, por preconceitos e tudo o mais.


Minha mãe é sindicalista, e cresci indo para o culto e para as assembleias gerais no sindicato. Não era algo contraditório para mim, ir para a greve e ir para o culto — reivindicar meus direitos e reivindicar minha fé. Minha fé me move para a justiça, a equidade, para desafiar ciclos de violência.


A teologia negra é uma ferramenta política, que nasce para denunciar algo. Preciso falar para outros jovens negros que existem metodologias e pensamentos a partir da fé cristã que nos ajudam a respeitar os direitos humanos, contribuir com a luta antirracista e se posicionar contra o conservadorismo.

Assista ao vídeo, com recursos de acessibilidade, logo abaixo:

Acesse a entrevista completa pelo link: https://www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2021/02/imprensa-ignora-abismos-de-diferencas-entre-evangelicos-diz-ativista.shtml

Afrokut

Negros evangélicos em movimento

Reconstruir a história do Movimento Evangélico Brasileiro é uma tarefa complexa, sobretudo porque este é um processo ainda em andamento, com suas fronteiras borradas. Essa dificuldade parece ser maximizada na medida em que olhamos com maior vagar para o interior do próprio campo religioso cristão não católico, nomeado genericamente de “evangélico”. Entretanto, assim como os católicos que, apesar das divergências e das múltiplas facetas da sua militância negra, é possível observar uma espécie de fio de Ariadne que conduziu seus agentes, no campo evangélico há também uma diversidade de concepções sobre os direcionamentos das políticas voltadas para a população negra. No contexto evangélico, portanto, o combate ao racismo no interior das igrejas, em particular, e na sociedade em geral, pode ser tomado como o ponto de convergência dessas inciativas.

Pode-se falar em Movimento Negro Evangélico (MNE) na medida em que se tem como referencial um conjunto de ações desenvolvidas por grupos consolidados ou em construção cujos agentes são pessoas que se autoclassificam como “evangélicas” e negras (pretas ou pardas, de acordo com a nomenclatura adotada pelo IBGE) e os destinatários são os negros, em geral, e aqueles que participam de alguma igreja. Tais ações têm em comum o fato de serem organizadas a partir de certa orientação teológica-pastoral de inspiração protestante. Isso significa que, mais do que tratar de um grupo especifico, para compreender o MNE é preciso, antes de tudo, mapear as diversas iniciativas presentes nas várias igrejas para, em seguida, proceder a análise de suas estruturas. No mais, é importante tomá-lo como um processo em construção e não como um projeto consolidado, diferente da Pastoral Afro-brasileira, no caso católico.

Nesse texto será apresentado de maneira panorâmica o estado da arte do campo afro-evangélico, ressaltando a historiografia do MNE e alguns de seus agentes paradigmáticos. Os dados que seguem foram recolhidos durante a pesquisa de campo, que privilegiou a produção escrita dos agentes evangélicos, a participação em curso de formação sobre a presença do negro na igreja, entrevistas e depoimentos colhidos por meio de sites de relacionamento (especificamente o Afrokut que reúne exclusivamente negros e negros evangélicos) além de conversas informais.

Reconstituir a trajetória do Movimento Negro Evangélico implica, em alguma medida retraçar a trajetória de seus agentes paradigmáticos e de algumas instituições. Metaforicamente pode-se dizer que o MNE é uma rede que interconecta tais atores. Partindo aleatoriamente de um de seus elementos tentaremos evidenciar os nós de significado que a compõe.

Hernani Francisco da Silva, paraibano de família católica, converteu-se à Igreja Congregacional (portanto pentecostal) aos quinze anos de idade, dois anos mais tarde tornou-se membro da Igreja evangélica O Brasil para Cristo (também pentecostal); Segundo entrevista concedida ao programa Análise Direta da rede RIT – Rede Internacional de Televisão, no dia 09 de dezembro de 2009, sua “segunda conversão” foi “despertar sua negritude”, a qual ocorreu durante a marcha nacional em comemoração ao centenário da abolição formal da escravidão no Brasil, realizada no dia 13 de maio de 1988. Embora tenha se deparado com ela de maneira ocasional, foi a partir desse momento que se sentiu impelido a desenvolver um trabalho voltado ao combate ao racismo no interior do campo religioso evangélico. A sua experiência como fellow na Ashoka, o capacita para atuar como empreendedor social atuando, sobretudo no campo dos direitos humanos tendo como público preferencial os negros.

Em 23 de janeiro de 1991, com o auxílio de outras pessoas fundou a Sociedade Cultural Missões Quilombo, cujo objetivo principal é “modificar a visão que as igrejas evangélicas têm da cultura negra” (SILVA, 2011, p. 45). Embora esteja localizada no âmbito de uma igreja pentecostal (O Brasil para Cristo) possui integrantes de outras denominações e tem desenvolvido ações que extrapolam por vezes o campo evangélico. Em parceria com o antropólogo norte-americano John Burdick, Hernani tem realizado um mapeamento das iniciativas desenvolvidas por evangélicos no combate ao racismo e discriminação.

De fato, a militância desenvolvida por Hernani Silva revela uma tentativa de regaste da presença negra nas raízes do cristianismo, ao mesmo tempo, em que
denuncia o que considera uma “teologia evangélica racista”, nesse sentido, várias são as ações que remetem à história do negro no Brasil de maneira geral, e especificamente, no protestantismo, tendo destaque a criação da rede de relacionamentos virtual Afrokut e a publicação do livro O movimento Negro Evangélico – um mover do Espírito Santo (pela Selo da Negritude Cristão em 2011).

Conforme fora dita acima, a pluralidade do campo protestante impede o estabelecimento de organismos que concentrem todas as ações e agentes do Movimento Negro Evangélico, diferentemente do catolicismo que, embora conte com três grandes grupos (Pastoral Afro-Brasileira, Instituto Mariama – que reúne diáconos, padres e bispos negros – e o GRENI – Grupo de Religiosos e Religiosas Negros e Indígenas) possui políticas coordenadas, já que parte significativa dos seus integrantes circulam nos três grupos, desenvolvem ações em conjunto e, sobretudo, pertencem à mesma instituição religiosa. No caso evangélico, há várias iniciativas para reunir os militantes negros, uma das primeiras delas foi o Fórum de Afrodescendentes Evangélicos criada no MSN (em 2002), dada as limitações desse serviço de mensagens e com a popularização da rede social Orkut no Brasil

muitas comunidades surgiram nesta rede social de relacionamento, as que mais se destacaram foram Negros Cristãos, com mais de cinco mil membros, o Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos – CNNC, Negros Evangélicos, Negros sim!! Somos cristãos, Movimento Negro Evangélico, Teologia Negra, entre muitas outras (SILVA, 2011, p. 15).  

Têm em comum essas “comunidades virtuais” o fato de reunirem evangélicos de várias denominações, na tentativa de estabelecer um canal de comunicação entre os vários agentes, a troca de informações e, em alguma medida, possibilitar a realização de atividades em conjunto, justamente porque a marca principal do Movimento Negro Evangélico é a descentralização de suas ações. Descentramento este fruto menos do desejo dos atores envolvidos e mais da própria configuração do campo protestantes, que se apresenta de maneira fragmentária e plural.

Com a decadência do Orkut, muitos grupos migraram para outras plataformas virtuais como o Facebook, Youtube, Twitter, Wiki etc. E no bojo desse movimento de apropriação das redes sociais, Hernani Silva cria o Afrokut em 2008.

O Afrokut reúne não apenas evangélicos negros e instituições. Como uma rede de relacionamento possibilita o intercâmbio entre seus membros, a criação de subcomunidades de acordo com interesses convergentes (inclusive a plataforma permite criar fóruns de discussões, blogs e lojas virtuais), além de possibilitar a realização de cursos, palestras e reuniões on line. Conta hoje com mais de três mil membros cadastrados, segundo o seu fundador.

Foi justamente por sua atuação à frente da Sociedade Cultural Missões Quilombos e do Afrokut, que Hernani Silva foi agraciado com o prêmio Direitos Humanos, outorgado pelo Governo Federal brasileiro (em 2000), além de outras honrarias. Entretanto, o reconhecimento de seu trabalho na articulação dos evangélicos negros nem sempre encontra respaldo na hierarquia eclesiástica, haja vista que não é sacerdote, portanto, as alianças estabelecidas com pastores e bispos, intelectuais e agentes de outras denominações são fundamentais para um maior desenvolvimento de suas ações no interior das igrejas. Tendo-se em conta que sua origem religiosa é pentecostal e a maior parte dos atores do MNE pertencem às igrejas protestantes históricas, há sempre por parte de Hernani a tentativa de dar sempre um caráter ecumênico às suas ações.

Esse esforço de congregar as várias iniciativas do MNE impulsionou Hernani Silva a publicar o livro O movimento negro evangélico, em 2011. Nessa obra, o autor procura retraçar a história do movimento. Esse exercício não é inédito no processo de resgate identitários, sobretudo, porque se cristalizou a ideia de que a “história oficial” invisibilizou esses agentes.

Nesse sentido, há também uma tentativa de reescrita da presença evangélica no Brasil. Por exemplo, enquanto a história oficial considera o início do protestantismo no país, no ano de 1858, com a fundação da Igreja Fluminense pelo revendo Roberto Kalley; em O movimento negro evangélico, a gênesis está no ano de 1841, quando o pregador negro Agostinho José Pereira, funda a Igreja do Divino Mestre. Apelidado de “Lutero Negro”, o fim desse pregador e sua igreja é desconhecidos, conta–se, porém, que ele teria sido preso e deportado (SILVA, 2011, p. 9). Mas, se o recuo histórico for maior, Hernani (SILVA, 2011) aponta que a primeira Pastoral Negra Protestante no Brasil nasce das pregações de “Mãe Maria”, uma africana nagô, nascida na África por volta de 1825, e adquirida como escrava pelo pastor Voges, em 1846, fora alfabetizada e aprendeu alemão com a senhora Elisabetha, sua proprietária. Assim, no rol das lideranças negras brasileiras, figuram membros de igrejas protestantes: João Candido (Igreja Metodista de São João de Meriti, liderou a revolta da chibata, no Rio de Janeiro, em 1910); Joao Pedro Teixeira (igreja Evangélica Presbiteriana, fundou a Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba); Solano Trindade (poeta, foi diácono na Igreja Presbiteriana), o qual “decepcionado com o distanciamento do protestantismo com as questões sociais, incluindo a discriminação contra os negros, deixou a igreja, justificando sua saída com um versículo da própria Bíblia “Se não amas a teu irmão, a quem vês, como podes amar a Deus, a quem não vês’?” (SILVA, 2011, p. 12).

Na segunda parte do livro, Hernani Silva volta-se não mais para personalidades específicas, mas iniciativas coletivas. No capitulo O Movimento Negro Evangélico Contemporâneo considera os anos 1970 e 80 como paradigmáticos, pois é nesse momento vem à luz diversas iniciativas institucionais e muitos “despertam” para sua negritude. Recorde-se que o próprio autor localiza sua “reconversão” em 1988.

Assim como ocorreu com o Movimento Negro Católico, e com os religiosos afro-brasileiros, o período de dedemocratização do Brasil, impulsionou as minorias (sobretudos negros e indígenas) a se reorganizarem para desenvolverem ações de combate as injustiças sofridas. Alguns evangélicos não ficam alheios a esse contexto político-social.

Dentre as várias iniciativas podem-se destacar as ações da Igreja Metodista, que foi a primeira a oficializar, em 1985, uma Comissão Nacional de Combate ao Racismo, que havia sido criada anos antes (1973) por iniciativa de fiéis oriundos de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. (BRANCHINI, 2011, p. 20). O reconhecimento dessa comissão só ocorreu doze anos após a sua criação, pois se temia que esse tipo de discussão provocasse um cisma na Igreja (FAUTINO, 2014). Foi sob a gestão do reverendo Antonio Olímpio Sant’Ana na Secretaria de Ação Social da Igreja Metodista que houve essa oficialização, que passou a ser chamada de Pastoral Nacional de Combate ao Racismo, cujo objetivo era

identificar linguagem racista na hinologia e na própria literatura produzida pela igreja e capacitar lideranças para atuarem nas diversas regiões eclesiásticas. Nessa mesma década, foram criadas as Pastorais Regionais de Combate ao Racismo em quase todas as regiões eclesiásticas, que desenvolveram importante trabalho de conscientização no seio das igrejas locais. Também surgiram neste período o Coral Resistência de Negros Evangélicos, em São Paulo (1988), e o Centro Ecumênico de Cultura Negra, em Porto Alegre.

Metodista natural de Rio Piracicaba (MG), o revendo Sant’Ana, em entrevista concedida à Revista Raça Brasil (FAUTINO, 2014), afirma que a “A religiosidade é a maneira de se chegar e vislumbrar o Ser Supremo. Minha religião é Metodista, mas a minha espiritualidade é negra. Antes de ser metodista e cristão, sou negro.

Esse texto é parte da Tese: A cor da fé: “identidade negra” e religião para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.

Autor: Rosenilton Silva de Oliveira.

Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em convenio de dupla-titulação com a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais (Antropologia Social).

Orientador: Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva
Co-orientadora: Prof.ª Dra. Emmanuelle K. Tall  

Para ler a Tese completa baixe o arquivo em PDF:

BAIXAR A cor da fé: “identidade negra” e religião

Produção científica sobre o Movimento Negro Evangélico

Igrejas Evangélicas, Atuação Negra e Antirracismo

Na obra “A Religião Mais Negra do Brasil”, o Pr. Marco Davi de Oliveira ressalta as transformações por que tem passado o cenário religioso brasileiro. O autor destaca forte crescimento dos evangélicos, singularmente através dos grupos pentecostais, realidade que já tem se tornado notória desde os anos 70. O autor argumenta que essa vertente protestante conseguiu alcançar a base da cultura do Brasil, provocou uma revolução o âmbito da negritude, e tem contribuído para a ressignificação de crenças presentes no contexto social.

Tem sido observado que a busca frequente pelas comunidades pentecostais por parte dos negros, tem contribuído para que o pentecostalismo figure como a religião mais negra do Brasil, e entre os fatores apontado para essa procura estão elementos ligados à forma de culto, músicas, acolhimento, interação com as pessoas, discursos, postura eclesiástica, etc.

Segundo Marco Davi de Oliveira pastor batista e coordenador do Movimento Negro Evangélico, o pentecostalismo com sua forma de culto, onde as expressões corporais, utilização de instrumentos regionais, hinos animados e participativos; propiciam a identificação da cultura negra com essa forma de protestantismo popular. Ainda segundo o escritor três aspectos da espiritualidade negra são contemplados na pentecostalidade: a espontaneidade, expansividade e a abnegação (GELEDÉS, 2009).

Marco Davi, sustenta que a igreja, especialmente a vertente chamada histórica, não deu a devida atenção às demandas raciais e sociais, e tem se mostrado indiferente ás políticas de ação afirmativa. O livro salienta, também, que essa expressividade negra dentro do pentecostalismo não significa uma participação maior em posições hierarquicamente mais elevadas dentro das igrejas e convenções.

A despeito da persistência de atitudes de demonização e inferiorização das culturas de matriz africana e afro-brasileiras e suas práticas, especialmente na esfera religiosa, a postura dos evangélicos tem alcançado mudanças ainda que não muito significativas. Tais mudanças, no entanto, representam um avanço, especialmente se considerar o histórico de resistência por parte de muitos adeptos de igrejas evangélicas, bem como a situação de exclusão e discriminação do negro na sociedade brasileira. Essa atuação evangélica tem se dado tanto no questionamento dos preconceitos, como na implementação de programas de combate ao racismo, mediante formação de frentes de resistência.

Cunha (2017), no artigo intitulado “A Superação do Racismo Também é Coisa de Evangélicos”, faz uma retrospectiva da questão do racismo no Brasil, mencionando a onda de intolerância que tem varrido o país nos últimos anos. Cunha acentua que práticas racistas se manifestam desde a existência de elevador social e elevador de serviço, até a forma agressiva com que policiais abordam “suspeitos”. Na sua visão, tais práticas são maquiadas pela ideia de uma falsa democracia racial, que insiste em negar que o racismo esteja sedimentado na sociedade brasileira. No seu discurso, Cunha se reporta aos evangélicos negros do Brasil e se reporta a vários evangélicos de tradição Metodista, Batista e Presbiteriana, reconhecendo o seu papel enquanto agentes de luta contra a desigualdade. Na sua acepção, “São fiéis que empenham suas vidas na resistência contra o racismo e na luta por justiça e igualdade, inclusive dentro das próprias igrejas e nos ensinam e inspiram” (CUNHA, 2017).

Destaco na Igreja Metodista o pastor Antônio Olímpio de Sant’Ana, fundador da Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo (CENACORA), nos anos 1980. A leiga Marilia Schuller, que serviu por 14 anos nos projetos de superação do racismo do Conselho Mundial de Igrejas, e segue em atuação. O pastor Melchias Silva, com o projeto Atitude Afro, e a busca de justiça para população negra dentro e fora das igrejas (…) As leigas Diná da Silva Branchini, Keila Guimarães e Maria da Fé Vianna, em seus esforços por ações afirmativas. As pastoras Maria do Carmo Kaká Lima e Lídia Maria de Lima, empenhadas no fazer teológico sob o olhar da mulher negra. Da tradição Batista recordo o pastor Marco Davi de Oliveira, liderança do Movimento Negro Evangélico, autor do livro “A religião mais negra do Brasil: Por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo“. Sua parceira e esposa Nilza Valéria Zacarias, jornalista que atua na Frente Evangélica pelo Estado de Direito, ao lado do pastor Ariovaldo Ramos, também disseminador da causa negra entre evangélicos. O jovem pastor Henrique Vieira, ativista na política institucional e nas mídias alternativas, com ações e apelos pela igualdade e a justiça. O teólogo Ronilso Pacheco, ativista social e autor do livro “Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão” (Editora Novos Diálogos). Entre presbiterianos, há nomes históricos, como o pastor Jovelino Ramos, perseguido pela ditadura e exilado em 1968, e o pastor Joaquim Beato, incansável propagador da busca por igualdade racial dentro das próprias igrejas. Entre os mais jovens está o pastor Eduardo Dutra, ativista do movimento negro evangélico (CUNHA, 2017).

De acordo com Santos (2015) o Movimento Negro Evangélico contemporâneo emerge nos anos70 e 80. Nesse contexto, se levantam pessoas interessadas em discutir temáticas étnico-raciais nas igrejas evangélicas. Salienta, porém, que nos anos 60 foi criada a Comissão Nacional de Combate ao Racismo e a Pastoral e a Pastoral de Combate ao Racismo, entidades criadas pela igreja Metodista. A partir daí, surgem várias instituições de combate ao racismo no seio do protestantismo, especialmente de vertente histórica.

Um dos exemplos de militância negra evangélica é o já citado Pr. Marco Davi, que lidera grupo de estudo para refletir sobre raça e evangelho, objetivando questionar e combater práticas racistas. Também foi citado anteriormente, a reconstrução de um terreiro de
candomblé no Rio de Janeiro, que contou com a doação de integrantes de igrejas evangélicas.

A iniciativa desse ato foi da pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, presidente do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado do Rio de Janeiro (CONIC-Rio).


Esse texto é parte da Dissertação:

“O que é de Deus e o que não é de Deus:”
DOCENTES EVANGÉLICOS E O ENSINO DAS CULTURAS AFRICANAS
AFRO-BRASILEIRAS NAS ESCOLAS PÚBLICAS

Autor: RENILDES DE JESUS SILVA DE OLIVEIRA

Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre.

 

Qual é a cor da “religião mais negra do Brasil”? O Movimento Negro Evangélico

 

O tema da identidade cultural negra sempre foi espinhoso para as igrejas evangélicas e agravou-se, nas últimas décadas, com o ataque dos neopentecostais e das igrejas de outros segmentos contra as religiões afro-brasileiras e seus símbolos.

Se, nos Estados Unidos, as igrejas protestantes negras foram um importante espaço para a tomada de consciência étnica e a luta pelos direitos civis, no Brasil, nem de longe se constituíram com esse perfil.40 Primeiro, pela própria especificidade do racismo brasileiro. Segundo, pelas dificuldades para se identificar o que pode ser definido como “heranças negras ou africanas” na chamada “cultura mestiça” brasileira. E, terceiro, pelo tipo de missão evangelizadora dessas igrejas que enfatiza a universalidade do acesso aos dons do Espírito Santo e da prática de sua fé. Não podendo haver, nesse coletivo de irmãos convertidos, ódio, diferença e discriminação por qualquer motivo, inclusive a cor da pele, a missão de conversão tornar-se-ia o principal objetivo da ação proselitista cuja consequência natural seria a constituição de uma ordem social mais justa. Essas igrejas, portanto, mesmo tendo vivido sob um regime de exceção, como o período da ditatura militar, se mantiveram, com raras exceções, impermeáveis à influência de ideologias políticas de esquerda, ao contrário da Igreja Católica, com a Teologia da Libertação e as CEBs. Na verdade, as igrejas evangélicas temiam e combatiam o comunismo por sua pregação materialista e antirreligiosa. E, mesmo em período recente, após a redemocratização, a eleição de políticos evangélicos conservadores demonstra que essa tendência se manteve no perfil das igrejas que os apoiam.

Mas a ausência de um movimento negro no campo evangélico não significa que os problemas relativos à identidade negra não sejam postos nesse campo e que ações e iniciativas não sejam tomadas por parte de lideranças e religiosos negros visando à sua organização.41

Indícios de iniciativas recentes podem ser identificados, como apontou Burdick,42 em atuações pessoais, como a de Benedita da Silva, líder negra e evangélica, que foi eleita e participou da Subcomissão dos Negros, das Populações Indígenas e Minorias da Assembleia Nacional Constituinte (1988), e coletivas, como as denúncias de racismo, ainda que eventuais, feitas nos meios de divulgação e proselitismo das igrejas evangélicas. Ou, ainda, de forma mais sistemática, na criação de grupos de reflexão e militância negra surgidos no final dos anos de 1980, por ocasião do centenário da abolição. Foi nesse período que o movimento negro procurou congregar os diversos grupos voltados para a população negra, inclusive os de confissão religiosa. Surgiram, desde então, a Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo (CENACORA), em 1985, integrada ao Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), e inúmeras outras organizações: Comunidade Martin Luther King Jr. (da Igreja Pentecostal Cristo em Deus), em 1985; Missão Quilombo (da Igreja Pentecostal Brasil para Cristo), em 1991; Pentecostais Negros do Rio de Janeiro etc.43 Atualmente, por meio de grupos dessa natureza, fóruns de discussão, sites de divulgação, redes sociais, como a Rede Afrokut, lançada em 2008, entre outras iniciativas, têm se configurado o Movimento Negro Evangélico. Entretanto, a desarticulação entre as tendências e a falta de consenso entre as diversas denominações têm sido alguns dos seus maiores desafios.

No livro O movimento negro evangélico, Hernani Francisco da Silva define a missão do movimento como sendo a de “promover a reflexão e o debate bíblico/teológico em uma perspectiva negra e combater toda forma de racismo”.44 Reconhece que as diversas denominações cristãs foram, ao longo da história e em diversos contextos, coniventes com a escravidão e o racismo, mas registra a existência de lideranças evangélicas que se opuseram ao racismo e, em referência a elas, o movimento evangélico poderia traçar sua origem ou buscar inspiração para atuar. Lembra, inclusive, que o iniciador do movimento pentecostal nos Estados Unidos, na primeira década do século XX, foi um pastor afro-americano, William Joseph Seymor, que acolheu em sua igreja brancos e negros indistintamente. Entretanto, os ensinamentos de Seymor teriam se perdido com a transformação causada pela presença de lideranças brancas. Para Silva, essas lideranças teriam sido responsáveis pela implementação, no Brasil, de um “pentecostalismo branco racista norte-americano de viés reformado”, no âmbito do qual os valores ocidentais brancos são vistos como superiores e os de outros povos não brancos são desqualificados teologicamente e demonizados: “Os valores e a cultura ocidental são divinos modelos para todos os povos e as outras culturas não são de Deus, são do diabo, como a cultura afro”.45

E mais, as igrejas neopentecostais reforçariam o viés racista ao introduzir pontos teológicos, como a teoria da prosperidade, maldições heréticas e batalha espiritual.

Na Doutrina da Prosperidade se mede o crente abençoado por seus bens, onde de uma maneira simplista se faz um diagnóstico da situação do povo negro: “é pobre porque é pecador e é oriundo de um continente idólatra e praticante da bruxaria”. Segundo as maldições heréticas, o povo negro é considerado uma raça maldita e para que o negro se livre desta maldição (aceitar Jesus não é suficiente) é necessário que ele faça uma espécie de cura interior se desvinculando de todos os seus antepassados, ou seja, não sendo mais negro. […] A Batalha Espiritual reforça a demonização do povo negro: se olharmos cuidadosamente nos livros que tratam do assunto […] veremos que no exército de Deus são todos brancos e louros e no exército do diabo são todos pretos e negros. (grifos meus).46

Um ponto de dissenso é exatamente o lugar atribuído às heranças africanas, principalmente às religiões afro-brasileiras, na agenda de luta do movimento negro evangélico. Ainda segundo o pastor Hernani, para muitos, a questão da demonização impede o diálogo entre igrejas e terreiros, diálogo que poderia ser uma ferramenta útil para a superação do racismo e da intolerância religiosa.47


40 Para uma comparação entre pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos, cf. Marcia Contins, “Tornando-se pentecostal: um estudo comparativo sobre pentecostais negros nos EUA e no Brasil” (Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995); Marcia Contins, “Pentecostalismo e umbanda: identidade étnica e religião entre pentecostais negros no Rio de Janeiro”, Interseções, n. 2 (2002), pp. 83-98; Marcia Contins, “Convivendo com o inimigo. Pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos”, Caminhos, v. 1, n. 2 (2003).

41 Mesmo porque os grupos evangélicos têm na população pobre (e, portanto, negra) sua maior base de apoio.

42 John Burdick, “Pentecostalismo e identidade negra no Brasil: mistura possível?”, in Yvonne Maggie e Claudia Barcellos Rezende (orgs.), Raça como retórica. A construção da diferença (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), p. 189.

43 Burdick, “Pentencostalismo”; Hernani Francisco da Silva, O movimento negro evangélico. Um mover do Espírito Santo, São Paulo: Negritude Cristã, 2011.

44 Silva, O movimento, p. 16.

45 Silva, O movimento, p. 23.

46 Silva, O movimento, p. 25.

47 Silva, O movimento, p. 26.

Imagem: Uma mulher levanta as mãos durante um culto inter-religioso na Igreja Batista Ebenezer, a igreja onde o reverendo Martin Luther King Jr. costumava pregar. David Goldman / AP



O Movimento Negro Evangélico: história, desafios e perspectivas

Hernani Francisco da Silva, no livro “O Movimento Negro Evangélico: um mover do Espírito Santo” relata que o panorama histórico do Movimento Negro Evangélico surgiu no Brasil em 1841, por iniciativa do recifense Agostinho José Pereira, defensor da liberdade física e espiritual do povo negro escravizado, considerado fundador da primeira igreja negra.

Segundo o autor, a partir 1970, inspirado na Teologia Negra, o Movimento Negro Evangélico contemporâneo começa a se formar, com a finalidade de trabalhar a questão racial nas igrejas evangélicas, buscando o resgate da identidade e consciência do negro sob uma visão cristã, enquanto indivíduo, em oposição à equivocada interpretação teológica das escrituras.

Silva (2011) revela que a partir de 2000, o movimento começa a criar forma através do surgimento de novas organizações em diversos estados brasileiros, voltadas para a temática de combate às discriminações raciais dentro das igrejas evangélicas, tais como:

Cenacora (Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao
Racismo), Grupo de Reflexão Teológica, Teólogos Negros, AGAR (Sociedade Teológica de Mulheres Negras), Coral de Resistência de Negros Evangélicos, Ministério de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, o Grupo de Combate ao Racismo da Igreja Batista (Centenário, Duque de Caxias, Rio de Janeiro). Fórum das Mulheres Cristãs Negras de São Paulo, Projeto Palmares da Igreja Batista – SPE, Sociedade Cultural Missões Quilombo, Negros Evangélicos do Rio de Janeiro, Ministério Azusa, GEVANAB – Grupo Evangélico Afro Brasileiro, Negros Evangélicos de Londrina e Movimento Negro Evangélico – RS.

De acordo com o Movimento Negro Evangélico, o “racismo teológico” disseminado pelos movimentos pentecostais e neopentecostais tem como objetivo principal justificar a ideia de que o branco é superior ao negro. Esse tipo de “teologia” nasceu no sul dos Estados Unidos, em meados do século XVIII, através das pregações e práticas desenvolvidas por missionários norte-americanos. Seu ideal era justificar a escravidão e as punições aplicadas àqueles que fugissem às normas de conduta da época. As sugestões variavam de açoites para os negros que erguessem a mão contra os brancos cristãos, à proibição de alfabetização e pregação do evangelho.

No mesmo sentido, Branchini (2013) afirma que mesmo após um século de abolição no Brasil, a inserção do negro no meio evangélico tem base na desigualdade sócio cultural. O negro evangélico enfrenta preconceitos que o impedem de desfrutar da mesma igualdade e liberdade dos fiéis brancos, assimilando um preconceito disfarçado. Apesar disso, a palavra racismo ainda é tabu que provoca reações diversas dentro das igrejas.

Segundo o autor o negro evangélico silencia o racismo sofrido por vergonha ou constrangimento. A religião como aspecto histórico é uma questão contraditória na formação individual e coletiva do negro, atuando como libertadora, ou como pode ocorrer no seguimento evangélico, uma força opressora no desapego de sua identidade africana, visto que a teologia neopentecostal desqualifica o viés espiritual da cultura negra.

Para Pacheco (2010) o racismo pentecostal tem bases nas ideias fundamentalistas. Entende-se por fundamentalismo qualquer movimento de doutrina conservadora, que exija obediência rigorosa e integral a um conjunto de princípios e essa norma única a ser seguida pode tornar-se ferramenta geradora de discriminações.

Segundo a autora, o fundamentalismo neopentecostal é radical, fazendo o crente colocar-se em sacrifício da causa e adotando uma postura servil, obediente e resignada, muito parecida com o comportamento dos negros durante o período de escravidão.

Contra os fundamentos e práticas adotadas pelas igrejas neopentecostais, o Movimento Negro Evangélico interpreta de forma diversa os fundamentos referentes à Maldição Hereditária, Teoria da Prosperidade e Batalha Espiritual (exorcismo e possessões demoníacas).

Em relação à Maldição Hereditária, o MNE combate a historicidade de que a escravidão defendida pelos missionários era plenamente justificada em nome de Deus, decorrente da maldição imposta aos filhos de Cam. Pelo Gênesis 9.18-27, Cam, filho de Noé, foi amaldiçoado a ser o mais baixo dos servos. Cam, palavra de origem hebraica significa queimado, preto; daí o porquê do filho de Noé ser considerado, por desventura, o precursor da raça negra, justificando a escravidão de seus descendentes, ou seja, africanos e negros em geral.

Essa interpretação das Escrituras, tendenciosa na visão do MNE, era tida como forma de conduzir os negros à redenção, através da subserviência incondicional e, principalmente, através do total rompimento com seu passado histórico (costumes, hábitos, cultura e tradições), como forma de livrar-se da maldição hereditária. No mesmo sentido, Oliveira (2004) relata que vários teólogos
pentecostais defendem o pensamento que estigma Caim após matar Abel, era a maldição caracterizada pela cor negra.

De acordo com Silva (2011) as igrejas neopentecostais estão alicerçadas numa teologia fortemente racista, citando como exemplo a Teologia da Prosperidade, na qual a ideia de que crentes abençoados são ricos e os crentes pobres são amaldiçoados. Através da Teoria da Prosperidade, abençoado é aquele que acumula e ostenta bens materiais aqui na Terra. Em opinião divergente, o MNE cita que em decorrência da escravidão e proibição de acesso à educação, os negros viram-se excluídos das possibilidades de ascensão social, em razão da desigualdade e preconceito racial, difundido e assimilado no senso comum da sociedade.

Para o Movimento Negro Evangélico, o maior perigo de perseguição ao negro está centrado na Batalha Espiritual preconizada pelos movimentos neopentecostais, na medida em que a cor preta é tida como negativa e os enviados de Deus, retratados por anjos brancos que devem combater o mal representado pelos anjos decaídos, negros, conforme citado em “Este Mundo Tenebroso”, de Frank E. Peretti.

Hernani Silva (2011) acrescenta que o Movimento Negro Evangélico tem empreendido esforços na construção de uma agenda comum de estratégias para os diversos grupos espalhados pelo país, mas encontra obstáculos entre seus militantes devido aos diferentes fundamentos das denominações que integram. O autor cita como exemplo o 1º Encontro Nacional de Negras e Negros Cristãos, realizado em 2007. Nesse evento ocorreu uma divisão entre seus participantes porque um grupo defendia o pan-africanismo e o afrocentrismo, outro defendia a negritude cristã e a brasilidade.

O autor destaca que o MNE mostra-se extremamente preocupado com as perseguições sofridas por práticas racistas e intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana, inclusive com agressões físicas, depredação de imagens do panteão africano e locais de culto.

Para dar corpo à prática da Batalha Espiritual, segundo denúncias do Movimento Negro Evangélico, a Igreja Universal do Reino de Deus criou o grupo de Gladiadores do Altar, formado por jovens preparados ao sistema militar, inclusive marcham, batem continência e gritam que estão “prontos para a batalha”, durante um culto realizado em Fortaleza, no início de 2015. Em sua defesa, a Igreja Universal do Reino de Deus afirma que esses grupos, vinculados à Força Jovem Universal, têm como objetivo a formação de novos pastores para a pregação da palavra de Deus e do Evangelho a toda criatura, conforme matéria publicada na revista eletrônica Carta Capital, em 6/4/2015, sob o título “Exército” da Universal preocupa religiões afro-brasileiras.

O Movimento Negro Evangélico, ao contrário da Igreja Universal do Reino de Deus, vê nesses grupos, verdadeiras milícias em defesa de um fundamentalismo religioso que ameaça não só as liberdades individuais, como também opção sexual e manifestações religiosas de matriz africana.

Uma das vitórias obtidas pelo Movimento Negro, de acordo com Silva (2011) está no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado dia 21 de janeiro, instituído em 2007 pela Lei Federal 11.635, em homenagem a Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, de Salvador. A religiosa do Candomblé enfartou após ver seu rosto estampado na primeira página da Folha Universal, jornal evangélico, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Humberto Ribeiro DuarteOs negros do “Saravá, meu Pai” para o “Amém, Jesus”: abordagem sobre questões de fé e identidade.

Artigo extraído da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Sociologia.

Os vestígios Históricos do Lutero Negro e a Gênesis do Protestantismo Brasileiro

A chegada da corte portuguesa, os processos de independências do Brasil e as primeiras leis abolicionistas marcaram significativamente a primeira metade do século XIX e deram o tom para as transformações políticas, econômicas, sociais e religiosas em solo brasileiro. E é sobre esse contexto que surge, em 1841 na cidade de Recife, Agostinho Jose Pereira pregador negro e precursor do protestantismo no Brasil, fundador da Igreja do Divino Mestre, que segundo Hernani Francisco da Silva foi a primeira igreja protestante no país.

Os vestígios históricos sobre Agostinho ainda são poucos, mas o que se pode afirmar, diante das fontes jornalísticas é que, ele sabia ler e escrever e fez de seu ministério uma possibilidade para falar sobre liberdade e o fim da escravidão e por isso ensinava os seus adeptos a ler e escrever. Ainda segundo Hernani Francisco da Silva, “As ideias de Agostinho eram avançadas e perigosas para a época onde a igreja católica era a religião oficial do Estado.” Entretanto, não foram as ideias e convicções religiosas do Pastor Negro que despertaram o descontentamento das autoridades do poder espiritual (Igreja) e as autoridades do poder temporal (Estado), mas sim suas ideias abolicionistas e seus inúmeros discursos que apontavam o Haiti como um exemplo de luta contra as formas de escravização do corpo negro.

Não podemos nos esquecer que a Revolução Haitiana, também conhecida por Revolta de São Domingos, que levou à eliminação da escravidão e à independência do Haiti, foi um dos maiores marcos históricos para a população afro-diaspórica no continente americano. As repercussões da Revolução geraram um medo eminente de revolta dos “escravizados” contra os seus “senhores”. Em sua tese de doutoramento, em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Rosenilton Silva de Oliveira aponta Agostinho como um ícone para o Movimento Negro Evangélico (MNE), pois enquanto a história oficial considera o início do protestantismo no país, no ano de 1858, com a fundação da Igreja Fluminense pelo reverendo Roberto Kalley; o MNE em uma tentativa de reescrever a presença evangélica no Brasil contextualiza o ano de 1841, quando Agostinho José Pereira funda a Igreja Divino Mestre, como a gênesis está do protestantismo brasileiro.

Segundo os vestígios históricos, apontados por Silva, “o que sabemos é que ele era um negro letrado, e que fundou a primeira igreja protestante brasileira, essa igreja era negra. Sabemos também que na sua trajetória política conheceu Sabino o líder da revolta baiana conhecida como a sabinada, também participou da confederação do Equador“. Perseguido e preso, por conta de suas ideias em prol das liberdades, sua trajetória foi se esvaindo no tempo e solapada pela história oficial. Por isso, ao pontuar Agostinho Jose Pereira na História, como líder, pregador abolicionista, não corremos o risco de uma história única que tente a invisibilizar a participação de homens e mulheres negros e negras nas narrativas oficiais.

Autor:

Babalawo Ivanir Dos Santos

O Prof°. Babalawô Ivanir dos Santos, é Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ); membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Pesquisador do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-UFRJ) e Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais pós coloniais (LEHA-UFRJ); Coordenador da Coordenadoria de Religiões Tradicionais Africanas, Afro-brasileira, Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR/LHER/UFRJ); Conselheiro Estratégico do Centro de Articulações de População Marginalizada (CEAP); Interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR); Conselheiro Consultivo do Cais do Valongo; Vice-presidente da América Latina no Conselho Internacional das Sociedades de Antigas Religiões de Descendentes de Africanos (ARSADIC), Nigéria. Tem experiência nas seguintes áreas ; Educação Étnico-racial e questões africanas, Direitos Humanos e Cidadania; Relações Internacionais; Religiões tradicionais da África Ocidental e Afro-brasileiras.


Referências:
http://www.espiritualidades.com.br/…/SILVA_Hernani_Francisc…

OVILEIRA, Rosenulton Silva de. A cor da fé: “identidade negra” e religião. Tese de Doutorado em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.

Fonte da foto: https://afrokut.com.br/blog/reforma-protestante-negra/



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O Movimento Negro Evangélico e o futuro

Parte das demandas lançadas sobre as costas de militantes e ativistas negros/negras têm a ver com o passado. As questões relacionadas à escravidão, ao colonialismo, às desigualdades e a um passado que nós nem conhecemos e sequer entendemos são parte das várias questões que além do racismo que se projeta claramente no nosso presente, vivem a assombrar e perseguir os membros dos movimentos negros. Como disse Mano Brown em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil“hoje o negro está mais ligado ao futuro do que ao passado”(1).

Os debates sobre afro futurismo, mundos possíveis e a superação do racismo são por demais sedutores. Afinal, quem não adoraria que Wakanda fosse real? O que todo negro/negra quer é justamente não precisar mais falar de racismo, falar de dor e de violência. Essa necessidade é um possível explicador para a quantidade gigantesca de pessoas pretas nas igrejas evangélicas, sobretudo nas denominações que falam sobre salvação com certa ênfase. Para o povo negro, é importante pensar a vida em uma outra perspectiva que não seja a deste mundo em que vivemos.

Estamos vivendo uma crise mundial. Até para o espectador mais ingênuo, é nítido que o mundo está vivendo um período cataclísmico e de crises múltiplas. As crises políticas, econômicas e até de identidades representam todo um processo de adoecimento do que Ailton Krenak chamou de Antropoceno:

Como é que ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muita das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência? (KRENAK, 2019, p. 11).

Mais do que nunca precisamos falar de futuro. O passado deve ser apenas o ponto de partida para nossas críticas; mas no momento, o foco deve ser o futuro. A comunidade negra precisa criar dentro de si a possibilidade de pensar um outro mundo, uma realidade libertária. Quando falamos de decolonialidade, é sobre essa possibilidade de pensarmos mundos possíveis, outras experiências. Se essas experiências serão sem a presença do racismo, eu não sei, o que sei é que o mundo está fumegando e este é o momento para que haja uma real transformação.

Em ideias para adiar o fim do mundo (2019), o líder indígena Ailton Krenak reflete justamente sobre essas questões. Pensar o futuro e o tempo em uma perspectiva decolonial é transcender as fronteiras de um mundo fragmentado. Ou como Frantz Fanon escreveu em Os condenados da terra, “um mundo cindido em dois” (1961). Esse mundo, chamado de Ocidente, foi construído para que os seus dois lados se autoanulem e nunca se encontrem de forma harmônica. Assim, uma guerra que foi declarada por um dos lados impede que o outro lado, o lado dos colonizados, se recuse a guerrear. Por isso, desde a colonização, a violência passou a ser um tipo de linguagem universal que expressa o fim de todo conflito, diálogo, debate ou embate.

A igreja evangélica no Brasil como parte desse mundo em colapso, têm mantido relações estreitas com o poder dos colonizadores, tendo no seu núcleo uma massa de membros formada majoritariamente pelos povos colonizados e que está sendo largamente influenciada pelas estruturas de poder colonial por motivos mais complexos que o binarismo alienados alienadores comumente utilizado pelos devotos do materialismo histórico.

Nada é tão simples.

E é por não ser tão simples que existem grupos de evangélicos como o Movimento Negro Evangélico.

No início da década o censo do IBGE apontou o avanço gigantesco da população evangélica (2) e o provável é que, havendo um novo censo, esse número tenha em muito aumentado. A problemática é que, como já foi apontado em pesquisas, o Brasil é um dos países com maior número de evangélicos, mas também um dos países que mais mata jovens negros (3) e é nesse ponto que emerge a urgência de movimentos que dialoguem com a fé desse grupo que está em crescimento e as demandas de um país ainda preso às amarras coloniais.

O Movimento Negro Evangélico (MNE) é uma ideia para adiar o fim do mundo. Precisamos, negros e negras, entender as perguntas que estão sendo feitas pelas pessoas nas igrejas, na periferia e nas favelas para que nossas respostas sejam audíveis e efetivas. Precisamos entender o que os movimentos de esquerda não entenderam ou não quiseram entender. Precisamos nos apropriar das narrativas e dos discursos que podem potencializar um novo horizonte para um mundo que vive em constante queda rumo à morte para talvez “não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos” (KRENAK, 2019).

Que o MNE entenda a sua possibilidade de reconstruir um novo céu e uma nova terra. Que o MNE entenda que isso não se trata e nunca se tratará de converter todo o mundo ao cristianismo, mas salvar todo o mundo, inclusive, o próprio cristianismo.

Bem-aventurados, nós, os pacificadores, com fome e sede de justiça.

Por João Marcos Bigon, mestrando em Relações Étnico-Raciais pelo PPRER/CEFET-RJ e Licenciado em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias. Membro da Nossa Igreja Brasileira.

Via: Novos Diálogos


Notas

(1) Mano Brown, um sobrevivente do inferno | Entrevista completa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U_OsF4y4zuY&t=720s. Acesso em: 05 de Jan, 2020.

(2) Censo 2010: número de católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?id=3&idnoticia=2170&view=noticia. Acesso em 8 de Jan, 2020.

(3) 75% das vítimas de homicídio no país são negras, aponta Atlas da violência. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Acesso em: 8 de Jan, 2020.

A consciência negra e a profecia

“O povo que caminhava em trevas viu uma grande luz; sobre os que viviam na terra da sombra da morte raiou uma luz[…]Tu arrebentaste as suas correntes de escravos, quebraste o bastão com que eram castigados; acabaste com o opressor que os dominava, assim como no passado acabaste com os midianitas.”(Is 9:2; 9:4)
.
Isaías 9 é conhecido como o texto da profecia do caminho para a libertação, que aponta para o salvador de um povo, para o nascimento da esperança que vai libertar o povo de Deus. E é uma das profecias mais esperadas e importantes relatadas na Bíblia. Ele começa falando que existe um povo que caminhava nas trevas,um povo que vivia na terra da sombra da morte, essa profecia se direcionava a esse povo, a um povo que o medo e a morte dominava seu território, dominava sua história. Porém, esse povo viu uma grande uma Luz,essa luz era tão concreta que a visão da luz começa com o arrebentamento das correntes de escravos, a profecia dizia que esse povo viu sua libertação, ou a destruição do julgo que os oprimia. Era a grande primeira mensagem de Isaías sobre a luz que pairava sobre o povo que era escravizado e oprimido. A profecia continua dizendo que a destruição ela não é somente sobre a escravização mas também sobre a vara de castigo do opressor. Veja, a profecia de Isaías aponta para as quedas de todas as construções humanas que matavam o povo que vivia na terra da sombra da morte. Deus tira o açoite das mãos do opressor, Deus lança luz sobre o povo que estava em condição de escravização, Deus destrói todo o sistema que sustenta a opressão desse povo.

Isaías conclui dizendo que tudo isso vai se tornar realidade “porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado”, a profecia ela se cumpre porque é a manifestação da encarnação de Deus, onde Jesus nasce a vara do castigo do opressor é destruída,quando Jesus nasce o povo que vive no vale da sombra da morte, é escutado, o sangue dos que morrem nos morros, nas favelas chega até os olhos do Eterno. A consciência negra ela é instrumento do cumprimento da profecia, ela é um apontamento para a integralidade da missão do evangelho. A consciência negra, é a prova de que parte da humanidade não deixou a profecia cair. Que sejamos profetas e que destruamos todas as ferramentas de opressão que o homem construiu.

Por Jackson Augusto –  Coordenador do Movimento Negro Evangélico do Estado de Pernambuco. Estuda Ciência da computação em Universidade Federal Rural de Pernambuco (Ufrpe Oficial).

Foto: @saulonicolai

Projeto: @favelagrafia

Texto: @afrocrente